Publica-se aqui uma tradução de um artigo de Ian H. Angus The dissolution of Marxist humanism em duas partes para, numa data em sequência, publicar também um comentário do autor deste blogue sobre o conceito de “homem” – humanitas – em Karl Marx.
Autor: Ian H. Angus [1]
1.Introdução
Em 1906, Benedetto Croce, em seu O que está vivo e o que está morto na filosofia de Hegel, questionou a filosofia de uma nova maneira. Em vez de perguntar o que é verdadeiro e o que é falso na linguagem estabelecida da filosofia, ele colocou a questão de uma maneira que era imediatamente histórica: o que era verdadeiro poderia ter se tornado falso e o que era falso poderia ter se tornado verdade. Perguntava sobre o aqui e agora da filosofia, não sobre o seu conteúdo eterno.
É certo que essa referência histórica já existia em Hegel na medida em que a verdade era entendida como algo que vai surgindo, mas também era vista como culminação da lógica – isto é, a verdade encapsulava a história mesmo emergindo dela. Croce afirmou implicitamente a incompatibilidade entre lógica e história.
O seu veredicto condenava à morte a redução da filosofia à lógica e à dialética das ciências positivas, tal como fora feito por Friedrich Engels. O que é vivo é a ideia de uma filosofia concreta, “uma forma de mente, que deve ser móvel como o movimento do real“.[2] Para que o pensamento móvel capte o movimento da realidade, ele deve estar disposto a se despedir, não só das falsidades do passado, mas também de suas verdades.
Dado que já se passaram mais de meio século desde o icônico ano de 1968 e dada a nossa distância dessa data, uma reflexão sobre a situação filosófica daquela época, pode ser feita agora.[3] 1968 não é simplesmente mais um ano, mas um nome para o que é conhecido como “os anos sessenta”, um tempo cujo mito ainda sobrevive em nossa história cultural. A filosofia naquela época fazia parte do fenômeno internacional dos anos sessenta, no qual a descolonização, a Nova Esquerda, a política juvenil, a luta contra o racismo institucional, a libertação das mulheres, o ativismo antiguerra, o radicalismo cultural e muitas outras vertentes foram tecidas.
A filosofia dos anos sessenta a que me refiro não é o pensamento de uma pessoa situada, nem o de um grupo, muito menos de um partido. É um espaço discursivo dentro do qual operam filosofias orientadas para o seu tempo. Por espaço discursivo, refiro-me a um domínio em que se podem fazer argumentos e explicações, que se estrutura de certa forma, mas que permanece como pano de fundo para articulações e debates filosóficos explícitos.
A interação entre pressupostos de fundo mais ou menos estruturados e articulações explícitas implica que, embora certamente existam filosofias características da época, aquelas que são menos marcadas são subliminarmente necessárias para abordar aquelas que se afiguram como dominantes. Tratarei do espaço discursivo filosófico dos anos sessenta fazendo referência a figuras influentes; contudo, o próprio espaço discursivo é um fenômeno mais abrangente, cuja explicação completa exigiria uma investigação muito mais detalhada.[4]
A própria luta pela verdade opera dentro de tal espaço discursivo. Desse modo, não apenas se nasce em um tempo determinado, mas se luta para vir a ser filho verdadeiro de nosso tempo. Portanto, são os adultos aqueles que talvez possam definir o seu tempo, desempenhando um papel em moldá-lo.
Sem mais preâmbulo, quero afirmar que a filosofia dominante dos anos sessenta era o humanismo marxista ou o marxismo existencial. Quero dizer, ademais, que não vejo nenhuma distinção entre esses dois termos que estavam muito em evidência na época. A interação entre três termos-chave define o espaço discursivo desse período: uma certa compreensão de Marx, o existencialismo (principalmente da variedade francesa) e o humanismo – um termo com uma longa história que assumiu um significado bastante específico.
O humanismo marxista começou nos intercâmbios filosóficos entre a Europa Ocidental e Oriental e tornou-se um fenômeno mundial dominando o “discurso” da época. O que está vivo e o que está morto no humanismo marxista? Essa pergunta pode ser dividida em três partes: 1) o que ele foi? 2) como e por que se dissolveu? E, finalmente, 3) que pontos cegos no humanismo marxista podem ser descobertos retrospectivamente?
