Recuperação econômica e ameaça inflacionária

Postado em 22 de maio de 2021 no blog The political economy of development

Nick Johnson  

O medo do aumento da inflação em países emergentes da recessão induzida pela pandemia do Covid-19 tem se difundido em toda a imprensa financeira e de negócios nos últimos dias. Eis que tem ocorrido aumentos de preços além do esperado, principalmente nos EUA. Alguns economistas e comentaristas argumentaram que o aumento é temporário. Ocorre devido a fatores do lado da oferta, como gargalos, uma “recuperação” dos gastos dos consumidores à medida que as famílias começam a gastar a poupança acumulada, mas também devido ao estímulo fiscal significativo. A abundância de demanda e problemas de oferta oferecem uma explicação simples para os aumentos de preços. Quando a demanda excede a oferta, os preços sobem, algo que também pode acontecer no caso do nível de preços da economia como um todo.

Quando eu estava estudando economia na faculdade, os livros didáticos ofereciam uma variedade de explicações para a inflação, ou seja, para os aumentos sustentados no nível de preços. Uma delas era o “puxão da demanda”: gastos excessivos batendo contra a falta de oferta, sejam estes dos trabalhadores, do governo ou mesmo dos capitalistas. Uma outra era o “empurrão de custos”: subidas de salários ou de outros insumos importantes, como o petróleo. Trata-se aqui de aumentos de preços que alimentam aumentos do nível geral de preços.

Se os sindicatos têm poder suficiente para sustentar os salários reais de seus membros em face dos aumentos de preços, então uma espiral ascendente de preços/salários é possível, mesmo que o ímpeto inicial para a alta dos preços tenha sido, digamos, um choque temporário do preço do petróleo. Em uma economia de mercado, com o tempo, os preços relativos e os níveis de produção em diferentes setores devem se ajustar às mudanças bruscas nos preços dos insumos, mas, no curto prazo, surtos de inflação geral de preços são possíveis.

A explicação monetarista da inflação, associada a Milton Friedman, oferece uma estória ligada ao lado da demanda: a criação excessiva e irresponsável de dinheiro, atribuída ao governo, diante de uma oferta limitada que causa aumentos dos preços. A falta de oferta também pode ser atribuída à regulamentação excessiva ou aos impostos e gastos. A “culpa” nesse caso também é atribuída ao governo. Essa teoria é simplista[1], mas foi muito popular na época de Thatcher e Reagan.

Embora as políticas macroeconômicas nela baseadas não tenham funcionado, deixaram um legado de suspeita quanto a intervenção governamental, assim como a crença de que o Estado não conseguiria alcançar e sustentar o pleno emprego por meio da política macroeconômica, o que só geraria uma inflação prejudicial. Em vez disso, o pleno emprego poderia ser alcançado pela desregulamentação dos mercados de trabalho e de produtos. Essa prescrição era o oposto da crença keynesiana do pós-guerra de que era possível promover o pleno emprego por meio da política monetária e fiscal, controlando a inflação por meio da regulação microeconômica, por exemplo, por meio de uma política salarial resultante de negociações periódicas entre sindicatos, empregadores e o Estado.

Sob Thatcher e Reagan, a inflação caiu, mas em grande parte devido às fortes recessões induzidas por política monetária restritiva e legislação anti-sindical. Isso também alimentou um aumento da estagnação salarial e da desigualdade, principalmente nos Estados Unidos. Após a queda da inflação, veio uma redução das taxas de juros, acompanhada por uma desregulamentação financeira, a qual promoveu grandes aumentos na dívida privada. Essa escalada atingiu a sua apoteose com a crise econômica e financeira global de 2008.

Hoje, muitos economistas estão preocupados com o fato de que a escala do estímulo fiscal nos EUA e em outros lugares pode não ser eficaz para inflar a economia. Se a elevação da inflação subir acima da meta do banco central, de acordo com a ortodoxia atual, pode se tornar permanente já que se enraíza em expectativas que se alimentam a si mesmas. Isso não ocorrerá, então, a menos que as políticas monetária e fiscal sejam novamente apertadas.

