Sobre a suposta homologia do mais-de-gozar com o mais-valor

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Para tratar desse tema, vale-se de início de conteúdos que se encontram no livro Poder e política na clínica psicanalítica (Annablume, 2015) de Marcelo Checchia, um escrito longo, mas compreensível mesmo se proveio do teclado de um autor lacaniano. O que se fará é uma tentativa bem arriscada de entender um ponto difícil, atravessado por incertezas que se devem ao estilo do autor principal. Ademais, como bem de sabe, as noções da psicanálise não parecem estar ainda bem estabelecidas, o que dificulta muito o entendimento de qualquer ponto crucial de seu discurso.

O objetivo consiste em compreender criticamente a afirmação de Jacques Lacan de que haveria uma relação de homologia entre o mais-valor de Marx e a noção de mais-de-gozar proposta por ele mesmo. Contudo, não se pode compreender esse ponto polêmico se não se apreendeu antes o sumo da dialética da luta pelo reconhecimento que Georg Hegel apresentou na Fenomenologia do Espírito – essa luta, e isso é muito importante, consiste também, originalmente, numa contraposição entre vida e liberdade.

 Aí é apresentado um confronto entre duas consciências de si, o qual tem por resultado que uma delas ganha a posição de senhor e a outra obtém a posição de escravo. Nessa colação, uma delas se torna subordinada ao comando da outra, o que vai lhe garantir tanto a sua própria vida como a vida da outra. Essa solução, entretanto, bloqueia a realização do processo de reconhecimento – meio pelo qual a liberdade é realizada socialmente. Tenha-se claro desde o início, porém, que a sujeição decorrente da luta não advém apenas da força bruta, pois se tem um contexto social – uma interação entre duas consciências de si – mediada pelo trabalho e pela linguagem.  

Para entrar diretamente no assunto, cita-se de imediato uma passagem controversa que se refere à compreensão dessa dialética que se encontra no capítulo sobre a “autoconsciência” da obra citada:

O escravo se torna senhor e o senhor se torna escravo, ou seja, “o trabalho do escravo fornece a verdade do senhor” (segundo Lacan). Esse ponto é essencial para Lacan, inclusive para marcar uma distinção quanto à dialética hegeliana. Ao contrário de Hegel, que supunha uma renúncia de gozo feita pelo escravo em função do medo da morte, Lacan destaca que há uma perda de gozo para aquele que ficou na posição de senhor (Checchia, p. 330).

Note-se que a relação de escravidão e, assim, as posições sociais de senhor e escravo, podem ser tomadas como metáforas para a relação de capital e, assim também, respectivamente, para as posições sociais de capitalista e trabalhador assalariado. Contudo, parece melhor pensar que a situação examinada alegoricamente por Hegel expressa algo mais geral. Pode ser entendida, assim, como a exposição de algo comum do que Marx vai chamar de relações de produção, as quais se baseiam sempre na subordinação do trabalho a um poder que lhe é exterior.

Note-se, ademais, que a primeira frase transcrita indica a ocorrência de uma inversão implícita entre as posições do senhor e do escravo, algo que precisa ser esclarecido. Note-se, em adição, que a divergência de Lacan com Hegel na questão sobre quem “renúncia ao gozo” se apresenta aqui, de início, como bem enigmática. Será que Lacan está certo e Hegel errado? Ou será que se está aqui na presença de uma reformulação da alegoria hegeliana – e não de uma verdadeira interpretação?

A dialética do reconhecimento: Independência e sujeição; senhor e escravo

Para melhor compreender a interpretação lacaniana da relação de subordinação do trabalho, assim como o processo de interação entre aquele que domina e aquele que é dominado, sob a figura da relação de escravidão, é preciso começar pelo modo como essa passagem está posta na obra clássica. Como se sabe, nesse escrito, Hegel considera a luta pelo reconhecimento, não como instância do processo de constituição da sociedade, mas apenas como momento da formação da autoconsciência.

 Essa passagem se encontra no capítulo quarto, A verdade e a certeza de si mesmo, da Fenomenologia do Espírito (Vozes, 1992). Nos capítulos anteriores sobre a certeza sensível, a percepção e entendimento, Hegel tratara da relação da consciência com os objetos do mundo. Agora, ele trata da relação genérica entre duas consciências.