2. O que foi o humanismo marxista?
A leitura humanista de Marx tem uma marca inicia: a publicação do livro O conceito de homem em Marx de Erich Fromm, em 1961, o qual teve dezesseis reimpressões até 1971. Fromm convenceu T.B. Bottomore a traduzir os Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx de 1844 para o inglês, com o fim de inclui-lo no seu livro.[5] Os manuscritos estavam disponíveis em alemão desde 1932, mas não haviam entrado nas discussões em inglês. Mesmo na Europa, a Segunda Guerra Mundial interrompeu o estudo da teoria marxista, de modo que a leitura dos anos 1960 ocorreu em grande parte independentemente das discussões anteriores. Bottomore também publicou, em 1963, os Primeiros Escritos de Marx, que incluíam os Manuscritos, em uma edição separada.
O prefácio de Fromm enfatizava que “Marx era um humanista, para quem a liberdade, a dignidade e a atividade do homem eram as premissas básicas da ‘boa sociedade‘”.[6] Da mesma forma, em sua interpretação introdutória em O conceito de homem em Marx, ele enfatizou que “a crítica central de Marx ao capitalismo não é a injustiça na distribuição da riqueza; é a perversão do trabalho em trabalho forçado, alienado, sem sentido, daí a transformação do homem em um ‘aleijão monstruoso’“.[7]
A apropriação de Marx pelo humanismo marxista elaborou a concepção de que o ser humano é capaz de recuperar a sua essência alienada pelo capitalismo por meio da atividade do trabalho criativo. Essa concepção permitiu uma dupla crítica à Guerra Fria: o consumismo como alienante no Ocidente e a sujeição do indivíduo pelo Estado no bloco soviético.[8]
Em 1965, Fromm editou um volume de ensaios com trinta e cinco colaboradores do Oriente e do Ocidente que mostravam que o humanismo socialista havia se tornado não apenas uma tendência filosófica, mas um grito de guerra. Como disse na introdução, “o humanismo socialista não é mais a preocupação de alguns intelectuais dispersos, mas um movimento que se encontra em todo o mundo“.[9]
O controle hierárquico do processo de trabalho, assim como a sujeição do trabalhador individual à fábrica, não parecia diferente em ambos os lados da “cortina”. O humanismo marxista visava evitar o confronto entre Oriente e Ocidente por meio de um retorno ao indivíduo criativo em busca de relações sociais e de trabalho não alienadas.
Essa interpretação humanista estava tão em pauta que Louis Althusser, ao responder à tradução francesa dos Manuscritos na revista comunista La Pensée, em 1962, tentou traçar uma linha estrita entre dois Marx. Assim, relegou a sua obra inicial a um período superado, marcado como mera ideologia política, o qual fora deixado inédito por boas razões.[10] Podemos ver essa pauta também na interpretação de Freud feita por Fromm; pois o conceito de alienação lhe permitiu ver Marx e Freud como pensadores paralelos: por meio de uma análise dos fatores externos que condicionam e limitam os seres humanos, a capacidade de liberdade e ação consciente pode ser reavivada e devolvida ao sujeito humanista.
Como disse: “sendo conduzido por forças para ele desconhecidas, o homem não é livre. Ele só pode alcançar a liberdade (e a saúde) tomando consciência dessas forças motivadoras, isto é, da realidade, e assim pode se tornar o senhor de sua vida (dentro das limitações da realidade) em vez de escravo de forças cegas.”[11] Tanto Marx quanto Freud foram interpretados como autores que descobriram as barreiras que precisam ser removidas para que o sujeito humano possa se tornar livre e autodeterminado.
O marxismo humanista deu base para a crítica da alienação tanto no Ocidente como no Oriente – e não apenas no Ocidente. A Escola Práxis, com sede em Zagreb e Belgrado, que se reunia anualmente no Encontro Verão em Korčula e se expressava na revista internacional Práxis, desenvolveu uma crítica ao autoritarismo soviético em diálogo com vozes críticas no Ocidente. Gajo Petrovi enfatizou que o humanismo de Marx era uma filosofia da práxis e que a ação requer uma orientação para o futuro, de modo que o humanismo seja orientado para “possibilidades humanas historicamente criadas”.[12]
Ivan Svitak elaborou uma tese sobre a convergência entre o Oriente e o Ocidente, sugerindo que a maturidade industrial da União Soviética havia levado à adoção de “uma versão modificada do modo de vida americano“, pois fazia de um alto nível de consumo sua principal prioridade.[13] A possibilidade futura pareceu, assim, estar alinhada com uma crítica à sociedade de consumo e uma recuperação da atividade criativa dos indivíduos sociais.
