Autor: Eleutério F. S. Prado [1]
Como é sabido o Manifesto Comunista, publicado pela primeira vez em 1848, inicia-se assim: “Um espectro ronda a Europa – o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa unem-se numa Santa Aliança para conjurá-lo: o papa e o czar” etc. etc. etc. Karl Marx e Friedrich Engels, é bem evidente, usaram o termo “espectro” como uma metáfora para falar de uma possibilidade real que, já na ascensão do capital industrial, assustava as burguesias e seus representantes no continente de nascimento do capitalismo. Se essa assombração tem assustado os donos do capital na história do capitalismo, não haveria também uma assombração que vem abismando a classe trabalhadora?
Samir Gandesha [2}, em seu esforço [3] para pensar o aparecimento dos novos extremismos de direita na cena política do século XXI (excertos de seu texto original são apresentados em sequência desta nota), sugere que sim; para esse autor há, sim, um outro espectro e ele vem ameaçando as forças da transformação desde os primórdios do capitalismo industrial. Por se antepor continuamente ao espectro do comunismo na história do capitalismo, considera que esse abantesma ressurge nas crises do sistema, especialmente quando elas se tornam crises do liberalismo. Se o fascismo faz sempre critica aparente ao sistema é porque subsiste como contrarrevolucionário.
Note-se que esses espectros têm uma origem comum já que o capitalismo não evolve sossegadamente nas dimensões conjugadas da economia e da política. A contradição entre as forças produtivas e as relações de produção, que prospera nesse modo de produção, engendra crises que exigem transformações, as quais tem de ocorrer sejam ainda no seu interior e nos seus limites sejam para além deles.
Como é bem sabido, no prefácio de Para a crítica da Economia Política, Marx apresentou assim a dinâmica de transformação do modo de produção capitalista:
“Em uma certa etapa do seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição com as relações de produção existentes ou, o que é apenas uma expressão jurídica delas, com as relações de propriedade no seio das quais se tinham até aí movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas, estas relações transformam-se em seus grilhões. Ocorre então uma época de revolução social”.
Ora, essa descrição é especialmente apropriada ao capitalismo. Como o desenvolvimento desse modo de produção ocorre por meio por ciclos curtos ou longos de crescimento com realimentação positiva, a contradição econômica entre as forças e as relações de produção conjugada com a contradição de classe entre burgueses e trabalhadores não deixa de gerar grandes tensões. Mais do que isso, ela gera crises e conflitos, os quais se manifestam por meio de lutas econômicas, sociais e políticas que tendem a se intensificarem e a polarizarem. É assim que, nas épocas de revolução social, os espectros antes mencionados, que supostamente pairam no céu, descem para a terra e se encarnam em corpos políticos que passam então a travar lutas decisivas.
Ora, tudo isso pode ser apresentado de outro modo. O processo de acumulação de capital, que tende de maneira imanente à superacumulação, gera impasses e barreiras cada mais formidáveis que podem ou não serem superadas; de modo especial, nesse segundo caso, elas podem ser resolvidas contra ele, por engendramento de um novo modo de produção.
Como esse processo é também um processo existencial de luta pela sobrevivência que se dá seja por meio do emprego para si da força de trabalho seja por meio de seu uso por outrem, ele se manifesta da cena política por meio da luta de projetos ideológicos ou críticos que visam administrar, reformar ou transformar as instituições vigentes. Pode-se dizer, portanto, que são esses projetos encarnados em movimentos políticos que dão corpo de algum modo aos espectros contrários entre si do comunismo e do fascismo. Quando a democracia liberal se mostra insuficiente para conter o primeiro, o segundo se levanta sob diversas formas históricas.
Uma história do presente
Autor: Samir Gandesha
Em vez de testemunhar o retorno do fascismo, como muitos autores têm sugerido, o que temos agora é o espectro do fascismo, ou melhor, estamos diante de espectros do fascismo, ou seja, de uma pluralidade. A palavra “espectro” faz pensar em uma aparição, tanto como Geist (espírito) quanto como Gespenst (fantasma) que, por sua vez, sugere o estranho (das Unheimliche) ou o não-familiar. Como Freud nos lembra, essa palavra em alemão contém em parte o significado de “caseiro” ou “familiar” (das Heimliche). Em sua palestra ministrada na União dos Estudantes Socialistas Austríacos da Universidade de Viena, em 6 de abril de 1967, Theodor W. Adorno falou já da “forma fantasmagórica” própria do fascismo (eigenegespenstische Gestalt).
O fantasma do fascismo, poderíamos dizer, está rapidamente se tornando o espírito de nossos tempos. Falamos de espectros porque ele não está advindo simplesmente no seu domicílio original, ou seja, na Europa. O que vemos agora é o retorno do fascismo à vida pública de um modo que se tornou um fenômeno verdadeiramente global. Na Índia, Turquia, Brasil, Egito, Argentina e Filipinas, vemos o retorno de elementos da política fascista, embora não vejamos o movimento de massa fascista contrarrevolucionário totalmente desenvolvido como surgiu na Europa nas décadas de 1920 e 1930.
