Autor: Eleutério F. S. Prado [1]
Aviso: ainda que seja bem importante encontrar uma resposta, a pergunta posta pelo título não será aqui respondida. Pois, esta nota apenas visa reapresentar criticamente um artigo escrito por esse autor, o qual também ele escolheu denominar interrogativamente: É o trabalho abstrato universal? O objetivo consiste, outrossim, em opor uma pequena à sua provocação maior porque ela própria suscita esse tipo de dúvida. A reflexão necessária para respondê-la que fique, pois, com cada um. Mas que se examine também, ao mesmo tempo, por justiça, a seriedade do autor da presente nota.
A figura pública do autor de Menos que nada – Hegel e a sombra do materialismo dialético, como bem se sabe, levanta outros questionamentos: como se deve classificar melhor o Sr. Slavoj? Seria o Sr. Žižek um filósofo hegeliano, um crítico cultural pós-moderno, um leninista de escritório, um novo gênio iluminista ou mesmo um agitador contrarrevolucionário? Ora, essa espécie de confusão não seria produzida, propositalmente, por ele mesmo? Afinal, não se vive hoje na sociedade do espetáculo?
O artigo aqui referido desse autor polêmico, publicado originalmente em The philosophical salon, em fevereiro de 2020, foi escrito para criticar um sucesso editorial, qual seja ele, não menos do que o livro O ecossocialismo de Karl Marx de Kohei Saito. Uma tradução desse artigo para o português, bem oportuna, foi publicada pela revista Nexos Econômicos. [2] A questão aí em tela de juízo é crucial; ela precisa ser, portanto, bem examinada.
Havendo estudado por mais de 40 anos história do pensamento econômico, o autor que aqui escreve foi interpelado de modo violento pela seguinte afirmação, que se encontra logo no início do escrito do esloveno: “Saito ignora o fato crucial de que a noção de trabalho abstrato de Marx pressupõe a ciência moderna, especificamente a termodinâmica do século XIX”. Ora, havendo estudado tanto economia política clássica, a teoria econômica neoclássica, quanto a crítica da economia política, havendo passando assim por milhares e milhares de páginas, este escrevinhador que aqui comenta nunca dantes se deparara com uma estocada tão ardilosa no velho barbudo.
Bem-feito, segundo Žižek, aquele crítico intransigente que habitara o século XIX, que traduzira num esforço de décadas a linguagem das mercadorias por meio de uma obra inacabada, ignorara solenemente a “ordem simbólica” que Jacques Lacan, ao fim e ao cabo dos tempos, apresentara aos ignaros da modernidade! Não é que o verbo da termodinâmica engendrara, por meio da pena de Marx, sem que ele o tenha explicado em seus folhosos, um modo equivocado de compreender o motor do sistema econômico moderno!
Saito quer mostrar que uma crítica ecologista ao capitalismo – eis que produz rupturas metabólicas e elas estão aí – pode ser desenvolvida, de maneira consistente, a partir da teoria do valor de Marx. Para mostrar que esse último autor compreendera bem a relação do ser humano com a natureza não humana e que o fizera de um modo materialista, Saito relembra em seu livro que o trabalho abstrato é, em primeiro lugar, um elemento material do processo de trabalho. Pois, em O capital, está dito que “todo trabalho é, por um lado, dispêndio de força humana de trabalho em sentido fisiológico, e graças a essa sua propriedade de trabalho humano igual ou abstrato ele gera o valor das mercadorias”.
Mas como passar do gasto fisiológico de energia humana ao trabalho como substância do valor que, como Marx também afirma, vem a ser algo “puramente social”? Saito tenta enfrentar essa questão apelando a tradição do marxismo japonês. Como, entretanto, não chega a uma resposta plenamente satisfatória, ele abre uma janela por onde entra, derrubando tudo, um vendaval chamado Žižek. É possível fechá-la, mas só aos poucos.
Para começar, note-se: para Marx, pouco importa se as pessoas estão ou não conscientes do fato, é certo que o trabalho concreto requer sempre um dispêndio de força humana. Para se apropriarem do mundo, os comunas primitivos, os escravos, os servos e os trabalhadores assalariados, tiveram de dispender energia corporal e mental. Eis que esse saber, mesmo se não é consciente, se encontra de algum modo, já sempre, na linguagem. E ele está aí expresso como “mbaraeté”, “moč”, “menschliche Arbeitskraft” etc.