Uma das principais fontes de orientação veio do estado da autogestão industrial na Iugoslávia. Sem ignorar as suas dificuldades, a autogestão dentro dos países mais independentes do socialismo de Estado forneceu um ponto de partida para o desenvolvimento da democracia industrial como a forma de organização do trabalho, a qual se encaixaria na perspectiva do humanismo marxista. Mihailo Marković argumentou que a “extensão natural e integração de vários órgãos de autogestão em um todo seria uma negação prática do Estado e poria fim à política profissional“.[14]
Enquanto a rejeição do estado autoritário foi mais uma questão de reação imediata no Ocidente, no Oriente provocou a análise do fracasso do socialismo de Estado, assim como orientou uma tentativa de recuperar um Marx humanista da ideologia oficial do Estado. O fato de a propriedade privada já ter sido abolida nas sociedades de estilo soviético mostrava que a revolução social tinha que ir além dela. Como disse Marković, “a característica essencial da revolução consiste numa transformação radical do limite interno essencial de uma determinada formação social“.[15]
Era objetivo do humanismo marxista delimitar a sociedade de consumo em suas formas gêmeas de capitalismo e socialismo de Estado e propor uma forma futura de participação individual ativa na vida social autêntica, fundamentada nas relações de trabalho e que se estendesse por todas as instituições. Um aspecto dessa abordagem que precisava ser destacado especialmente era o papel do indivíduo devido à negligência ou mesmo a sua supressão em todas as formas prevalecentes do marxismo.
Nesse aspecto, o existencialismo, especialmente, mas não exclusivamente, da variedade francesa, passou a desempenhar um papel complementar essencial à redescoberta do primeiro Marx. Fromm, em apoio à sua afirmação de que “o objetivo de Marx [era] o desenvolvimento da personalidade humana“, referiu-se à sua filosofia como existencialismo humanista.[16] O filósofo tcheco Karel Kosik argumentou que “a pseudoconcreticidade do mundo cotidiano alienado, dominado pelo estranhamento, é destruído pela mudança existencial e pela transformação revolucionária“.[17] Em sua crítica ao foco unilateral do marxismo ortodoxo na mudança estrutural, Kosik sugeriu que um ato individual pode transformar a realidade meramente aceita numa forma ativa de viver autenticamente.
Sem essa modificação existencial, a subsunção do indivíduo às estruturas sociais persistiria após a mudança revolucionária. Kosik utilizou sua apropriação da fenomenologia e do existencialismo para mostrar que a filosofia é uma abertura da realidade humana para o ser. Enquanto na sociedade contemporânea “o homem está emparedado em sua socialidade” – isso é visto como uma limitação –, a filosofia da práxis de Marx é orientada para “o processo de formação de uma realidade socio-humana, bem como a abertura do homem para o ser e para a verdade dos objetos“.[18] O existencialismo veio em auxílio do marxismo para reavivar sua relação com a filosofia, permitindo entender a filosofia como uma postura ativa no mundo.
A figura-chave do existencialismo que prosperou no período foi Jean-Paul Sartre; o fundamento dessa corrente foi fornecido pelo texto de Sartre de 1936, Transcendência do Ego, no qual ele criticou a filosofia fenomenológica de Edmund Husserl. Husserl, como se sabe, é uma das figuras mais significativas da filosofia do século XX, cuja influência foi muito além daqueles que permaneceram fiéis às suas ideias. Husserl distinguiu entre o ego humano, concreto (ou individual) e o ego transcendental.
O ego transcendental surgiu por meio do que se chamou de redução transcendental em que a questão da realidade do mundo não era afirmada nem negada, mas simplesmente deixada de lado. Isso permitiu que o mundo humano como um mundo de significados emergisse e se tornasse sistematicamente investigado.
Na linguagem filosófica, transcendental refere-se não aos conteúdos imediatos da experiência, mas às condições ou fundamentos que permitem que esses conteúdos apareçam. A fenomenologia, nos termos de Husserl, investigaria o significado dos acontecimentos no mundo humano em relação à fonte última de tais significados. Essa dualidade foi expressa por meio de uma diferença entre o sujeito concreto, ou sócio-histórico, individual e o ego transcendental que é anônimo, não individual e está fora da história.
