Sensível suprassensível I

Introdução

Autor: Eleutério F. S. Prado

Como se sabe, “sensível suprassensível” é um termo que aparece na seção sobre o fetichismo da mercadoria do primeiro capítulo de O capital. Sami Khatib, professor da Leuphana University, em Lüneburg, Alemanha, apresenta abaixo uma interpretação desafiadora desse termo e, assim, da teoria do valor de Marx. Como é importante contestá-la, esse blogueiro, numa postagem posterior (Sensível suprassensível II), vai discuti-la mais a fundo tendo em mente os ensinamentos de Ruy Fausto sobre a dialética de Marx.

A Estética da Abstração Real [1]

Autor: Sami Khatib

A linguagem e o trabalho são expressões nas quais o indivíduo em si não mais se retém e se possui a si mesmo; antes, ele deixa o interior mover-se totalmente para fora dele e assim o abandona ao outro. Por essa razão, podemos dizer que essas expressões expressam tanto o interior quanto podemos dizer que o expressam muito pouco. Muito – porque o próprio interior irrompe nessas expressões, nenhuma oposição permanece entre elas e o interior; eles não fornecem meramente uma expressão do interior, eles fornecem imediatamente o próprio interior. Muito pouco – porque na fala e na ação o interior se transforma em outro e assim se abandona à mercê do elemento de transformação, que torce a palavra falada e a ação realizada e faz deles algo diferente do que eles, como as ações desse determinado indivíduo, são em si e para si.

Hegel, 1807, Fenomenologia do Espírito

Abstração Real

Explicando as peculiaridades da forma de valor, na edição original de 1867 de O capital, vol. I, Marx desdobra uma imagem convincente:

É como se ao lado e fora dos leões, tigres, coelhos e todos os outros animais reais, os quais formam, quando agrupados, os vários tipos, espécies, subespécies, famílias etc. do reino animal, existisse também em adição o animal, encarnação individual de todo o reino animal.

O projeto de Marx da crítica da economia política poderia ser resumido como a ciência desse animal e de seu modo de existência espectral. Nas “sociedades em que prevalece o modo de produção capitalista” é como se a dimensão abstrata do valor adquirisse vida própria.

O caráter dual da mercadoria – eis que ela é tanto valor de uso quanto valor de troca – cria uma esfera aparentemente autônoma de relações de valor, as quais se desvincularam do mundo sensível das mercadorias concretas e, assim, da dimensão valor de uso dessas mercadorias. Essa autonomia, porém, não é meramente intelectual ou ideal como na esfera da religião onde “os produtos do cérebro humano aparecem como figuras autônomas dotadas de vida própria”.

Em vez disso, é como se o modo de abstração, ou seja, o valor, tivesse uma existência material real própria, independente da mente humana. Assim como um animal existente real encontra outro animal existente dentro do reino animal, no capitalismo é como se objetos sensíveis concretos encontrassem seu gênero abstrato na vida real. Conforme a lógica dessa imagem, a encarnação de tal abstração é um fato real; não é o resultado de uma operação intelectual subjetiva, mas o efeito de uma relação objetiva e realmente existente.

Com a natureza paradoxal da abstração real, os limites da Darstellung intelectual ou da apresentação dialética são atingidos. Qual é, então, a natureza dessa existência como tal do gênero animal? Marx põe-na como uma mera metáfora, uma personificação (“animalização”) ou uma alegoria? É possível distinguir simplesmente entre o significado dessa imagem (no plano do significado) e seu modo de significação (no plano do significante)? Ou melhor, não é o caso de que a estrutura linguística dessa imagem expressa o próprio paradoxo do modo capitalista de valorização e significação?