O fascismo do século XXI também se afigura como algo estranho precisamente porque, como já foi sugerido, transcende o local de nascimento aparentemente original do fascismo. O seu verdadeiro momento de origem foi, como Aimé Césaire já havia apontado em 1950, as colônias da Europa. Essas foram os laboratórios originais para as formas italianas e alemãs de fascismo.
Esse estranho, contudo, é estranhamente familiar porque, para Freud, ele sugere aquilo que, tendo sofrido repressão, retorna mais tarde como algo discordantemente estranho, de um modo quase irreconhecível. Vem a ser, pois, o lado bárbaro da civilização que reaparece. O fascismo é estranho na medida em que parece ser um fenômeno pertencente a uma era distante, de algum século anterior, mas que está aí agora, de modo muito próximo, nas duas primeiras décadas do presente século.
Como tal, ele manifesta uma condição socioeconômica, sociopsicológica e política na qual traumas históricos anteriores não foram trabalhados ou, se o foram, foram-no apenas de forma parcial e unilateral. “Considero a sobrevivência do nacional-socialismo dentro da democracia – disse Adorno em uma palestra importante no (…) pós-guerra – “como potencialmente mais ameaçadora do que a sobrevivência de tendências fascistas contra a democracia”.
O fascismo ainda assombra porque a democracia liberal foi e continua sendo constitucionalmente incapaz de enfrentar a contradição fundamental que a revolução burguesa legou desde o seu nascimento. Subsiste, pois, uma contradição básica entre uma política democrática e uma economia liberal que põe um sujeito inerentemente dividido entre o cidadão universal e o homo oeconomicus particularista.
O fascismo, por isso, continua sempre a figurar como uma presença fantasmagórica dentro desta ordem, ocasionalmente assumindo uma forma material e concreta. Infere-se das “Teorias do fascismo alemão” de Walter Benjamin e de seu “Sobre o conceito de história”, que “cada ascensão do fascismo testemunha uma revolução fracassada”. Ao fazer essa afirmação, Benjamin estava pensando na Revolução Alemã ocorrida cerca de uma década antes.
Pode-se, no entanto, sugerir que as raízes do fascismo residem no fracasso em série em levar a cabo a própria revolução burguesa. Como se sabe, o seu episódio mais importante – depois da Revolução Haitiana (1791–1804) (…) – aconteceu o desastre de 1848. “A tradição de todas as gerações mortas pesa como um pesadelo nos cérebros dos vivos”, escreveu Marx, comentando este evento histórico.
A Revolução fracassada de 1848 foi um evento muito importante para a Europa, particularmente para os principados alemães, pois este foi o momento preciso em que o nacionalismo mudou de uma direção republicana para uma direção cada vez mais autoritária (…). O fim deste ciclo de atividade revolucionária na França nesta época produziu o bonapartismo que, de muitas maneiras, anteciparia o fascismo do século XX. Ele pode ser visto como um momento de transição do parlamentarismo para o fascismo.
Houve, no entanto, outros fracassos, que foram causados, sem dúvida, pelos esforços políticos e militares nada desprezíveis dos representantes do capital: a dissolução da Comuna de Paris em 1871, a ossificação da Revolução Russa após a morte de Lenin, se não antes com o esmagamento de Kronstadt, e a destruição da República do Conselho da Baviera em 1918.
Ademais, pode-se adicionar à lista anterior o momento revolucionário de 1968, cujas principais batalhas foram travadas por movimentos de libertação nacional e revolucionários no Sul Global – ora, isso, pelo menos em parte, ajudaria a explicar as dimensões globais do ressurgimento do autoritarismo no século XXI. (…)
O atual retorno misterioso do fascismo pode ser situado entre dois eventos-chave: os ataques da Al-Qaeda de 11 de setembro de 2001 e a crise financeira de 2007-8. O primeiro evento, mesmo sendo bem trágico, tornou-se uma justificativa para uma política externa neoconservadora (…). Ora, isso já havia sido previsto pelo establishment norte-americano (…) como uma forma de identificar “desafios e oportunidades” para os Estados Unidos no século XXI.
A política encetada desde então requereu aumentos nos gastos militares, o fortalecimento dos laços com “aliados ditos democráticos” no confronto com seus inimigos, a promoção da “liberdade” política e econômica no exterior e a afirmação do “papel único na preservação e extensão de uma ordem internacional amigável à nossa segurança, nossa prosperidade e nossos princípios”. (…)
O centro extremo, de acordo com Tariq Ali, “é o sistema político que cresceu sob o neoliberalismo. Ele subsiste nos Estados Unidos em que há (…) dois partidos políticos com clientelas diferentes, mas financiados pela mesma fonte e basicamente executando as mesmas políticas.” Foi ele que pôs em prática a política neoconservadora paradoxal que acopla “intervenção humanitária” no exterior (…) com uma reconstrução neoliberal do Estado. Implementa, assim, um processo de acumulação por despossessão, privatização e desregulamentação que gera uma redistribuição ascendente (e expropriadora) da riqueza.