Na visão de Husserl, o ego transcendental era um aspecto necessário da percepção ordinária, na medida em que a percepção ordinária pressupõe uma estrutura temporal, uma relação intencional entre percepção e objeto percebido, um mundo que inclui tanto o perceptor quanto o percebido etc. Nenhuma delas é construída pelo sujeito individual. Ele falava dessas características transcendentais da experiência como pertencentes a um ego transcendental e é justa neste ponto que Sartre o questiona.
Sartre argumentava que o que quer que pudesse ser chamado de transcendental não é um ego, mas uma espontaneidade impessoal pura sem características egóicas.[19] A consequência foi que a fenomenologia a partir daí trouxe o homem de volta ao mundo; ela deu, assim, plena medida às agonias do homem, mas também às suas rebeliões. Contudo, infelizmente, enquanto o eu permanecer uma estrutura de consciência absoluta, ainda assim se poderá recriminar a fenomenologia por ser uma doutrina escapista… Parece-nos, entretanto, que essa reprovação já não se justifica se o humano vem a ser pensado como um ser estritamente contemporâneo do mundo, cuja existência tem as mesmas características essenciais que o mundo.[20]
A rejeição de Sartre do ego transcendental marcou a sua saída da fenomenologia husserliana e a sua entrada na filosofia existencial que ele elaboraria em O ser e o nada. Um sujeito que era completamente mundano não poderia buscar sua autenticidade no ir além das condições históricas imediatas, mas apenas confrontá-las com base em sua própria responsabilidade. Essa ênfase na escolha e na liberdade individuais foi o banho ácido do qual o marxismo humanista poderia emergir sem qualquer mancha remanescente que o ligasse ao marxismo ortodoxo, autoritário, centrado no Estado, do tipo soviético.
Contudo, ao fazer a transcendência depender da livre escolha individual, a opção de Sartre parecia cambalear em uma ladeira escorregadia em direção ao egoísmo ou mesmo ao solipsismo. No entanto, assim como Kosík, ele argumentou que isso não significava optar por um enclausuramento do indivíduo em si mesmo, mas sim em tomar o indivíduo uma base necessária para a abertura ao compromisso social autêntico.
Como a escolha pela resistência contra a ocupação nazista era para Sartre, assim como para os seus leitores de então, uma memória recente, essa opção poderia, em certo sentido, ser reprisada durante a década de 1960 como uma escolha livre por uma oposição extraparlamentar. Nessa medida, ele se mostrava tanto antiautoritário e anarquista quanto marxista – tal como foi muitas vezes a prática da Nova Esquerda. Como disse Sartre numa palestra em 1945, “o existencialismo é um humanismo“:
Quando dizemos que o homem escolhe a si mesmo, queremos dizer que cada um de nós deve escolher a si mesmo; mas com isso também queremos dizer que, ao escolher por si mesmo, ele escolhe por todos os homens… Escolher entre isto ou aquilo é, ao mesmo tempo, afirmar o valor daquilo que é escolhido; pois não podemos escolher o pior. O que escolhemos é sempre melhor; e nada pode ser melhor para nós a menos que seja melhor para todos.[21]
Em 1948, de modo essencialmente contemporâneo à palestra pública de Sartre, Herbert Marcuse criticou o existencialismo de O ser e o nada de Sartre afirmando que se tratava de um tratado positivista que perdia a transcendência do mundo dado, algo que cabia à filosofia fornecer.[22] No entanto, quando republicou o ensaio em 1972, Marcuse mudou de tom:
O conceito existencialista básico é elevado por meio da consciência que declara guerra a essa realidade – sabendo que a realidade continuará sendo vencedora. Por quanto tempo? Essa pergunta, que não tem resposta, não altera a validade da posição que hoje é a única possível para uma pessoa pensante.[23]
Dessa forma, a escolha existencialista tornou-se fundamental para o humanismo marxista: um sujeito totalmente imerso no mundo, mas ainda assim mantendo a liberdade de escolher se revoltar, poderia entrar na análise histórica e na transformação revolucionária proposta pelo marxismo sem sacrifício de valor nem responsabilidade individual.