O grau de profundidade do conhecimento, entretanto, depende do nível da prática histórica; ora, se se tem por referência a época moderna, é preciso verificar também se essa prática é produtiva, científica ou filosófica. Pois, como está dito em A ideologia alemã, “a linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e que, portanto, também existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com outros homens”.
Note-se que a linguagem não espelha ou, inversamente, não cria ou recria o real, mas ela o apresenta por meio de noções, conhecimentos comuns ou teorias que advêm da práxis – seja esta utilitária, científica, revolucionária etc. – saberes estes, aliás, que se mostram aí mais ou menos adequadas ou inadequadas para o sucesso da práxis. Na segunda tese Ad Feuerbach, isso não foi dito, precisamente isso?
“A questão se cabe ao pensamento humano uma verdade objetiva não é teórica, mas prática. É na práxis que o homem deve demonstrar a verdade, a saber, a efetividade e o poder, a citerioridade[3] de seu pensamento. A disputa sobre a efetividade ou não-efetividade do pensamento isolado da práxis – é uma questão puramente escolástica”
Mesmo se o trabalho se dá em circunstâncias determinadas, estando, assim, marcado objetiva e subjetivamente pelo desenvolvimento histórico, ele tem determinações universais. Dentre elas, se encontra o gasto de energia humana; eis que o processo do trabalho é, para ele, um elemento central da práxis em geral. E esse gasto é sim, para Marx, uma determinação universal do trabalho. Não se vê aqui como se pode duvidar disso. Veja-se, aliás, que toda atividade animal em geral – incluindo aí, pois, aquelas que são e aquelas que não são trabalho – requer um gasto de energia animal. E é assim, mesmo se a consciência clara e distinta desse fato, propriamente científica, só se tornou possível após o desenvolvimento da ciência moderna.
Para Žižek, entretanto, a noção marxiana de trabalho abstrato não pode ser tomada como um universal já que, “como Marx demonstrou em sua introdução nos Grundrisse, a própria abstração é um fato social, o resultado de um processo social de abstração”, algo que só acontece no capitalismo. Eis que o gasto de energia, inerente a todo trabalho, vem a ser apenas uma “universalidade muda”. Ora, segundo ainda a sua interpretação, o trabalho abstrato no capitalismo provém de uma “abstração real” e ela “marca o trabalho de forma imanente, transformando a lacuna entre o abstrato e o concreto em parte da própria identidade do trabalho”.
Aqui – note-se bem – é importante observar que Žižek afirma existir uma lacuna entre o trabalho abstrato como mero gasto de energia e o trabalho abstrato enquanto abstração social/real. Se há uma lacuna, como então o entendimento poderia preenchê-la? Guarde-se, entretanto, essa questão para logo mais, quando se poderá mostrar como Žižek resolve, erradamente, esse problema que ele mesmo cria, imputando a solução ao próprio Marx. Mas se veja já agora que a caracterização da passagem como lacuna tem consequências; eis que separa, disjunta, afasta os dois polos do problema.
Ora, para Marx, não há lacuna alguma; eis que a formação do trabalho abstrato provém de uma redução, que é feita pelo processo social do modo de produção capitalista, dos trabalhos concretos ao trabalho abstrato, segundo uma lógica que é inerente a todo e qualquer processo de medida, em qualquer esfera, seja esta natural ou social.
A redução não é uma generalização, mas pressupõe uma generalização, ou melhor, uma generalidade – “muda” se se quiser. O geômetra, por exemplo, reduz figura planas a uma medida abstrata de área porque todas essas figuras têm área. O sistema econômico, no entanto, não contém um geômetra. Ou contém? Só porque os trabalhos concretos são sempre gastos de força humana (uma generalidade) é que o processo de redução pode criar uma medida socialmente necessária de trabalho que se manifesta como medida de valor. E se essa redução, para Marx, é sempre possível em princípio, ela só acontece no capitalismo porque este é um modo de produção mercantil generalizado.