 Em sua linguagem, de início essa relação se apresenta assim: “o que a consciência de si diferencia de si mesma (…) é também ser refletido sobre si; o objeto do desejo é [também] um ser vivo” (Hegel, p. 121). Ou seja, defrontam-se agora duas consciências, duas individualidades sociais, duas vidas que têm a si mesmas como objetos.

Se elas aparecem de início, num primeiro momento, como figuras independentes, logo depois, num segundo momento, elas se manifestam como um par de pessoas diferentes, que se caracterizam assim por serem diferentes sobre um fundo de identidade: são pessoas que vivem em determinada sociedade. Nesse “desdobrar-se em leque das figuras” – diz Hegel – “a vida vem a ser, por isso mesmo, o movimento das figuras, isto é, a vida em processo (idem, p. 122).

Mas como a consciência de si chega a ser pôr, tornando-se para si? O filósofo explica que a consciência de si só pode alcançar esse o seu fim por meio de outra como ela; o seu ímpeto de se pôr, portanto, só pode ser satisfeito por meio de outra consciência de si. A exposição desse processo ocorre em três momentos: no primeiro, o eu tem a si mesmo como objeto; no segundo, é mostrado que a reflexão da consciência de si sobre si mesma advém apenas por meio da mediação da outra; no terceiro, fica constatado que isso ocorre por meio de uma reflexão desdobrada – eis que não ocorre para tal resultado apenas uma, mas sim duas voltas mediadas para si mesmas, ou seja, uma duplicação do movimento do saber a respeito de si mesmas pelas duas consciências defrontantes. 

Ainda que difícil, é preciso ler aqui primeiro o próprio Hegel:

É uma consciência de si para uma consciência de si. E somente assim ela é, de fato: pois só assim vem-a-ser para ela a unidade de si mesma em seu ser-outro. O eu, que é objeto de seu conceito, não é de fato objeto [eis que é o próprio eu pressuposto]. Porém, o objeto do desejo figura como independente por ser [momento] da substância universal indestrutível, a fluida essência igual a si mesma [isto é, trata-se simplesmente de um momento particular do espírito]. Quando a consciência-de-si é o objeto, é tanto eu quanto objeto. (Hegel, p. 125).

Dito de outro modo, cada consciência de si se reconhece e se torna por si por meio da outra e, ao mesmo tempo tem a outra e a si mesma como objeto. De qualquer modo, a dialética do reconhecimento até aqui expôs um encontro, um primeiro momento do vir a ser da consciência de si em por si. Agora, ela vai adentrar na relação entre elas, ou seja, na independência e na dependência das consciências por meio da análise de uma relação de dominação, em específico, de escravidão.

Consideremos agora este puro conceito do reconhecimento, a duplicação da consciência-de-si em sua unidade, tal como seu processo se manifesta para a consciência de si. Esse processo vai apresentar primeiro o lado da desigualdade de ambas (…). [Ao expô-las] como extremas, encontram-se opostas uma à outra; só um extremo é reconhecido; o outro, apenas reconhece. (Hegel, p. 127-128).

Num primeiro momento, cada uma das consciências está certa de si mesma, mas se encontra em dúvida sobre a outra; por isso mesmo, a sua certeza de si mesma carece de verdade já que não é reconhecida pela outra. A lógica do reconhecimento exige, num momento subsequente, que se vá além da “pura abstração do ser para si”. Isto é, para que cada eu possa ser para si, precisa ser um eu para um outro em geral; e essa condição é satisfeita se cada agir de um si mesmo correlaciona-se com o agir de um outro, de tal modo que, em conjunto, formam um processo de vida. Segundo Hegel, esse reconhecimento mútuo só pode ocorrer por meio de uma luta de vida ou morte. A consciência de si é uma experiência de liberdade, a qual só se comprova quando a vida é colocada em risco.

O indivíduo que não arriscou a vida pode bem ser reconhecido como pessoa [ou seja, apenas como parte de uma massa]; mas não alcançou a verdade desse reconhecimento como uma consciência de si independente. Assim como arrisca sua vida, cada um deve igualmente ameaçar o outro de morte; pois para ele o outro não vale mais que ele próprio. (Hegel, p. 129).