Esse sujeito humanista foi levado a subjugar todas as diferentes formas de opressão e exploração. No Brasil, Paulo Freire partiu, a partir daí, para aprofundar a crítica de Sartre à educação. Esta última não poderia ser uma forma de digestão em que os alunos são passivamente alimentados com conhecimentos pelos professores.[24] Entrou também no exame de Simone de Beauvoir sobre a situação e as possibilidades da mulher. Isso permitiu que Sartre declarasse em sua introdução ao Condenados da Terra de Frantz Fanon que “o terceiro mundo se encontra e fala consigo mesmo nesta voz“.[25]
É certo que a crítica ao consumismo coexistiu de certa forma incomodamente com a crítica ao colonialismo, mas eles foram mantidos unidos pelo conceito de libertação humana como o desenvolvimento das capacidades humanas em uma forma social. Kwame Nkrumah enfatizou a necessidade de uma nova filosofia socialista que pudesse sintetizar a base humanista da sociedade tradicional africana com o humanismo islâmico e eurocristão.[26]
Em todas essas versões, o sujeito humanista “homem” foi tomado como uma unidade explicativa que não minaria uma expressão filosófica que pudesse abordar todas as diferentes formas de opressão e exploração. Assim, forneceria uma necessária explicação dessas formas considerando também as diferenças de sexo, gênero, raça, centro/periferia etc.
A escolha existencial preencheu um buraco – de que tipo fosse – aberto no marxismo pela ênfase na mudança na estrutura de classes e na ordem mundial desde a época de Marx. A decisão existencial do indivíduo tomada sozinho por meio da livre escolha, mas a favor da liberdade de todos, parecia ser capaz de manter unidos os projetos de descolonização, da libertação das mulheres, do socialismo da classe trabalhadora e da busca de sentido individual, em uma grande teoria da libertação humana.
Talvez o índice mais significativo disso seja que o influente livro de Herbert Marcuse, O Homem Unidimensional, sem dúvida o livro mais característico dos anos 1960, poderia oscilar irresolutamente entre a expectativa de que a sociedade industrial avançada poderia conter suas contradições e que uma ruptura explosiva poderia ocorrer.[27] Marcuse apresentou uma montanha de evidências para a contenção, mas claramente apelou ao leitor para segui-lo ao retratar o momento da liberdade como seu salto infundado do confinamento dentro de uma dada realidade para um compromisso de fazer um novo mundo.
A década de 1960 foi uma era de descolonização no que era então chamado de Terceiro Mundo, ao lado de um radicalismo interno dentro da divisão Leste-Oeste do mundo industrializado. O primeiro estava orientado por movimentos de libertação nacional que visavam acabar com a exploração imperialista e a subjugação cultural. O último estava orientado por uma crítica do consumismo avançado no Ocidente e da aspiração de igualar ou superar o consumismo ocidental no Oriente.
Foi a capitulação da esquerda social-democrata e do marxismo soviético a um modelo consumista que permitiu à Nova Esquerda sintetizar uma crítica ao consumismo com apoio aos movimentos de libertação nacional no Terceiro Mundo. Era necessário abordar a divisão do mundo na Guerra Fria em Oriente e Ocidente, o compromisso do Estado de bem-estar social no Ocidente que elevou o padrão de vida da classe trabalhadora, o salário familiar que enviou as mulheres de volta à esfera doméstica, a ascensão do capitalismo de consumo, o racismo institucionalizado e a descolonização no chamado Terceiro Mundo. Todos esses eventos se sobrepuseram e se reforçaram de muitas maneiras. Como Kwame Nkrumah apontou:
Nos países industrialmente mais desenvolvidos, o capitalismo, longe de desaparecer, tornou-se infinitamente mais forte. Essa força só foi alcançada pelo sacrifício de dois princípios que inspiraram o capitalismo primitivo, a saber, a subjugação das classes trabalhadoras dentro de cada país individual e a exclusão do Estado de qualquer interferência no controle da empresa capitalista. Agora, eles esses dois princípios foram abandonados, sendo substituído por “estados de bem-estar” baseados em altos padrões de vida da classe trabalhadora e em um capitalismo regulado pelo Estado. Os países desenvolvidos conseguiram exportar seu problema interno e transferir o conflito entre ricos e pobres do cenário nacional para o internacional.[28]
Como se referia de forma integrada a tais realidades históricas e políticas, o humanismo marxista se tornou uma filosofia tanto da época quanto para a época. Tanto expressava uma situação partilhada em comum quanto fornecia pontos de referência para transformá-la – mesmo que as perspectivas dos vários grupos importantes em seu interior diferissem entre si até certo ponto. Ora, o que nos falta hoje em dia é justamente uma filosofia comum que possa articular os diferentes pontos de vista dos diversos grupos situados dentro do sistema-mundo.