Assim, por exemplo, só porque todos os corpos têm massa e porque são atraídos pela força de gravidade é que eles podem ser medidos como pesos. E eles continuam podendo ser medidos, mesmo se não o são de fato. Por exemplo, no Alto Xingu, os povos Aweti, Kalapalo, Kamaiurá, Kuikuro, Matipu, Mehinako, Nahukuá, Naruvotu, Trumai, Wauja e Yawalapiti não tem, provavelmente, o costume de medir o peso das coisas – mesmo se elas tem muito valor de uso para eles.
Do mesmo modo, só porque os trabalhos concretos são gastos de força humana e estão submetidos ao processo igualador dos mercados é que eles podem ser medidos como valores. Mas Slavoj Žižek não sabe nada disso, ignora algo que, na verdade, é bem elementar. Por isso mesmo, espanta-se enormemente quando Marx, tendo por referência a admitida redução do trabalho complexo ao simples, diz que isso é mostrado pela experiência. Ora, esse espanto, mesmo sendo ilusionista, origina uma crítica: “o principal termo enigmático é experiência; (…) Marx nunca explica que experiência ele tem em mente, o que torna essa passagem altamente controversa”. Será?
Ora, há dois níveis da abstração e eles estão muito bem concatenados logicamente no texto marxiano. O problema é que Marx presumiu demais sobre a inteligência dos seus leitores e, por isso, elucidou pouco. Mas, mediante uma boa explicação, qualquer estudante de curso médio poderia entender muito bem a questão. Žižek, no entanto, diverge: eis que o seu espanto está diretamente ligado à tese de que há uma lacuna entre esses dois níveis de abstração. Ora, como já se ousou mostrar aqui, esses dois momentos são inerentes ao conceito de trabalho abstrato.
Porém, é bem verdade que esse espanto o ajudou a argumentar; pois, vem a ser uma forma de reforçar retoricamente a existência da aludida lacuna, para levar o leitor a pensar que há um abismo no qual supostamente Marx caiu, afundou e morreu. Será que o contemporâneo tem razão?
O autor clássico não explica o que entende por experiência quando fala da redução do trabalho concreto ao abstrato? Para verificar se o grito lacaniano de Zizek está certo ou errado, leia-se o que Marx diz e que está na citação que aparece em sequência: Ora, julga-se aqui que essa a explicação é imediata e evidente no texto marxiano; o filósofo da práxis diz, simplesmente, que ela se dá na participação nos mercados, mesmo se isso não é muito transparente:
“Que essa redução ocorre constantemente é algo mostrado pela experiência. Mesmo que uma mercadoria seja o produto do trabalho mais complexo, seu valor a equipara ao produto do trabalho mais simples e, desse modo, representa ele próprio uma quantidade determinada de trabalho simples. As diferentes proporções em que os diferentes tipos de trabalho são reduzidos ao trabalho simples como sua unidade de medida são determinadas por meio de um processo social que ocorre pelas costas dos produtores e lhes parecem, assim, ter sido legadas pela tradição.”
Ora, julga-se aqui que essa a explicação foi dada sim e que ela é mesmo imediata e evidente no texto para quem quer lê-la; o filósofo da práxis explica, simplesmente, que essa experiência se dá por meio da participação nos negócios cotidianos, mesmo se para apreciá-la corretamente é preciso um olhar teórico já que ela não é muito transparente.
Havendo desfeito o nó mal costurado por Žižek no tecido rigoroso da teoria do valor de Marx, é preciso ver agora com que agulha ele o costurou. Segundo o esloveno, o crítico da economia política conseguira fechar a suposta lacuna valendo-se de noções elaboradas pela termodinâmica, ou seja, apelando para uma cientificidade emergente ainda durante o seu tempo de vida. Para resolver o problema, ele se valera de uma mudança de ordem simbólica:
(…) a prática de redução [do trabalho concreto ao abstrato e, assim, do] trabalho complexo ao simples é uma coisa historicamente específica, não uma característica [intrínseca] da produtividade humana (…). Como Anson Rabinbach demonstrou, [essa prática de redução] se tornou viável operativamente apenas no século XIX, após a ruptura [de Marx] com Hegel. Então, ele pôs o motor termodinâmico como paradigma do modo de operar da força de trabalho e este substituiu o paradigma hegeliano que apresentava o trabalho como um pôr da subjetividade humana, ainda operativo nos textos do jovem Marx.