Explicando de outra forma, mas ainda seguindo o texto do filósofo: com a vida é condição inerente da consciência, essa última só pode se pensar como independente, ou seja, apenas pode se reconhecer como tal, se experimenta a negação possível de si, se não sentir o desafio da morte. Em tal experiência, ela descobre que a vida lhe é essencial porque sem a vida, deixa também de ser consciência de si.

Hegel, para pensar uma situação social típica, concebe então uma experiência em que se enfrentam uma consciência autoconsciente e que, portanto, é em si e para si, com uma outra que está voltada apenas para fora e que se ignora como autônoma. Esta última, mesmo sendo em si, não é para si, mas apenas para outro. Em sequência, dá corpo a essas duas figuras: a primeira é o senhor e a segunda é o escravo. O meio social implícito se torna assim explícito: tem-se uma relação de escravidão, um modo de produção escravista como dirá Marx.  

Tem-se, portanto, uma relação social de oposição. O senhor é consciência para si com a mediação da outra consciência, ou seja, por meio de uma reflexão.  Esta outra lhe aparece também como uma coisa independente, como um objeto do seu desejo. “O senhor se relaciona” – diz o filósofo – “como esses dois momentos: com uma coisa como tal, o objeto de seu desejo e com uma consciência cuja coisidade é essencial” (Hegel, p. 130).

Num momento anterior, por suposição, os dois contendentes haviam entrado numa luta mortal, da qual saíra supostamente um vencedor e um derrotado. Este último, para não perder a vida, renunciou a liberdade e se tornou um escravo, pois aceitou o jugo do outro. O primeiro, havendo talvez arriscado a vida com mais empenho, tornou-se senhor; investido agora na posição de dominador passou a exigir do seu dominado que trabalhe sem cessar para ele. Na perspectiva do senhor, depois que a relação de subordinação se constituiu como sociabilidade assimétrica, o escravo aparece tanto como uma consciência de si subordinada quanto como coisidade, capacidade de trabalhar e de produzir coisas (valores de uso). 

“O senhor se relaciona mediatamente com o escravo por meio do ser independente”, ou seja, com a coisidade do próprio escravo, obrigando-o a trabalhar. Ao se tornar escravo, a consciência de si suplicante da própria vida fez de seu corpo objeto do outro. Eis que “o senhor” – como diz o texto – “torna-se [então] uma potência acima dele”. Mas, “o senhor também se relaciona mediatamente por meio do escravo com a coisa”, ou seja, com os valores de uso que o cativo é capaz de produzir. E estes lhe pertencem; o destino dos bens são decididos por ele, o dono deles.   

No interior dessa relação social, o escravo somente trabalha e só pode consumir o mínimo possível, o necessário apenas para se manter vivo e para poder continuar trabalhando – esse necessário, entretanto, não é o suficiente para que possa ter prazer. A sua vida, assim, é consumida quase só no desprazer.  Ao contrário, o senhor, por meio ainda dessa relação, obtém prazer e gozo ao poder consumir os valores de uso sem o ônus do trabalho de sol nascente a sol poente. Consegue, assim, “o que o desejo não conseguia: acabar com a coisa (ao consumi-la) e aquietar-se no gozo”. Em resumo: o escravo trabalha e lhe falta o necessário; o senhor goza para além do que dá prazer, isto é, ele pode encontrar satisfação até mesmo no excesso.

 À primeira vista, o senhor parece ser reconhecido como um ser por si pela consciência do escravo. Subsiste, entretanto, uma ilusão aqui já que o dominado não é alguém que atingiu a essência plena de ser humano – eis que lhe falta a liberdade. Hegel escreve, então, que “o agir do escravo não é um agir puro”, mas submisso, forçado, condicionado. Falta, assim, algo efetivo ao processo de formação do sujeito por meio do reconhecimento. Para que este seja “estrito e verdadeiro, falta o momento em que o senhor faz ao outro o que faz a si mesmo, assim como o servo, por sua vez, faz a si mesmo o que faz também ao outro; ou seja, produziu-se desse modo somente um reconhecimento unilateral e desigual” (Hegel, p. 131).

