Eis aqui, à princípio, uma frase bem enigmática: “o presente livro volta-se para um mito moderno: a criação de valor na economia”. Quê livro? Trata-se de O valor de tudo – produção e apropriação na economia global, de Mariana Mazzucato (Portfolio Peguin: 2018). Aí, essa autora quer discutir criticamente as narrativas – é esse o termo que emprega – sobre a criação e a apropriação de valor na sociedade contemporânea. O tema fora central no passado, mas no curso do final do século passado e no começo do presente século, segundo ela, andou meio sumido da teoria econômica. De qualquer modo, julga que é requerido agora “um tipo de narrativa radicalmente diferente acerca de quem criou riqueza originariamente – e de quem, na sequência, a extraiu”.
Por que a criação de valor lhe parece um mito? Ora, é ela própria quem fornece a explicação. Ao usar essa palavra faz referência a uma recomendação de Platão em A república, segundo a qual é preciso “vigiar os criadores de fábulas”. Logo, essa autora – e isso deve ficar claro logo de início – não trata a questão do valor econômico no campo da ciência moderna, mas da perspectiva de um discurso que se faz a si mesmo a partir de si mesmo, sem estar prisioneiro à realidade e ao real subjacente . Daí a rememoração da mitologia e de sua vocação para a transmissão de lições morais. Ela não teme voltar à Grécia antiga, à uma época em que os valores eram disseminados supostamente por contadores de histórias. Ou seja, toma o ensino de Platão numa perspectiva pós-moderna já que, segundo pensa e como já deve ter ficado patente, tudo se resolve como uma questão de narrativas.
Mas por que retomar a questão do valor de um modo tão enfático? Mazzucato – assim como muitos outros economistas do sistema – parece estar desconsolada com os rumos atuais do capitalismo. Se este muito prometera por dois séculos, ainda que bem turbulentos e pontuados por crises menores e maiores, agora desaponta como pouco produtivo, apropriador e apenas preocupado com as dores dos ricos – e não com as dores do mundo. Ela, gostaria, portanto, de vê-lo mudado e revigorado como criador de riqueza para muitos. E, para tanto, julga que é preciso em primeiro lugar reconsiderar de novo a questão do valor econômico, para bem distinguir quem o produz e quem dele se apropria.
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