Trata-se – é bem evidente – de uma interpretação idealista de um autor que se definia como materialista. Se para Marx era preciso ir da coisa e da ação para o verbo e, assim, do concreto aparente para o concreto pensado passando por níveis de abstração maiores para menores, para Lacan e os seus seguidores impunha-se – e sempre se impõe – ir do verbo para a coisa e para a ação, isto é, da linguagem como tal para a realidade prática sem nunca apreender verdadeiramente o real que a sustenta. A citação de um texto de Anson Rabinbach, autor adotado como o grande crítico de Marx, é bem ilustrativa desse modo de pensar:
Dito de outra forma, Marx sobrepôs um modelo termodinâmico de trabalho ao modelo ontológico de trabalho que herdou de Hegel. Como resultado, para ele, a força de trabalho tornou-se quantificável e equivalente a todas as outras formas de força de trabalho (na natureza ou em máquinas). […] Marx tornou-se um ‘produtivista’: deixou de considerar o trabalho como simplesmente um modo de atividade antropologicamente ‘paradigmático’, e, em harmonia com a nova física, viu a força de trabalho como uma grandeza abstrata (uma medida do tempo de trabalho) e uma força natural (um conjunto específico de equivalentes de energia localizados no corpo).[4]
A história do pensamento econômico ensina que o problema do valor é posto pela própria economia mercantil, cujo funcionamento depende de que diferentes valores de uso sejam comensurados por meio dos preços. Pois, sem a formação dos preços, as trocas não podem acontecer. Por isso, como problema central, ele aparece de uma forma candente em A riqueza das Nações de Adam Smith e nos Princípios de Economia Política de David Ricardo. Nesse ponto, Marx apenas o retoma e o apresenta da seguinte forma:
O valor de troca aparece, de início, como a relação quantitativa, a proporção na qual valores de uso de uma espécie se trocam contra certos valores de uso de outra espécie, uma relação que muda constantemente no tempo e no espaço. O valor de troca parece, portanto, algo casual e puramente relativo; um valor de troca imanente, intrínseco à mercadoria (valeur intrensèque), portanto uma contradictio in adjecto. Observemos a coisa mais de perto.
Anson Rabinbach prefere, no entanto, observar a coisa mais de longe. Segundo ele, a lei do valor é uma aplicação desventurada da primeira lei da termodinâmica segundo a qual, a energia é conservada, ou seja, não é destruída ou criada, mas sempre transformada. Nessa perspectiva, o Marx maduro, em sua ânsia para justificar o comunismo cientificamente, teria cometido o desatino de tentar compreender o processo de produção no capitalismo, mas também em todos os modos de produção que existiram na história, com base nesse rebento que surgiu na ordem simbólica do século XIX. Segundo ele, Marx não só supôs que essa lei vigora na compreensão da relação do homem com a natureza – o que seria bem sensato –, mas que é ela que está por trás de sua teoria do valor. Veja-se o que Rabinbach diz:
A máquina termodinâmica aparece assim como uma serva de poderosa natureza; eis que é concebida como um reservatório de poder propulsor irredutível e inesgotável. O corpo trabalhador, a máquina a vapor e o cosmos estão conectados por uma cadeia única e ininterrupta, pelo fluir de uma energia indestrutível, onipresente no universo e capaz de mutação infinita, mas imutável e invariante. […] Esta descoberta também teve um efeito profundo e revolucionário no pensamento de Marx sobre o trabalho. Depois de 1859, Marx considerou cada vez mais a distinção entre trabalho concreto e abstrato na linguagem da força de trabalho como um ato de conversão e não de geração.