Ademais, se o reconhecimento de si daquele que domina se mostra enfim insuficiente, é preciso ver que o senhor não é também verdadeiramente livre porque se tornou dependente do trabalho do escravo. Ora, essa incompletude do senhor vem a ser a contrapartida do gozo que pode obter por estar como um senhor. Contudo, Hegel diz que a satisfação do senhor é evanescente porque lhe falta o ato de trabalhar; já o escravo, por trabalhar, mesmo se lhe falta prazer, pode alcançar a situação em que a sua consciência de si chega ao para si. O trabalho é desejo refreado, mas ele, ao contrário do ócio, forma o sujeito – e esse formar tem um efeito que a pura dominação, afinal, não pode ter.

Eis, pois, como Hegel, chega a uma inversão: “No trabalho [a consciência de si] se transfere para fora de si no elemento do permanecer [ou seja, nos objetos produzidos]; a consciência trabalhadora chega, assim, à intuição tanto do ser independente como de si mesma”. Ademais, “no formar, o ser para si se torna para ele algo próprio e, assim, chega à consciência de ser ele mesmo em si e para si” (Hegel, p. 133). Essa inversão, portanto, não consiste numa inversão do gozo, mas apenas na possibilidade de que a consciência alcance o para si.

O que é o prazer e o gozo para Lacan?

A tarefa seguinte vem a ser explicar o que significa gozo e prazer para Jacques Lacan. E esse é um passo necessário para poder compreender a divergência apontada na introdução. Para maior clareza, supõe-se aqui que é possível distinguir essas duas noções tal como se diferenciam – aposta-se – o vinho da água.  Se a necessidade, segundo ele, vem da animalidade do humano, o desejo que dele deriva pela mediação da linguagem passa a ser metafísico. A noção de prazer que Lacan adota vem de Freud, sendo assim apresentada no escrito consultado

O princípio do prazer é, para Lacan, próprio do campo do desejo e tem como função (…) manter o mais baixo possível o nível de tensão que regula todo o funcionamento do aparelho psíquico (Checchia, p. 237-238).

Note-se que a sede vem do corpo humano, mas não se mostra apenas como uma sensação de secura na boca, mas se expressa também na linguagem, pondo-se assim como um desejo por água especificamente humano. A psicanálise apresenta o humano em geral como um ser desejante. Nesse sentido, a água atua aqui apenas como uma metáfora introdutória para a noção freudiana de “das Ding”, que se traduz obviamente por A Coisa, aquilo que “preenche” a falta constitutiva do ser humano enquanto tal. Enquanto a água existe materialmente, das Ding é o nome de “algo” que foi perdido para sempre.

Se se quer concretizar esse “algo”, se pense, por exemplo, no seio materno como objeto perdido, ou seja, como uma memória desvanecida do órgão feminino que alimenta os bebês com leite. Na verdade, o significado que a noção das Ding procura transmitir vem a ser bem abstrato – trata-se de algo metafísico, um vazio existencial que persiste durante toda a vida do sujeito. Se isso, entretanto, for difícil de compreender, que se pense, então, no “paraíso” – um lugar imaginário supostamente perdido juntamente com o advento do ser humano na face da Terra.

Eis que essa psicanálise sustenta que o ser humano se constitui por meio da perda da animalidade original por meio da entrada imperativa no mundo da linguagem. O mundo humano, como se sabe, se apresenta para os recém-nascidos em geral – mesmo se eles não o sabem – como um mundo de coisas recoberto simbolicamente. Ora, a entrada forçosa na linguagem – ou seja, nessa materialidade puramente social – transforma aos poucos o neonato em um ser perenemente desejante.

Como o seu objeto de desejo consiste, pois, num “algo” (das Ding), os objetos concretos que o sujeito busca efetivamente nunca vão preencher essa falta constitutiva. A água – fazendo uso outra vez da metáfora inicial – nunca vai matar para sempre a sede da pessoa; o prazer que se sente ao matar uma sede num certo momento é sempre provisório; na verdade, a sede se mostra eterna enquanto o vivo continuar vivo. Nesse sentido, Lacan, tendo em mente a situação mais abstrata, apresenta o humano como falta-a-ser.

