Sensível suprassensível II

Autor: Eleutério F. S. Prado[1]

Esta nota visa comentar a interpretação de Sami Khatib[2] sobre a formação do valor apresentada no primeiro capítulo de O capital. Tal como se mostrou na postagem anterior[3] – sensível suprassensível (I) – esse autor aceita que a forma valor provém de uma abstração real e que tem, por isso, uma existência espectral. Como diz: “nas sociedades em que prevalece o modo de produção capitalista é como se a dimensão abstrata do valor adquirisse vida própria”; “é como se esse modo de abstração tivesse uma existência material própria, independente da mente humana”; “é um fato real – não o resultado de uma operação intelectual subjetiva, mas efeito de uma relação objetiva e realmente existente”.

Esse autor – é preciso esclarecer – pertence à corrente de pensamento que se autodenomina “lacano-marxista” e que está se esforçando para associar a psicanálise de Sigmund Freud/Jacques Lacan à crítica da economia política de Karl Marx. Ora, para fundar tal cooptação de modo sólido, parte ele de um ponto bem correto: a questão do valor aparece em O capital da maneira que se tornou conhecida porque Marx investiga aí – e ele próprio o diz claramente – a linguagem das mercadorias. Partindo daí, Khatib procura mostrar uma suposta convergência da apresentação do valor nessa obra com a linguística estrutural de Ferdinand de Saussure[4], a qual, como se sabe, está na base das reflexões psicanalíticas de Lacan.

Esse investigante lacano-marxista parte então – como diz – da noção de “abstração real”; eis que o valor das mercadorias – e sobre isso não há dúvida – advém por meio de uma abstração real. Sim, mas como pensá-la em sua efetividade no mundo real? Ao invés de investigar o que se encontra de fato na apresentação dialética da forma valor em O capital, Khatib procede do seguinte modo:

  1. Tal como Marx, diz primeiro: como coisas diferentes quanto ao valor de uso são igualadas no mercado, tornando-se, assim, equivalentes, é porque foram “reduzidas a [portadoras] uma ‘substância’ comum”, o trabalho abstrato. É por isso que elas se apresentam no mercado numa relação quantitativa, qual seja ela, o valor de troca.
  2.  Essa substância – diz em sequência – não é uma essência. Ora, assim se expressando, ele passa a divergir de Marx: “A relação de valor não existe em si, apenas para si mesma, ou seja, as relações de valor são puramente diferenciais; cada valor atinge sua posição quantificável por diferir de todos os outros valores”.
  3. Dando mais um passo, afirma: “Os valores das mercadorias (…) não precedem as relações de troca por meio das quais são expressos. Embora sejam expressões, os valores de troca aparecem antes daquilo que eles expressam, ou seja, os valores.
  4. Para concluir o seu argumento, afirma: “Contra as lógicas lineares atemporais, a relação de troca pertence a um looping lógico temporal constitutivo da forma do valor: a qualidade é produzida pela abstração, enquanto a quantidade é produzida apenas pela diferença. A qualidade (que é expressiva) precede logicamente a quantidade (que é expressa), mas a quantidade ‘em tempo real’ parece vir primeiro”.

A formação do valor que se expressa no valor de troca, em sua visada teórica, se dá, portanto, em duas etapas distintas: na esfera da produção de mercadorias ocorre a abstração real que consiste, para ele, numa operação apenas qualitativa: o trabalho concreto se transforma em trabalho abstrato; na esfera da circulação de mercadorias, acontece a quantificação: o quantum de trabalho concreto se transforma em quantum de trabalho abstrato socialmente necessário para produzir a mercadoria.

Por que faz esse desdobramento temporal? Veja-se: é feito porque o objetivo do autor é interpretar a teoria do valor de Marx “à luz das descobertas da linguística estrutural”. E esta, como se sabe, pensa a formação de valor na linguagem em geral e, portanto, nas linguagens natural e econômica, de modo sincrônico. Ora, isso implica que as grandezas dos valores que se expressam nos valores de troca são determinadas de modo diferencial num mesmo momento do tempo.

Saussure não dissera no Curso de linguística geral, publicado em 2016, que uma homologia precisava ser considerada para o bom desenvolvimento desse novo saber científico: “aqui [na linguística] como na economia política somos confrontados com a noção comum de valor; ambas essas ciências estão comprometidas com um sistema que iguala coisas de diferentes ordens”. Ora, a homologia a que se refere não pode ser nem com a economia política clássica nem com a elaboração posterior de Marx; eis que se trata de uma homologia entre a linguística estrutural e alguma versão da teoria de equilíbrio geral (mesmo se ele não pensou nisso, pois é apenas por meio dessa teoria que se pode pensar a formação dos preços sincronicamente).   