Se o colapso da União Soviética e o 11 de setembro formam, em conjunto, um primeiro encadeamento, então o 11 de setembro e o colapso financeiro de 2007-8, também em conjunto, formam outro dentro da qual o espectro do fascismo começou a assombrar o presente. Mas o que queremos dizer precisamente quando falamos de “fascismo”? O termo se aplica adequadamente ao período contemporâneo? Antecedentes históricos distantes podem ser encontrado nas origens da tradição política do Ocidente. (…) Contudo, pôr muito foco nos antecedentes seria enganoso já que o fascismo é um fenômeno especificamente moderno. (…) [Como compreendê-lo?]
Avulta a contribuição feita pelo marxismo ocidental, em particular por Georg Lukács e pela Escola de Frankfurt, para a compreensão das dimensões subjetivas da crise. Ela mostrou [por meio do estudo da personalidade autoritária] como a classe trabalhadora se tornou suscetível ao canto da sereia do fascismo. Mas ela mostrou também que o imperialismo, e isso deve ser enfatizado, foi um mediador-chave.
A ascensão do fascismo na Europa foi motivada pela dinâmica da acumulação de capital, tendo sido justificada por meio de uma forma específica de ultranacionalismo, assim como, também, por meio de uma postulação sobre uma suposta “missão civilizadora” da Europa. Ao deslocar a classe por meio de identidades nacionais, a burguesia foi capaz de ganhar o apoio da pequena burguesia inferior e do lumpemproletariado, ou daquelas classes cuja precariedade social as torna particularmente inseguras e suscetíveis à xenofobia e a formas extremas de nacionalismo dentro do contexto de um projeto imperialista.
Como Sohn-Rethel demonstrou, e isso foi confirmado por vários teóricos marxistas nas primeiras décadas do século XX, o capitalismo busca abordar suas crises fundamentais de superacumulação, bem como as tensões entre o desenvolvimento tecnológico acelerado (forças de produção) e as relações de produção, buscando se aproveitar de sociedades não ou pouco capitalistas como base para a renovação do lucro ou extração de mais-valor, [mas também intensificando a exploração nas sociedades em que ele já se desenvolveu bastante]. (…)
A esse respeito, a discussão recente de Samir Amin sobre o fascismo é muito útil (…) Amin argumenta que “o fascismo é uma resposta política particular aos desafios com os quais a gestão da sociedade capitalista pode ser confrontada em circunstâncias específicas”. Ele sugere ademais que ele tem duas características. A primeira está subjacente às suas diatribes contra o “capitalismo” ou contra as “plutocracias”; pois, na verdade, o fascismo representa uma resposta conservadora às crises capitalistas. Amin argumenta que a segunda característica do fascismo é que essa resposta consiste basicamente numa “rejeição categórica da ‘democracia’”. Eis, para finalizar, como Amin argumenta:
“O fascismo sempre substitui os princípios gerais nos quais as teorias e práticas das democracias modernas são baseadas – reconhecimento da diversidade de opiniões, recurso a procedimentos eleitorais para determinar a maioria, garantia dos direitos da minoria etc. – pelos valores opostos de submissão às exigências da disciplina coletiva e da autoridade do líder supremo e seus principais agentes”.
Resumo final
Eleutério F. S. Prado
O fascismo é uma assombração constante que paira sobre o capitalismo. Ao passar de espectro à fenômeno concreto, constitui sempre um movimento político que mina (fascismo neoliberal) ou suprime (fascismo europeu classico) a democracia liberal, que sela melhor as suas contradições, que enrijece a sua estrutura de classe, com a finalidade de aumentar a taxa de exploração, conquistar mercados e elevar ao máximo a taxa de lucro. Ao se manifestar, ele mostra que a barbárie, assim como a extinção como possibilidade real, subsiste na civilização propiciada pelo desenvolvimento do capitalismo.
[1] Professor aposentado da USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blogue na internet: https://eleuterioprado.blog. Neste escrito, reformulo uma tese que sustentei anteriormente segundo a qual o extremismo neoliberal não poderia ser considerado como um fascismo; agora penso que se deve distinguir os fascismos europeus do século XX dos fascismos neoliberais do século XXI, todos os quais são historicamente bem distinguíveis.
[2] Professor Associado do Departamento de Humanidades e Diretor do Instituto de Humanidades da Universidade Simon Fraser, Canadá.
[3] Ver Gandesha, Samir – Introduction. In: Spectres of Fascism – Historical, Theoretical and International Perspectives. Londres: Pluto Press, 2020.

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