Fez-se já referência ao paraíso como um sítio imaginário que preenche o lugar do “algo” faltante. Ora, a psicanálise toma o “paraíso” como uma fantasia exemplar que nasce na psique como um recheio dessa falta transcendental, o objeto perdido. Eis como o autor consultado explica esse ponto:

 A fantasia vem subjetivar das Ding, recobrindo, por meio de imagens e significantes (…), o vazio real instaurado pela perda do objeto, perda ocasionada pelo fato de que a realidade se apresenta estruturada simbolicamente. Desta forma, o [desejo está para a fantasia] (…) assim como a perda está para a falta (Checchia, p. 237).

Esquematicamente, traduz-se a última frase assim:

Ou seja, se houve uma perda haverá uma falta e esta última assumirá sempre uma expressão simbólica; se aparece agora um desejo na psique, então haverá também uma fantasia. Dito ainda de outro modo, metaforicamente, se se perdeu líquido ao fazer um exercício, sobrevirá por certo uma sede; ao se querer então beber água, não se quer apenas atender a mera demanda do corpo, mas se tem desejo e, assim, quer-se obter prazer. Contudo, também se quer ir além, cobrindo também uma demanda futura de água, já que se pode querer atender uma falta que reside apenas na imaginação. Como essa fantasia é realista, o indivíduo sedento pode quer ter um recipiente, o qual pretende encher repetidamente ao longo da vida. Note-se, entretanto, que é da natureza da fantasia levar o indivíduo a cometer excessos…

Se há, segundo Checchia, uma ponte entre o desejo e a fantasia, há também – quando se fica no ensinamento de Lacan – uma ponte entre o princípio do prazer e o além do princípio do prazer, que o próprio Freud havia associado à pulsão de morte. O primeiro está associado ao desejo; o segundo correlaciona-se à fantasia. Ora, é preciso ver agora que, ao chegar a esse momento da exposição, reencontra-se o ponto de partida dessa seção. Ao recolocá-lo recolocar aqui, pode-se reproduzir e considerar o que vem depois:  

O princípio do prazer é, para Lacan, próprio do campo do desejo e tem como função (…) manter o mais baixo possível o nível de tensão que regula todo o funcionamento do aparelho psíquico.

Já a satisfação proveniente da fantasia não deve confundida com [a satisfação ligada ao] princípio do prazer. Para tratar dessa satisfação, Lacan recorre (…) ao objeto reencontrado por meio do enredo da fantasia. Aí está o fundamento da compulsão à repetição, próprio do funcionamento psíquico que está para além do princípio do prazer. E essa compulsão à repetição ganha outro nome com Lacan: gozo (Checchia, p.238).

Esquematicamente, para melhor fixar as ideias, tem-se:

É preciso mencionar neste momento que o vinho não é, em si mesmo, uma boa metáfora para o gozo – mas apenas o vinho em excesso sob o propósito inconsciente de repetir o estado de torpor “gostoso/desgostoso” associado à embriaguez.  Posta essa retificação, notando que se passou do mero desejo para a fantasia desejante, pode-se continuar com o autor compulsado:

Há uma satisfação decorrente da ação específica, mas uma satisfação que tem um caráter paradoxal, pois se trata de uma satisfação na morte, que implica o esvaecimento ou a síncope do sujeito. Quando o sujeito se encontra muito fixado no circuito do gozo, o que surge é um excesso que leva à dor, ao sofrimento e à angústia.

Em resumo, para Lacan (na interpretação de Checchia), há uma diferença entre a satisfação de necessidade (prazer) e a satisfação em excesso (gozo). Mas por que há essa tendência ao excesso? O que há na psique do indivíduo social que o leva a extrapolar o meramente satisfatório, ir além, caindo eventualmente em extravagâncias?

Eis que a pulsão, que mora no inconsciente, tem a própria satisfação como objeto e, nesse sentido, ela própria, por meio da fantasia, torna-se a fonte de desmedida. A pulsão não quer outra coisa do que obter repetidamente a satisfação em excesso. A pulsão não quer trair gozo, mas a sua interversão em “não-gozo” pode advir. O excedente de satisfação reclamado pela pulsão pode ser contido pela censura que vem do supereu, o representante psíquico da cultura e da sociedade, mas também pode não o ser. Nesse caso, ocorre uma segunda interversão.    