De qualquer modo, se os valores de troca se tornam efetivos nos mercados, quando são comercializados, o que eles expressam veio da produção mercantil, esfera em que supostamente ocorre a redução qualitativa dos trabalhos concretos a trabalho abstrato. Note-se, agora, que essa redução qualitativa é da ordem da generalização, pois o gênero, de um ponto de vista lógico, contém sempre as qualidades que são comuns às espécies por ele abrangidas. O termo redução empregado se refere ao fato de que apenas uma qualidade das espécies de trabalho, a saber, o “gasto de força humana de trabalho”, isto é, o esforço fisiológico do ato de trabalhar que sempre envolve o corpo e a mente dos trabalhadores, é aqui levada ao gênero. É assim que Khatib identifica mais uma vez na história das leituras de Marx “abstração real” com “trabalho em geral”.  

Tudo isso está de acordo com o que se encontra no texto de Marx? – eis a questão em sua máxima simplicidade. Essa interpretação é correta? Essa interpretação é possível? Aqui se julga que essas três questões merecem a mesma resposta: não. E isso, obviamente, precisa ser bem explicado.

Para esse autor clássico, como se sabe, o valor se forma por completo na produção e se realiza na circulação de mercadorias. A redução do trabalho concreto ao trabalho abstrato não é da ordem da generalização, mas da ordem da mensuração. Ora, a medida requer sempre – e não apenas na esfera mercantil – que uma qualidade do gênero seja privilegiada, uma qualidade que possa ser caracterizada quantitativamente. Por exemplo, os polígonos planos têm sempre a qualidade “área” e, por isso, por meio de uma redução quantitativa, a área dos polígonos em geral pode ser expressa quantitativamente. Se o padrão de medida estiver definido como 1 cm2, então a área em geral dos polígonos pode ser expressa como “x” cm2, sendo “x” uma determina grandeza numérica. Essa operação não consiste numa redução apenas qualitativa, ainda que a pressuponha; trata-se, na verdade, em última análise, de uma redução simultaneamente qualitativa e quantitativa.

A solução proposta por Saussure para expressar a medida de valor econômico – em homologia com a medida do valor linguístico – é puramente imaginária. Os valores de troca, ou melhor, os preços de mercado das mercadorias em geral, num momento qualquer do tempo, apenas podem ser descritos por meio de uma distribuição de probabilidade – e nunca por meio de uma grandeza única. A teoria econômica que opera com essa última possibilidade – a teoria neoclássica – pensa os relativos de preço por meio de uma suposição irrealista, na verdade, uma idealização extrema, segundo a qual todos mercados estão em equilíbrio.

Como se sabe, para Marx, como para Adam Smith antes dele, os preços de mercado são anárquicos. Na seção “medidas dos valores” do capítulo sobre o dinheiro (de número 3), ele diz:

A possibilidade de uma incongruência quantitativa entre preço e grandeza de valor, ou o desvio do preço em relação à grandeza de valor, reside, portanto, na própria forma-preço. Isso não é nenhum defeito dessa forma, mas, ao contrário, aquilo que faz dela a forma adequada a um modo de produção em que a regra só se pode impor como a lei média do desregramento que se aplica cegamente.[5]

Logo, a suposta formação de valor estruturalista que aqui se discute não se configura como possível nem no mundo real nem frente à teoria do valor e dos preços de mercado que se encontra em O capital. É imediato provar também a tese dessa nota, a saber, que a noção de abstração real se refere a uma redução dupla, ao mesmo tempo qualitativa e quantitativa, o que é inerente às medidas em geral. Primeiro, Marx fala da dimensão qualitativa da redução:

A mercadoria despida do seu valor de uso] já não é mais o produto do carpinteiro, do pedreiro, do fiandeiro ou de qualquer outro trabalho produtivo determinado. Com o caráter útil dos produtos do trabalho desaparece o caráter útil dos trabalhos neles representados e, portanto, também as diferentes formas concretas desses trabalhos, que não mais se distinguem uns dos outros, sendo todos reduzidos a trabalho humano igual, a trabalho humano abstrato.

Após ter apresentado a dimensão qualitativa da redução do trabalho concreto a trabalho abstrato, Marx fala imediatamente depois da dimensão quantitativa da redução, a qual, tal como a primeira, ocorre já na esfera da produção:

Assim, um valor de uso ou bem só possui valor porque nele está objetivado ou materializado trabalho humano abstrato. Mas como medir a grandeza de seu valor? Por meio da quantidade de “substância formadora de valor”, isto é, da quantidade de trabalho nele contida. A própria quantidade de trabalho é medida por seu tempo de duração, e o tempo de trabalho possui, por sua vez, seu padrão de medida em frações determinadas de tempo, como hora, dia etc.[6]

Como explicar o descaminho de Khatib na compreensão do valor em Marx. Ora, a homologia da qual parte se mostra inconsistente, pois se dá pretensamente entre a linguagem natural apreendida como fundada num sistema (estruturalismo) e a linguagem funcional do sistema da relação de capital (marxismo). Ora, está implícita na crítica da economia política uma distinção entre a linguagem como meio de comunicação aberto a múltiplos usos que vigora no mundo da vida e a linguagem operacional do mundo da mercadoria, do dinheiro e do capital. Esta última, ao contrário da primeira, atua na subestrutura da sociedade. Como se sabe, Marx fez uma distinção clara entre relações sociais indiretas (relações sociais de coisas que se expressam na linguagem das mercadorias) e relações sociais diretas (relações sociais entre pessoas por meio da linguagem natural)

Há, em consequência, um equívoco de base na compreensão do termo “estrutura”. Enquanto a crítica da economia política pensa – para usar tais termos – a estrutura social diacronicamente, o estruturalismo em questão só pode pensá-la sincronicamente. Enquanto a primeira só vê estrutura na base econômica da sociedade, a segunda enxerga estrutura na linguagem natural que é meio de comunicação no mundo da vida social e cultural e que, por isso, medeia a constituição da superestrutura da sociedade. Mas isso não é tudo pois o próprio conceito estrutura é divergente entre essas duas concepções da sociabilidade capitalista.