Alternativas à teoria ortodoxa da inflação podem ser encontradas nas escolas de esquerda pós-keynesiana e clássica. A primeira dessas duas deu origem, em termos gerais, a uma abordagem que enfatiza o conflito entre capitalistas e trabalhadores sobre as rendas na forma de lucros e salários. Quando as empresas aumentam os preços mais rápido do que os salários recebidos pelos trabalhadores, isso pode ser contestado pelos sindicatos. Estes pressionam por salários mais altos e, dependendo do equilíbrio de poder no local de trabalho, podem efetivamente pressionar os custos.  

Se o gasto agregado na economia está crescendo rápido o suficiente, isso permitirá que as empresas respondam aumentando os preços mais uma vez, potencialmente dando origem a uma espiral salários-preços e uma inflação sustentada de preços mais alta. No entanto, se a produtividade aumentar suficientemente rápido, tanto os lucros quanto os salários podem aumentar juntos, deixando menos necessidade de uma inflação gerada por conflitos e menos necessidade de as empresas aumentarem os preços, mesmo que paguem salários mais altos enquanto obtêm lucros satisfatórios.

Se o crescimento da produtividade for insuficiente – ao contrário das crenças (e certamente desejos) de alguns pós-keynesianos –, o surto inflacionário pode ser “quebrado” por políticas monetárias ou fiscais deflacionárias. Uma desaceleração brutal ou recessão e, em consequência, um aumento do desemprego são resultados prováveis desse processo.

A teoria “clássica” da inflação, apresentada por Anwar Shaikh em sua magnum opus Capitalism, dá mais ênfase do que outras teorias ao papel da taxa de lucro medida para a economia como um todo. Shaikh argumenta que novas injeções de poder de compra na economia pelo lado da demanda e o “aperto” da economia pelo lado da oferta – eis que esta está regulada pela taxa de lucro –, dão origem aos aumentos de preços. Os aumentos na demanda agregada ou no poder de compra podem provir de qualquer fonte, seja privada, governamental ou estrangeira.

Ele define o aperto da economia pelo lado da oferta com base na própria taxa de lucro. Assim, uma lucratividade crescente pressionará a inflação para baixo. Dada a relação entre o investimento e a taxa de lucro, quanto mais dos lucros retidos forem reinvestidos em nova capacidade, mais as empresas se tornarão capazes de enfrentar eventuais gargalos na produção. Ele argumenta que a taxa máxima de crescimento da economia é igual à taxa de lucro, embora geralmente seja inferior a ela.

A teoria de Shaikh foi capaz de explicar a “estagflação” dos anos 1970. Nessa década, a desaceleração do crescimento e o aumento do desemprego coincidiram com o aumento da inflação. Eis como ele argumenta:

“É possível que uma queda na taxa de lucro diminua o crescimento e, portanto, aumente a taxa de desemprego. Mas se a taxa de crescimento cair menos do que a taxa de lucro (digamos, devido a um estímulo acelerado do poder de compra recém-criado), a economia se tornará mais propensa à inflação devido a uma crescente “taxa de utilização do crescimento”.[2] Em outras palavras, torna-se possível ter um aumento da inflação ao lado do aumento do desemprego.”

Essa formulação dá origem a uma relação do tipo curva de Phillips negativa entre a inflação e o inverso da taxa de utilização do crescimento, tal como foi definida pelo próprio Shaikh. Constata-se em seu livro que essa teoria parece oferecer uma relação de substituição muito mais significativa do que a curva de Phillips tradicional. Esta, como se sabe, apresenta uma relação negativa entre a inflação de preços ou dos salários e o grau de desemprego.

Como a teoria clássica de Shaikh se relaciona com os eventos de hoje? Não há dúvida de que o presidente Biden embarcou em um estímulo fiscal substancial; ademais, há um grande acúmulo de gastos do consumidor advindos do fato de que as famílias estão agora reduzindo as suas poupanças acumuladas para níveis mais baixos. A política monetária continua muito frouxa. Portanto, não há falta de novo poder de compra ou demanda agregada. Se isso se traduz em uma inflação muito mais alta e mais sustentada, depende da relação entre investimento e lucratividade, assim como da taxa de utilização do crescimento.