O gozo, portanto, pode ser contido por restrições que moram na própria psique, mas que estão fundadas, em última análise, na própria sociedade. Mas nem sempre o supereu, instância dessas restrições, é bem-sucedido na imposição de moderação. O indivíduo social pode desafiar – por boas ou más razões – as normas morais veiculadas pelo supereu, trazendo então para si mesmo “dor, ao sofrimento e à angústia”. Nesse caso, a pulsão se manifesta precipuamente como pulsão de morte. Nesse sentido, se essa tendência ao excesso do excesso soe repetir-se indefinidamente, a pulsão originária tende a ser identificada à pulsão de morte.

Ocorre que não advém à psique do indivíduo social sempre boas normas provindas da sociedade – esta, como bem se sabe, é lugar de contradições dilaceradoras e, assim, de minas de exploração e violência. Em consequência, o supereu é alimentado também seja por normas perversas seja por imperativos sistêmicos que, ao invés de moderar os ímpetos pulsionais, os libertam, os reclamam, os atiçam. Nesse caso, o gozo benigno se interverte em gozo perverso – o indivíduo social, ao invés de extrapolar e chegar desse modo à “dor, sofrimento e angústia” em si mesmo, produz “dor, sofrimento e angústia” num outro. Ao invés de masoquismo tem-se sadismo.

Da homologia entre o mais-valor e o mais-de-gozar [2]

No seminário 16, De um Outro ao outro (Zahar, 2006), Jacques Lacan diz que vai se encontrar finalmente com Marx, autor clássico que o havia “importunado” por um extenso tempo e que ele trata agora como um parceiro estruturalista (sic!). O seu objetivo no recorte que aqui se investiga – e que se encontra já na Introdução ao livro citado – consiste em mostrar que há uma homologia entre a categoria de mais-valor do autor de O capital e a noção que ele próprio introduziu de mais-de-gozar.

Os textos desse psicanalista famoso, como bem se sabe, são obscuros e, por isso mesmo, muito difíceis de interpretar. Ora, essa afirmação de Lacan, que se mostra bem polêmica, suscita um questionamento: afinal, o que ele quer dizer com isso? Há mesmo uma homologia entre esses dois conceitos? O escrito de Marcelo Checchia investiga também o sentido dessa suposta homologia.

Como já se indicou, a questão não está posta por meio da consideração da relação de capital, mas pelo apreço da relação de escravidão, tal como foi apresentada por Hegel. O seu ponto de partida parece estar na seguinte afirmação de Lacan:

Desde o começo, com efeito, e ao contrário do que diz ou parece dizer Hegel, é ela [ou seja, a renúncia ao gozo] que constitui o senhor, o qual pretende fazer dela o princípio de seu poder. O que há de novo é a existência de um discurso [ou seja, o seu próprio] que articula essa renúncia. Evidencia-se nela [ou seja, nessa renúncia] a função de mais-de-gozar. (Lacan, p. 17).

Ora, esse lance inicial precisa ser complementado aqui com um outro, uma outra citação que, tal como a anterior, se mostra igualmente pouco esclarecedora – enigmática:

De fato, ele [Hegel] fazia a dialética partir (…) das relações entre o senhor e o escravo e da luta de morte, de puro prestígio (…). Que quer dizer isso senão que o senhor renunciou ao gozo? Como não é por outro motivo senão a salvação de seu corpo que o escravo aceita ser dominado, não vemos por que, nessa perspectiva explicativa, o gozo não fica em suas mãos. (…) Se, logo de saída, o senhor envereda para o risco, é porque deixou o gozo para o outro. É muito singular que isso não seja manifestado de maneira absolutamente clara. (apud Checchia, p. 330).

Ora, diante desses dois trechos, a pergunta permanece: por que, então, Lacan contraria Hegel sobre quem abdica do gozo na instituição da relação de escravidão?

