A grande substituição

Publica-se aqui um pequeno artigo de uma autora que pensa a partir de uma idealização, o capitalismo liberal corrigido em seus excessos pela social-democracia. A sua tese de fundo é que o sistema econômico está embutido numa sociedade que supostamente garante a solidariedade social. Eis que essa solidariedade é contrariada constantemente pela sociabilidade posta pelo sistema mercantil generalizado – outro nome para o capitalismo.

A sociedade é assim pensada, portanto, não como “sociedade civil” tal como acontece na tradição que vai de Hegel a Marx, mas como comunidade – forma de existência dos humanos soldada supostamente por uma sociabilidade orgânica. Apesar disso, a sua questão parece relevante. O que vai acontecer na civilização humana realmente existente se o neoliberalismo extremista (que chama de populismo) predominar num grande número de países?

Publica-se porque faz um contraponto aos artigos Não, não é fascismo e Sim, é suicidarismo sim, ambos publicados neste blogue.

Antara Haldar[1] – Project Syndicate – 02/01/2024

Dezenas de países realizarão eleições nacionais em 2024, no que muitos veem como uma espécie de plebiscito sobre a ordem global do pós-guerra. A provável rejeição dessa ordem em favor de líderes populistas [N.T.: leia-se, neoliberais extremistas] deve servir como um alerta para que os formuladores de políticas prestem atenção à mensagem de que não existe economia fora da sociedade que a criou e sustenta.

Em 1944, quando a Segunda Guerra Mundial se aproximava do fim, o sociólogo econômico húngaro exilado Karl Polanyi publicou A Grande Transformação, um tratado que se concentrava nos perigos de tentar separar os sistemas econômicos das sociedades que habitam. Oitenta anos depois, as advertências de Polanyi sobre uma economia de mercado desencadeada das necessidades e relações humanas podem revelar-se premonitórias. Na verdade, o futuro que ele prevê tem uma forte semelhança com o Frankenstein de Mary Shelley, em que a criatura do médico se descontrola e acaba se voltando contra seu criador.

Esse futuro pode estar chegando. Em 2024, o maior ano eleitoral da história, pessoas de dezenas de países, que representam metade da população mundial, irão às urnas. A lista inclui as duas maiores democracias do mundo (Índia e Estados Unidos) e três de seus países mais populosos (Indonésia, Paquistão e Bangladesh). E a União Europeia, composta por quase meio bilhão de pessoas de 27 países, realizará eleições parlamentares.

Muitos comentaristas e especialistas veem essa sincronicidade global como uma espécie de plebiscito sobre a ordem global do pós-guerra. Até agora, os comentários não parecem favoráveis. Alguns argumentam que o mundo está passando por uma “recessão democrática”, citando evidências de declínio dos níveis de liberdade global, retrocesso autoritário e ataques a eleições livres e justas. Naturalmente, tudo isso levanta a questão de como passamos da esperança ofuscante que acompanhou o fim da Guerra Fria – o que Francis Fukuyama chamou de “fim da história” – para a profunda desilusão de hoje.

Embora a democracia tenha, sem dúvida, sido vítima de maus atores em países que vão da Rússia ao Bangladesh,  passando  pelo Paquistão e EUA, o mal-estar atual é mais profundo e é mais fundamental do que retrocessos alarmantes da integridade do processo eleitoral e da liberdade de expressão. Líderes como o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump, que provavelmente garantirá a indicação republicana para outra corrida presidencial, e o primeiro-ministro Narendra Modi, na Índia, que lançou informalmente sua campanha de reeleição em janeiro ao inaugurar um polêmico templo hindu em Ayodhya, parecem ser genuinamente popular. Seu discurso para as massas e suas agendas polarizadoras parecem expressar algo real na psique global. Mas o quê?

Após a Segunda Guerra Mundial, foi prometida ao mundo paz e prosperidade perpétuas – a primeira a ser entregue pelo liberalismo político (em particular, a democracia e o Estado de Direito), e a segunda pela economia neoclássica (uma iteração quantitativa altamente sofisticada da economia que qualquer sociedade poderia adotar). Mas, em um esforço para substituir o toque humano pela mão invisível, esses modelos eram quase puramente processuais, desprovidos de política, valores e emoções. Eles eram comercializados como sistemas plug-and-play que não precisavam de comunidade ou liderança, apenas racionalidade individual infinita, exigindo engajamento mínimo com o contexto ou cognição.

O problema dessa abordagem é que ela ignorou a principal visão de Polanyi: a economia não pode ser “desencaixada”, como ele disse, da sociedade. Após a Revolução Industrial, argumentou Polanyi, embarcamos em um experimento perigoso, tentando elevar a economia acima da sociedade e reduzir as pessoas a mercadorias dentro dela. O resultado é uma criatura que representa uma ameaça existencial para seus criadores.

Vista dessa perspectiva, a provável rejeição da ordem mundial do pós-guerra neste ano não deve surpreender: elementos da narrativa se tornaram cada vez mais proeminentes nas últimas décadas. A onda de descontentamento com a globalização na década de 1990 foi interpretada como um fenômeno geograficamente confinado – as dores de crescimento de regiões que haviam sido deixadas para trás.

No início dos anos 2000, problemas que antes se pensava estarem confinados ao mundo em desenvolvimento – crescimento em declínio, desigualdade galopante, instituições falidas, um consenso político fraturado, corrupção, protestos em massa e pobreza – começaram a surgir nos países desenvolvidos. Muitos alertas não foram ouvidos: a crise financeira global de 2008, a crise da dívida soberana da zona do euro a partir de 2009 e o referendo do Brexit no Reino Unido em 2016.

Os esforços acadêmicos para entender esse fenômeno só tiveram sucesso limitado porque estão tentando aplicar uma lente racional ao que é essencialmente uma resposta emocional: medos e instintos atávicos desencadeados por um desrespeito de longa data pela identidade, confiança e comunidade. Líderes populistas neoliberais em todo o mundo estão ganhando terreno abandonando os argumentos economicistas apresentados por especialistas e invocando motivos nativistas – o misticismo e a magia que, segundo o sociólogo alemão Max Weber, o capitalismo havia reprimido decisivamente.

A tragédia é que essa narrativa dominante sobre os arquitetos da ordem liberal do pós-guerra, de que eles são cientistas loucos que perderam o controle de suas criações, contém um núcleo de verdade. Mas nossa história poderia ter tido um final diferente. Como em Frankenstein, um pouco de reconhecimento dos sentimentos mais finos de que o monstro – no caso, a economia do pós-guerra – é capaz teria ajudado muito a mudar seu comportamento. Este ano deve ser um alerta para que os formuladores de políticas prestem atenção à mensagem que Polanyi articulou há 80 anos: nenhuma economia existe fora da sociedade que a criou e sustenta.


[1] Antara Haldar, professora associada de Estudos Jurídicos Empíricos da Universidade de Cambridge, é membro do corpo docente visitante da Universidade de Harvard e pesquisadora principal de uma bolsa do Conselho Europeu de Pesquisa sobre direito e cognição.