Para Marx, a estrutura da sociedade é constituída pelas relações sociais implícitas entre determinadas posições sociais, as quais se mantém e se reproduzem ao longo do tempo por meio da geração de tensões e da configuração de tendências. Eis que essas relações sociais são portadoras de contradições. Na perspectiva de Saussure, a sociologia estruturalista julga que estrutura social está constituída por dependências inconscientes mantidas coletivamente, as quais se expressam por meio de padrões comportamentais estáveis e repetidos no tempo. Enquanto, no primeiro caso, a estrutura é inferida pela análise das formas e por redução da aparência à essência, no segundo caso, a estrutura é descoberta por meio de um ato de totalização que vai das regularidades empíricas ao que nelas está supostamente implícito.

É preciso ver aqui que o estruturalismo almeja o status de teoria científica, definida por um método específico, enquanto a obra de Marx é mais bem caracterizada como teoria crítica. O seu método, interno ao objeto, consiste na apresentação dialética.  Por sua vez, o método estruturalista consiste em construir modelos que explicam certos padrões de interações sociais. Quais as especificidades desses dois modos de pensar e como eles se distinguem entre si?

Admitindo que o signo em geral é formado pela associação contingente entre significante (a forma acústica do signo) e significado (a noção propriamente dita que o signo carrega) e que os signos formam a linguagem, o estruturalismo divide essa última em língua e fala, para reificar a primeira delas. A língua é vista, então como um sistema de signos, como uma realidade sistemática e funcional, com validade supraindividual.

Assim, a língua ganha autonomia em relação aos indivíduos e ao mundo real no mesmo ato em que os significantes ganham precedência sobre os significados. As formas acústicas da linguagem deixam, assim, de se vincularem às coisas em geral de um modo fixo ou estável porque se encontram agora organizadas como um sistema; segundo Saussure, “a língua é um sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica”. O sujeito que fala se submete às leis da língua, pois o sentido das enunciações em geral passa a depender da estruturação dos significantes.

Para a dialética marxiana, ao contrário, os signos que compõem a linguagem natural ligam o par significante e significado ao referente. Note-se também que essa ligação decorre da sedimentação das experiências sociais passadas, presentes e mesmo futuras. A realidade sociocultural, isto é, a ciência, a literatura, a religião, a moral etc., decorre da práxis coletiva dos indivíduos em sociedade. De acordo com Volóchinov, que refletiu filosoficamente sobre a linguagem de um modo marxista, “além dos fenômenos da natureza, dos objetos tecnológicos e dos produtos de consumo, existe um mundo particular: o mundo dos signos”[7]. E os signos em geral – ele acentua – representam e substituem o que se encontra fora dele.

Enquanto no mundo econômico, as interações sociais se dão como interações sociais de coisas ou de signos reificados, de modo indireto; já no mundo da vida social cultural, as interações, agora diretas, se dão em princípio por meio dos signos livres de reificação. Os signos originários – diz Volóchinov – “surgem apenas no processo de interação entre consciências individuais”; já os signos sistêmicos nascem – é preciso acrescentar – no mundo econômico. Ora, a psique humana, como se sabe depois de Freud, está formada pelo consciente, pelo subconsciente e pelo inconsciente. Em consequência, mesmo se falta transparência no mundo da vida e no mundo subjetivo, tais mundos “ideológicos” estão formados por signos verazes, parcialmente verdadeiros, distorcidos e mesmo mistificados e falsos, mas não reificados em princípio.

Em conclusão: a teoria do valor de Marx – se toda a crítica aqui desenvolvida estiver correta – não pode ser compreendida adequada e corretamente nos cânones da teoria estruturalista da linguagem.

Notas


[1] Professor aposentado da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br; Blog na internet: https://eleuterioprado.blog.

[2] Professor da Universidade Leuphana, em Lunenburg, Alemanha.

[3] Primeira seção do artigo Sensuous supra-sensuous: the aesthetics of real abstraction, publicado no livro Aesthetic Marx, ed. Samir Gandesha e Johan Hartle, Londres: Bloombury, 2017.

[4] Saussure, Ferdinand – Curso de Linguística Geral. São Paulo: Cultrix, 2012.

[5] Marx, Karl – O capital – Crítica da Economia Política. Livro I. Tomo 1. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p. 47.

[6] Idem.

[7] Ver Volóchinov, Valentin – Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora 34, p. 85.