Se a taxa de crescimento econômico aumentar mais rapidamente do que a taxa de lucro devido ao forte aumento na demanda, a economia se moverá para mais perto de sua restrição do lado da oferta e se tornará mais propensa à inflação. Mas os keynesianos podem dizer “espere um pouco”: os aumentos na demanda podem aumentar a própria taxa de lucro, aliviando assim a restrição de acordo com a teoria de Shaikh.

Ora, isso é realmente uma possibilidade. Ainda assim, é provável que surjam todos os tipos de gargalos durante a forte recuperação inicial da demanda, o que terá pelo menos efeitos temporários sobre os preços relativos em todos os tipos de indústrias. Como enfrentar essa situação? O truque será permitir ou mesmo encorajar a ocorrência da necessária mudança econômica estrutural, já que a pandemia e os bloqueios associados certamente estão tendo uma mistura de efeitos temporários e permanentes sobre a economia.

Outro impacto de uma política fiscal muito mais frouxa pode ser o aumento das taxas de juros, o que poderia, por sua vez, deflacionar os preços dos ativos financeiros, de ações a imóveis. Certamente isso já deveria ter acontecido há muito tempo, embora possa ser doloroso para muitos. Dada a dívida acumulada de famílias e empresas, isso levaria a um aumento da falência à medida que o peso do reembolso da dívida aumentasse. Mas, para a economia como um todo, a inflação dos ativos financeiros, ao lado do crescimento historicamente fraco dos salários, contribuiu para a crescente desigualdade de renda e riqueza.

E essa é uma das consequências mais insidiosas da dependência da política monetária para apoiar a demanda nas últimas décadas. Uma reversão disso seria saudável no longo prazo, à medida que o consumo passasse a ser mais sustentado por salários do que pela acumulação insustentável de dívida privada. Talvez seja necessária alguma forma de jubileu da dívida que anule a dívida das famílias.

De forma mais geral, podem ser encontradas formas de redistribuir a renda para as famílias mais pobres e de classe média, seja por meio do aumento dos salários, do aumento da progressividade do sistema tributário ou do fortalecimento do estado de bem-estar. Tudo isso daria aos mais necessitados maior capacidade de pagar dívidas. Assim, sustentaria a parcela da renda familiar no PIB. Contrabalancearia, por outro lado, o fato de que muitas empresas são forçadas à falência ou a passagem por períodos de reestruturação.

Uma grande reestruturação de muitas economias fará parte do legado da pandemia. Aumentos temporários na inflação são um resultado potencial dos ajustes. Se isso se torna um problema ou não, está inevitavelmente na mente dos formuladores de políticas. Mas os desequilíbrios gerados por uma combinação de inflação financeira impulsionada por políticas e estagnação de salários para a maioria nos EUA e em outros lugares precisam ser superados para reduzir a desigualdade e fortalecer a democracia e a estabilidade política.

Isso pode levar tempo, mas uma mudança da expansão dos mercados financeiros para o crescimento dos mercados de bens e serviços, de Wall Street para a Main Street, produzirá uma situação progressiva, criativa e proativa. Levaria, também, a um comprometimento com um desenvolvimento mais sustentável em todos seus aspectos. Nas circunstâncias mais difíceis, sempre existe a oportunidade de melhorar as coisas.

______________________________________________

Notas:


[1] N. T. Como se sabe desde Marx pelo menos, essa teoria é vulgar e falsa. Ela se baseia na ideia de que o nível de preços está fixado pela divisão de um montante de dinheiro por uma quantidade agregada de produção. Assim, ignora por completo a dinâmica de acumulação da economia capitalista. 

[2] N. T. A taxa de utilização do crescimento é definida do seguinte modo: Seja “ r = P/K ” a taxa de lucro líquida (P não contém nem os impostos nem os juros compromissados e pagos); seja “ gK = I/K ”a taxa de acumulação real; e seja “ τ’ = I/P ” a parcela do investimento no lucro líquido, uma grandeza que Shaikh denomina também de taxa de aproveitamento do crescimento potencial da economia ou, mais sinteticamente, taxa de utilização do crescimento.