De fato, já no nível categórico da forma mercadoria, encontramos os limites de um modo de apresentação que se separa do conteúdo que apresenta. Se seguirmos essa leitura de Marx, coloca-se a questão de saber se – e em que medida – a forma de valor da mercadoria está estruturada de forma metonímica ou metafórica. Essas várias formas, pelas quais o valor e o significado são produzidos, são precisamente o que chamarei de estética da abstração real; isto é, que a forma de valor da mercadoria é estruturada homologamente – e de acordo – com certas formas estéticas de significação – como o símbolo e a alegoria.

A linguagem e o dinheiro têm mais em comum do que uma leitura positivista ou empirista da economia política desejaria. Contra todas as formas descritivas da economia política e suas tentativas de separar o objeto de investigação de seu modo de apresentação, a “virada copernicana” do texto marxista já está articulada na primeira frase de O capital: “A riqueza das sociedades em que vigora o modo de produção capitalista aparece como uma ‘imensa coleção de mercadorias’; a mercadoria individual aparece como sua forma elementar”. A partir da forma da aparência, introduz-se o problema da apresentação e do entrelaçamento do método e seu objeto. A linguagem não é externa a este problema, mas encontra aí o seu lugar.

Seguindo O capital de Marx, a mercadoria tem uma dupla natureza: valor de uso e valor de troca. No entanto, enquanto a primeira categoria, valor de uso, parece não ser problemática – eis que se oferece à intuição sensível como uma coisa empírica que satisfaz uma determinada necessidade humana – a segunda expressa uma categoria social abstrata, valor. Como portadora de valor de troca, uma coisa em seu caráter de mercadoria expressa algo que excede sua “coisidade” inerentemente qualitativa.

Além disso, do ponto de vista total da acumulação de capital, uma mercadoria nada mais é do que a materialização ou cristalização de uma certa substância social: “qual é a substância social comum de todas as mercadorias?” É o trabalho, diz Marx, e “não só trabalho, mas trabalho social”. Em O Capital, Marx definirá precisamente o trabalho social como “abstrato” ou como “trabalho humano abstrato”, o qual está em oposição ao “trabalho concreto”.

Mais tarde, foi Alfred Sohn-Rethel, amigo de Walter Benjamin e Theodor W. Adorno, quem examinou a materialidade não empírica da abstração realizada pelo trabalho humano abstrato. A hipótese especulativa de Sohn-Rethel afirma que na abstração da mercadoria já está inscrito o sujeito transcendental kantiano – e com ele a origem do pensamento abstrato que remonta à filosofia grega e a introdução das primeiras moedas impressas por volta de 700 a. C. Sem discutir essa hipótese, parto de sua noção de “abstração real”.

À primeira vista, a abstração da mercadoria simplesmente designa o ato de igualar duas coisas empiricamente diferentes como mercadorias, abstraindo de seus atributos particulares. As coisas como mercadorias podem ser postas como equivalentes se forem reduzidas a uma “substância” comum. Essa abstração redutiva transforma as “coisas”, qualquer que seja seu uso específico, em portadoras de uma substância, qual seja ela, quantidades homogêneas de trabalho humano abstrato. Tais coisas entram, então, numa relação quantitativa, ou seja, valor de troca.

Aqui, a substância não é um predicado essencial; antes, expressa uma relação social instável — a relação de valor. A relação de valor não existe em si, apenas para si mesma, ou seja, as relações de valor são puramente diferenciais; cada valor atinge sua posição quantificável por diferir de todos os outros valores.

Essas relações de valor diferenciais são expressas por valores de troca: x mercadoria A = y mercadoria B. Os valores das mercadorias A, B, C etc., portanto, não precedem a relação de troca através da qual são expressos. Embora expressivo, o valor de troca aparece antes do que é expresso por ele, ou seja, o valor.

Contra as lógicas lineares atemporais, a relação de troca pertence a um looping lógico temporal constitutivo da forma do valor: a qualidade é produzida pela abstração, enquanto a quantidade é produzida apenas pela diferença. A qualidade (o “expresso”) precede logicamente a quantidade (o “expressando”), mas a quantidade “em tempo real” parece vir primeiro.