O pano de fundo desse radicalismo ocidental foi o compromisso do estado de bem-estar social que se seguiu à Segunda Guerra Mundial. A classe trabalhadora havia sido trazida para o sistema por meio de um pacote de políticas de bem-estar social, incluindo seguro-desemprego, educação superior subsidiada e legislação salarial progressiva. Na atual era neoliberal, após décadas de ataques da direita até mesmo às formas mais brandas de bem-estar social, é surpreendente lembrar em que medida as conquistas da social-democracia e do Estado de bem-estar social eram dadas como certas naquela época.
A principal razão foi que os social-democratas haviam comprado a ideologia da guerra fria e apoiado a guerra no Vietnã, além de se beneficiarem da exploração imperialista. Movimentos radicais tomaram como dado esse pano de fundo de um estado de bem-estar social e lutaram por sua extensão a grupos ainda sem direitos. Assim, a crítica ao consumismo conviveu de forma um tanto incômoda com o objetivo de estabelecer um padrão de vida decente no terceiro mundo. Eles foram mantidos juntos pelo objetivo de construir um modelo diferente de desenvolvimento que espalhasse a riqueza material de forma mais igualitária e, também, desenvolvesse o trabalho cooperativo e as relações sociais. Em seu foco crítico, foi uma era de anti-imperialismo.
Enquanto a teoria marxista apontava a classe operária industrial como ator político, outros movimentos variados desenvolviam críticas a esse foco com base em um modelo de libertação nacional. Muitas análises retrospectivas dos anos sessenta interpretaram o radicalismo estudantil e juvenil no Ocidente como sendo, principalmente, um movimento de reforma destinado a desenvolver alternativas culturais e relações sociopolíticas menos hierárquicas. Embora haja algum mérito nisso como uma avaliação do resultado de tais movimentos, ela ignora inteiramente o papel central dos movimentos de libertação nacional como centro espiritual da ideia de novas relações sociais.
Foi fundamentalmente um período anti-imperialista e mesmo muitas questões políticas dentro do Ocidente avançado foram vistas nesses termos – como a libertação de Quebec, a libertação das mulheres, a libertação negra (especialmente nos EUA), o poder vermelho etc. Em nosso tempo, apenas os resquícios de um Estado de bem-estar social sobrevivem. No entanto, a economia capitalista não está mais suficientemente contida dentro dos limites do Estado-nação e os pressupostos político-econômicos de fundo do discurso do humanismo marxista não mais se verificam.
NOTAS
[1] Ian H. Angus é professor emérito da Simon Fraser University, na Colúmbia Britânica. É autor de nove livros e muitos ensaios em filosofia e humanidades. Um Festschrift sobre sua obra foi editado por Samir Gandesha e Peyman Vahabzadeh: Crossing Borders: Essays in Honour of Ian H. Angus, Beyond phenomenology and critique (Arbeiter Ring, 2020). O seu livro mais recente é Groundwork of Phenomenological Marxism: Crisis, Body, World (Lexington Books, 2021)
[2] Benedetto Croce, What is Living and What is Dead of the Philosophy of Hegel, trans. Douglas Ainslie (London: MacMillan, 1915), p. 214, 206.
[3] Este artigo foi apresentado pela primeira vez como um discurso oral para a conferência Then and Now: 1968-2018, Nov. 2018, Institute for the Humanities, Simon Fraser University, Vancouver.
[4] Investigar a filosofia como um espaço discursivo dentro de uma história cultural requer uma metodologia diferente da que se usaria para investigar um filósofo ou tema filosófico específico. A escolha dos autores e referências é determinada por sua popularidade e significado na época, mais do que seu conteúdo intrínseco ou validade contínua.
[5] A primeira tradução para o inglês foi na verdade em 1959 por Martin Milligan para a Foreign Languages Publishing House (que mais tarde se tornou a Progress Publishers) em Moscou. Talvez porque esta edição veio da editora comunista soviética oficial, ou talvez por causa da introdução humanista de Fromm à sua edição ligeiramente posterior, é o texto de Fromm que se tornou significativo para a filosofia dos anos sessenta. Eis que uma tradução que presumivelmente veio de uma coleção anterior que ele coeditou. Bottomore já havia publicado T.B. Bottomore e Maximilien Rubel (orgs.), Marx: Selected Writings in Sociology & Social Philosophy (Londres: Watts, 1956; Harmondsworth: Penguin, 1963) que continha pequenos trechos dos Manuscritos de 1844 e foi presumivelmente a base para o convite de Fromm.