Veja-se, primeiro, que o filósofo afirma que aquele que “escolhe” ser escravo para sobreviver renuncia ao gozo porque perde a liberdade. Conforme a dialética aí implícita o sujeito está pressuposto na luta pelo reconhecimento e ele só pode vir a ser sujeito posto se houver uma superação da disputa e, assim, o reconhecimento recíproco de que ambos são sujeitos, ou seja, que estão qualificados como seres livres que mantêm uma relação de respeito entre si mesmos. Como a luta das duas consciências de si põe não uma relação de comunidade, mas uma relação de escravidão, isso indica que os contendentes não se realizaram como sujeitos, não se tornaram por si mesmos, de tal modo a meta humana mais importante para Hegel frustrou-se.  

Veja-se agora, em sequência, que o psicanalista francês afiança categoricamente que, ao subjugar o outro na luta pelo reconhecimento, o vencedor se torna senhor e assim se mantém porque “renuncia ao gozo”.

É evidente, se Lacan chegou a essa conclusão é porque ele abandonou já a pressuposição de que o ser humano pode, em princípio, advir como sujeito. Ao invés de pensar na perspectiva da dialética, raciocina na perspectiva de uma antropologia fundante que ele – e antes dele, Freud – encontra em Hobbes, ou seja, que “o homem é o lobo do homem”.[3] Nessa perspectiva, aquele que é chamado de homem está determinado por uma tendência pulsional constante para tratar o outro como objeto – ou seja, como algo que pode ser apropriado e consumido de modo sexual, como força de trabalho e mesmo como presa que pode ser morta.   

Para Lacan, em princípio, é apenas a linguagem que estabelece o laço social, ou seja, a relação de interação – pensada como contato meramente externo – entre os indivíduos sociais. Ora, nesse quadro, para que qualquer sociabilidade civilizatória seja constituída é preciso que haja uma renúncia à tendência pulsional acima referida. Em consequência, a própria linguagem se torna o meio que engendra essa renúncia, a qual vem a ser renúncia ao gozo, uma contenção da satisfação possível da pulsão.  

Essa renúncia significa que o indivíduo social deixa de atender ao desejo profundo que mora supostamente em seu inconsciente. Ora, esse desejo não consiste no desejo para obter isso ou aquilo, mas está associado a perene busca do “objeto a”, um objeto tido por perdido, isto é, aquilo que faz do ser humano um ser desejante supostamente insaciável. Essa frustração se manifesta na interação das consciências de si, num quadro analítico em que a dialética foi já cancelada.

Mas como se dá essa renúncia ao gozo na perspectiva do mestre francês?

 Para Lacan, o ato de investimento do senhor na produção de bens e serviços, apresentado como uma abstenção ao consumo, mesmo se isto não está explícito, é o que concretiza a renúncia ao gozo do senhor-capitalista. Já o escravo-trabalhador, que se sujeitou ao outro, não renunciou ao gozo porque, em princípio, pode buscá-lo trabalhando, recebendo gratificação e consumindo para subsistir. Contudo, como Lacan concebe o ser humano como falta-a-ser, essa busca acaba e tem de acabar sempre em frustração – pois, só assim ela pode começar de novo, interminavelmente.

De qualquer modo, Lacan não dá atenção ao trabalhador, pois se concentra na condição existencial do capitalista. Por isso mesmo, vai supor que o gozo perdido pode retornar a ele por meio dos bens e serviços que o escravo produz e que valem dinheiro no mercado.  

O senhor, que se expôs à morte e continua fixado nessa posição, diz Lacan, deixa o gozo ao escravo, embora o prive de sua liberdade. Como, então, pergunta-se Lacan, o gozo volta a ficar ao alcance do senhor? Marx lhe dá a resposta: pelo mais-valor, que é para Lacan, justamente a forma de recuperação do gozo do senhor no sistema capitalista. A função do mais-valor é, assim, de recuperação e manutenção da posição de senhor. (Checchia, p. 331).