Seguindo Marx, devemos, portanto, distinguir entre duas operações distintas que, no entanto, ocorrem ao mesmo “tempo”. O caráter dual da mercadoria, a cisão entre valor de uso e valor de troca, já expressa uma abstração – uma abstração do valor de uso – que permite isolar a substância qualitativa comum de cada mercadoria, ou seja, seu valor como trabalho abstrato.  Essa qualidade de ser valor se expressa na relação de troca como valor de troca.

Assim, a abstração inicial dos valores de uso, implícita no caráter dual de cada mercadoria, redobra-se no nível do valor de troca. Cada valor de troca adquire seu valor quantitativo de maneira diferenciada em relação a qualquer outro valor de troca. Como veremos, a duplicação do caráter dual da mercadoria tem consequências de longo alcance.

No entanto, por ora, concentra-se no ato inicial de abstração da mercadoria como uma abstração do valor de uso. Em sua leitura de O capital, Sohn-Rethel insiste que a abstração da mercadoria é real e, portanto, não subjetiva ou induzida pelo pensamento; assim, não é redutível às faculdades intelectuais do sujeito transcendental kantiano.

O laço lógico temporal que se identifica aqui como pertencente à forma do valor, refere-se a um processo real de troca – uma equação efetivamente realizada das coisas como mercadorias, que adquire, ao mesmo tempo, a forma do pensamento, ou seja, uma abstração. Diz Sohn-Rethel: “Onde quer que ocorra a troca de mercadorias, ela acontece mediante uma efetiva ‘abstração’ do valor de uso. Esta não é uma abstração que ocorre na mente, mas de fato.”

É nesse sentido que o termo “abstração real” de Sohn-Rethel leva O capital de Marx à sua conclusão epistêmica e materialista. Já Marx descobrira uma ligação fundamental entre a forma de abstração da mercadoria e a forma de pensamento articulada pelas categorias da ciência burguesa: essas “são formas de pensamento socialmente válidas e, portanto, objetivas, das relações de produção pertencentes a um modo social de produção historicamente determinado, isto é, produção de mercadorias”.

O lugar dessas formas de pensamento é a linguagem como meio não limitado à sua função comunicativa instrumental. Essa linguagem, é claro, é também a linguagem do próprio texto marxista, que não adquire a posição de uma metalinguagem neutra, incontaminada de seu objeto de crítica e de formas de pensamento socialmente válidas. Dessa forma, o modo de apresentação de Marx revela a estrutura de seu objeto de investigação.

Retornando à imagem de Marx, pode-se agora especificar a paradoxal existência aí do gênero “animal”. A abstração real é um modo de existência que aponta para a homologia estrutural da forma linguística do pensamento e da forma econômica do valor. Isso não quer dizer que ambos sejam iguais. Muito pelo contrário: o ponto de Sohn-Rethel era precisamente que a abstração real, como implicada pela forma valor da mercadoria, não tem apenas a forma de pensamento, mas também deve sua existência a um processo real de troca como uma equação de mercadorias efetivamente realizada.

No entanto, a abstração real revela mais sobre a forma de pensamento ou, mais precisamente, o modo linguístico de apresentação, do que Sohn-Rethel foi capaz de apreender. A descoberta científica da abstração real está escrita em uma linguagem que se baseia em certos modos estéticos de significação, tropos, linguagem figurativa – o “animal” – que compartilham a lógica de seu objeto de investigação significado, isto é, o valor.

 Se levarmos a sério a homologia do modo de apresentação e seu objeto, podemos expandir nossa questão para a questão de uma suposta homologia das relações de valor na linguagem e na economia política. A estética da abstração real é constituída econômica e linguisticamente – ela se relaciona com o mundo sensível e suprassensível.

Notas:

[1] Primeira parte do artigo Sensuous supra-sensuous: the aesthetics of real abstraction, de Sami Khatib, publicado no livro Aesthetic Marx, ed. Samir Gandesha e Johan Hartle, Londres: Bloombury, 2017.