[6] Erich Fromm, Preface a Karl Marx: Early Writings.
[7] Erich Fromm, Marx’s Concept of Man, com tradução dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de Marx de T.B. Bottomore (Nova York: Frederick Ungar, 1971), p. 42. No entanto, os Manuscritos de 1844 apoiavam-se na teoria da pauperização material para explicar a crescente miséria da classe operária que a transformaria em um agente revolucionário. Como o trabalho é uma perda e servidão do trabalhador, Marx concluiu que “quanto maior sua atividade, portanto, menos ele possui“. Essa parte dos Manuscritos era um problema insolúvel para uma análise da alienação centrada no consumismo, de modo que muitas vezes era interpretada em um sentido puramente espiritual-moral – o que também era pretendido por Marx ao lado da dimensão material. Ver Karl Marx, “Economic and Philosophical Manuscripts: First Manuscript, Alienated Labour”, Karl Marx: Early Writings
[8] Fromm, Marx’s Concept of Man, p. 57-71.
[9] Erich Fromm (org.), Socialist Humanism (Garden City: Doubleday, 1965). Mesmo a tendência crítica característica de Herbert Marcuse limitou-se, em sua contribuição a esta coletânea, a uma crítica da suposta rejeição da violência no termo “humanismo”, para o qual ele se baseou principalmente no trabalho de Maurice Merleau-Ponty.
[10] Louis Althusser, “The ‘1844 Manuscripts’ of Karl Marx” in For Marx, trad. O texto foi publicado originalmente em La Pensée, dezembro de 1962
[11] Erich Fromm, Beyond the Chains of Illusion: My encounter with Marx and Freud (Nova York: Continuum, 1962), p. 86, ver também as paginas16-8, 40-4, 85-7 e 132.
[12] Gajo Petrović, Marx em meados do século XX (Doubleday: Garden City, 1967), p. 80.
[13] Ivan Svitak, Man and His World: A Marxian View, tradução de J. Veltrusky. Nova York: Dell Publishing, 1970, p. 153.
[14] Mihailo Marković, From affluence to praxis. Ann Arbour: University of Michigan Press, 1974, p. 234.
[15] Marković, From affluence, p. 191.
[16] Fromm, Marx’s concept of man, p. 70-1.
[17] Kosik, Dialectics of concrete. Dordrecht: D. Reidel, 1976, p. 48.O livro foi traduzido por Karel Kovanda e James Schmidt do tcheco.
[18] Kosík, Dialectics of concrete, p. 106.
[19] Jean-Paul Sartre, The Transcendence of the Ego, trad. F. Williams e R. Fitzpatrick. Nova York: Farrar, Straus e Giroux: 1957, 98-101.
[20] Sartre, The Transcendence of the Ego, p. 105.
[21] Walter Kaufmann, Existencialism from Dostoiévski to Sartre (Nova York: New American Library, 1956), 292-3. Esta foi a edição comumente disponível que incluiu o ensaio de Sartre durante a década de 1960.
[22] Herbert Marcuse, “Existencialism: remarks on de Jean-Paul Sartre, L’Être et le Néant “, Philosophy and phenomenological research, Vol. 8, No. 3, Março de 1948.
[23] Herbert Marcuse, “Sartre’s Existentialism” in Studies in Critical Philosophy.
[24] Paulo Freire, Pedagogy of the oppressed: 30th Anniversary edition, tradução de Myra Bergman Ramos. Nova York: Continuum, 2000, p. 76 e p. 81-2.
[25] Simone de Beauvoir, The Second Sex, tradução de H.M. Parshley. Nova York: Bantam, 1953, p. 30; Frantz Fanon, The Wretched of the Earth, tradução de Constance Farrington. Nova York: Grove Weidenfeld, 1968, p. 10.
[26] Kwame Nkrumah, Consciencism: Philosophy and Ideology for De-Colonization. Modern Reader Paperback: EUA, 1970, p. 70 e 106.
[27] Herbert Marcuse, One-Dimensional Man (Boston: Beacon, 1968), capítulo xv.
[28] Kwame Nkrumah, Neo-colonialism, the last stage of imperialism. Londres: Thomas Nelson, 1965, p. 255.

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