Em resumo, segundo Žižek, tem-se: a) desde sempre uma lacuna entre o trabalho concreto e o trabalho abstrato social; b) mas não é o próprio sistema econômico que fecha essa suposta cavidade; c) quem fecha esse buraco de natureza teórica – pois, para ele, não se pode afirmar que furo esteja no mundo real – é o intelecto criativo do próprio Marx; d) para tanto, o filósofo novecentista, como um homem muito bem-informado, valeu-se da primeira lei da termodinâmica; e) ora, ele transpôs o buraco lógico por meio de uma suposta conversão energética; f) mas se absteve de explicar o truque para os seus leitores…
Numa perspectiva lógica, ter-se-ia na situação inicial: trabalho concreto <lacuna> trabalho abstrato; ou seja, esses dois polos estariam numa ‘não-relação’ segundo o jargão lacaniano. Porém, na situação final, após Marx ter matutado muito com a sua cabeça absorvente e inventiva, ter-se-ia: trabalho concreto → conversão termodinâmica → trabalho abstrato. Será?
Ora, como ficou demostrado, a história do pensamento econômico e a leitura rigorosa do texto de O capital mostram que não há lacuna alguma – nem conversão alguma –, mas sim um processo de redução de uma generalidade à sua medida, algo que acontece no próprio sistema econômico. Para a ciência, os preços se apresentam como um problema teórico que cumpre investigar para resolvê-lo e para apresentá-lo conceitualmente. E que, portanto, a extrapolação da ordem simbólica epocal num imaginário cientificista e produtivista, tal como apontado, acontece em outras cabeças – não no cérebro de Marx.
Entretanto, sob o vendaval dos escritos do filósofo esloveno, aquilo que era um problema de investigação científica, um enigma da própria realidade enfrentado de uma perspectiva materialista, transformou-se numa transação com significantes – mercadorias? – que acontece no próprio interior da ordem simbólica.
Mas a crítica de Žižek não descansa; eis que ele quer atingir o centro da obra de Marx com o seu canhão simbólico, por meio de um tiro certeiro. Muitos tentaram derrubá-lo nos séculos XIX e XX, mas não conseguiram; no entanto, eis que ele, Žižek, montado nos ombros do apenas um pouco menos gigante do que ele próprio, Jacques Lacan, pode finalmente fazê-lo. Marx partira, segundo ele, de um motor termodinâmico individual, o indivíduo burguês, prefigurado como um Robinson Crusoé genérico, para chegar, ao fim e ao cabo de uma longa e sofrida jornada, a prefigurar um motor termodinâmico coletivo… Empregando a primeira lei da termodinâmica, ele mostrou, então, que era é possível passar do individualismo capitalista para o coletivismo comunista…
Por que Robinson é o ponto de partida quando (como Marx sabia muito bem) Robinson não é um ponto de partida histórico, mas um mito burguês? Não é porque Marx precisa começar com Robinson para que, em um círculo dialético (pseudo-)hegeliano, ele possa voltar a um Robinson coletivo, no final, como um modelo imaginado da sociedade comunista? O paralelo com Robinson permite que Marx imagine o comunismo como uma sociedade autotransparente, na qual as relações entre os indivíduos não são mediadas por um “grande outro” substancial e opaco. E nossa tarefa hoje é pensar o comunismo fora desse horizonte.
Vê-se, portanto, que, para o filósofo contemporâneo, os homens transformaram demais o mundo, mas agora é preciso voltar a pensá-lo… no interior da ordem simbólica que nos aliena a todos para sempre, é claro. Têm-se, pois, um jogo – um mercado de significantes – e o significante “comunismo” é supostamente um “significante mestre” nesse jogo.
[1] Professor aposentado da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blogue na internet: https://eleuterioprado.blog. Publicação recente: Capitalismo no século 21 – Ocaso por meio de eventos catastróficos. Cefa Editorial, 2023.
[2] A tradução desse artigo para o português foi feita por Lucas Trentin Rech e ela está publicada na revista Nexos Econômicos, vol. 16 (1), 2022.
[3] Ou seja, o que está do lado de cá; do nosso lado; mais perto de nós
[4] Essa citação consta no texto original de Slavoj Žižek, mas ela pertence a um texto de Anson Rabinbach que não foi publicado: From emancipation to the Science of work: the labor time dilema. Entretanto, desse autor há todo um livro sobre o assunto: The eclipse of the utopias of labor; New York: Fordham University Press, 2018.

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