Por Igor Coura de Mendonça
Depois de ler o texto “Uma esquerda que congela no deserto”, refleti em comentários que gostaria de fazer. Se eles soarem como uma crítica áspera ao texto, não foi essa a minha intenção. Eu apenas me senti instigado a trazer uma resposta justamente pelas provocações que o texto apresenta.
<< O capital, devido à racionalização de sua própria substância mediante a competição, livra-se do trabalho que cria valor, gerando assim uma humanidade economicamente supérflua, mas também um mundo ecologicamente devastado >>
Não acredito que o capital seja o criador de uma economia “supérflua”. Nunca houve um “modelo econômico não-supérfluo”, nem acredito que vá existir enquanto os seres humanos continuarem a ser humanos, ainda que educados.
A competição é a única forma que conheço de se gerar preços realistas. Quanto menor o acesso de atores à livre entrada e saída do comércio de produtos e serviços, menor é a capacidade da sociedade de saber o que produzir para atender suas necessidades, podendo chegar ao ponto em que até as necessidades mais básicas deixam de ser atendidas.
Isso não quer dizer que “liberalismo econômico” é uma panaceia ou um ideal político a ser perseguido. Longe disso, uma vez que atores econômicos estão constantemente tentando bloquear o acesso de novos atores aos seus mercados, seja através de cartéis, seja através de lobby, seja através de discriminação social, seja através de violência e ódio.
O problema está em acreditar que a solução para alcançar uma sociedade estável e satisfeita é confiar em grupos de poder. Assim como a competitividade na economia fica constantemente sobre ataque, os processos democráticos na política também ficam. Enquanto formos humanos, NUNCA chegaremos a uma “solução sistêmica”, porque sempre vamos ter atores agindo para acumular poder, seja esse poder dinheiro ou orçamento.
A única forma pragmática e realista de se resolver os problemas do “capitalismo” é através da geração de políticas públicas que se mostrem efetivas para combater os problemas reais da sociedade: acesso aos bens que permitam que essas pessoas se sintam satisfeitas e possam perseguir suas vontades.
Uma vez descoberta uma política efetiva, ela precisa que a sociedade se faça ouvir para implementá-la, e tenha condições de saber como ela está sendo implementada. Democracia aplicada para a evocação da ciência aplicada, seja essa ciência econômica, sanitária, social ou o que for. Desde que pautada em evidências, e desde que autorizada pela sociedade.
Assim, a única forma de impedir maiores desastres ambientais é pela pressão democrática em cima de ação via políticas públicas efetivas. Mudar o modelo econômico de “capitalista” para qualquer outro “ista” não vai mudar o rumo desastroso da produção econômica atual. Pode até desacelerá-lo por reduzir a eficiência atual. Nós já temos tão poucos mercados funcionando de forma minimamente eficiente, se quiserem reduzir isso mais ainda estamos fadados ao fracasso.
Revoluções servem apenas para derrubar um poder das mãos de um grupo pequeno e jogá-lo nas mãos de outro grupo pequeno.
Em tempo: Se surgir um “modelo econômico” que resolva o problema da vontade humana em ser supérflua; que substitua a capacidade dos preços competitivos de informar pra sociedade para onde a produção deve ir; e que não seja fácil de cair nas mãos de uma nova forma de oligarquia, aí sim teremos uma solução sistêmica.
Mas eu sou pessimista com relação a isso. Não é que seja impossível.
A transição demográfica iniciada na revolução industrial a partir de meados de 1750 ainda está acontecendo. A evolução do tamanho das populações, do fluxo das migrações, e a resposta que as sociedades mundo afora darão para essas questões, podem mostrar um mundo novo que ainda não conhecemos e que se tentarmos prever correremos o mesmo risco quando os cientistas alardearam o mundo sobre superpopulações. Projeções são guias e sugestões, não podem ser dadas como fatos.
A evolução tecnológica também pode, quem sabe um dia, permitir formas de expressão democrática ou até de conhecimento da produção econômica tão poderosos que permitam resgatar modelos hoje considerados falidos, como o planejamento econômico através do Estado. Mas isso pra mim é ainda ficção científica, e minha ignorância no assunto me faz imaginar muito mais uma Matrix do que qualquer outro cenário!
<< Eis que o capital atua agora como autômato em escala global >>
O capital tenta agir como um autômato, mas basta incluir um emoji da bandeira de Taiwan para lembrar quem ainda manda por aqui. Longe de mim defender a ditadura chinesa: o que eu quero provocar aqui é um pensamento de que os bilionários e as grandes empresas privadas ainda são extremamente dependentes de aval estatal e de lobbies. Elas estão em constante risco de serem os próximos Rockfeller.
E as gigantes chinesas mostram que a alienação com o Estado ainda é necessária em boa parte do mundo, como ocorreu com as empresas que avançaram pra cima dos Estados durante a colonização e a guerra fria. O dinheiro só está nas mãos deles porque os Estados querem deixar o dinheiro nas mãos deles. E a qualquer momento o jogo pode virar. Essa visão distópica de mega corporações mandando no mundo pode sim ser realista, mas os meios para que isso aconteça são mais complexos do que se imagina. O futuro distópico mais “capitalista” que eu consigo imaginar é o que ocorre no México e, pouco a pouco, no Brasil, com a formação dos narcoestados. Sem controlar o poder da violência, nunca haverá controle definitivo.
Quando eu li 1984, ainda na faculdade de administração pública, o que sempre me vinha a mente era o quão custoso seria manter aquele grau de controle. Uma distopia realista mais próxima que eu posso imaginar é uma evolução do que acontece hoje na China: uma simbiose entre o Estado e as grandes empresas de uma forma em que um ajude o outro a manter seu controle e suas luxúrias. As empresas servem às famílias, afinal, mesmo que seja apenas às famílias do CEO e dos acionistas majoritários.
<< Não há outra solução senão tentar uma transformação emancipatória do sistema. >>
Eu não conheço essa solução. Continuo acreditando que ela precisaria enfrentar pelo menos aqueles três pilares que citei: a vontade humana; a eficiência da produção; a formação de oligarquias ainda que independente de capital financeiro.
E eu só acreditaria em uma solução pautada na ciência com evidência, com estatística, com hipótese testável, que possa ser reproduzida por outros cientistas, ainda que parcialmente. Teorias estruturalistas tendem a ser facilmente contaminadas por narrativas atraentes, e por isso eu tendo a desconfiar demais delas. Eu quero um mundo estável, sociedades satisfeitas e justiça para as exceções, e essa vontade contamina a minha capacidade de enxergar com a devida crítica textos cuja narrativa me agrada.