Hegel toma o trabalho não só como atividade de transformação da natureza, mas como possibilidade de realização de si mesmo do ser humano como sujeito. O trabalho, ademais, para ele, está inerentemente associado à linguagem e à luta pelo reconhecimento. Eis que são mediações dialéticas que permitem o desenvolvimento do Espírito. Lacan, devedor do estruturalismo francês, entretanto, considera a linguagem – não como mediação dialética – mas como um meio de interação social por excelência. Ademais, ele pensa o ser humano como faltante, como um ser dotado de um desejo metafísico que não pode ser saciado e que busca um objeto perdido, o objeto a.

Note-se neste momento que toda essa elaboração conseguiu dar uma explicação plausível para a divergência apontada de Lacan em relação ao Hegel no que se refere à interpretação da dialética do senhor e do escravo. Ademais, o seu resultado parece indicar que a reinvindicação central desse autor em relação a Marx está errada, inclusive porque o materialista concordaria no ponto discutido com o idealista absoluto. Mas é preciso, agora, argumentar melhor sobre a razão desse erro que está longe de ser ingênuo.   

Veja-se que Lacan não pensa a linguagem e, assim, a linguagem das mercadorias como Marx, mas, por intermédio de Saussure, um autor que tem uma dívida pesada com Vilfredo Pareto.

Nesse sentido, dinheiro para ele não se apresenta como o equivalente das mercadorias em geral, algo especial que está constituído do mesmo modo que todas as outras por trabalho abstrato. A forma-valor, uma medida objetiva que independente da consciência dos agentes, é posta socialmente por meio de redução dos trabalhos concretos a trabalho abstrato. Os valores de uso funcionam, assim, como suportes materiais da forma-valor. A mercadoria para os economistas clássicos e Marx, como se sabe, é a unidade de valor de uso e valor (o que se expressa no valor de troca).  

Para Lacan, a coisa se mostra bem diferente. Eis que, para ele, o dinheiro figura como um significante que guarda relação de homologia com os significantes comuns da linguagem dita natural. E nisso, como já foi dito, segue Saussure. Como se sabe, em seu Curso de Linguística Geral (Cultrix, 2012), esse último autor tratou o valor como valor de troca e este último como uma convenção constituída pelo funcionamento do próprio sistema econômico: “para determinar o que vale a moeda de cinco francos, cumpre saber: que se pode trocá-la por uma quantidade determinada de coisa diferente, por exemplo, pão. (…) Do mesmo modo, uma palavra pode ser trocada por algo dessemelhante: (…) outra palavra” (Saussure, p. 162). Para pensar a língua como estrutura, Saussure se inspirou na teoria neoclássica dos preços (ou seja, lendo Pareto) e não na teoria do valor de Marx.  

Posto isso, é preciso apresentar ainda mais uma citação antes de fechar este artigo:

Ele [Lacan] é bem assertivo quanto a isso: “simplesmente cumprindo a sua função do senhor, ele perde alguma coisa. Essa coisa perdida, é por aí que pelo menos algo do gozo deve ser-lhe restituído – precisamente o mais gozar”. Ele ainda afirma que se Marx não houvesse fundado o capitalismo [enquanto um modo de produção que existe objetivamente], ele teria descoberto que o mais-valor é um caso particular do mais-de-gozar. Aliás, Lacan, inclusive, brinca que o Mehrwert (o mais-valor) é o Marxlust, o mais-de-gozar de Marx. (Checchia, p. 331)

Ao reivindicar a homologia entre o seu mais-de-gozar e o mais-valor de Marx o que teria pretendido Lacan? É claro que essa pretensão pode ter parecido plausível num primeiro momento porque Lacan interpretou linguisticamente a lógica da acumulação de capital, sintetizada em “dinheiro que compra mercadoria e que gera mais dinheiro”, tomando o dinheiro como expressão imediata do mais-valor. Não se pode dizer, entretanto, que o psicanalista tenha feito uma apologia do capitalismo. O que ele fez é mais sofisticado; eis que funda na subjetividade humana a lógica de desenvolvimento infinito que caracteriza o capital, considerando-o assim como uma institucionalidade insuperável.   



[1] Professor aposentado do Departamento de Economia da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br; Blogue na internet: https://eleuterioprado.blog

[2] Uma interpretação diferente se encontra no escrito A moral jansenista e a compulsão do capitalismo de Samo Tomšič, o que foi traduzido e publicado neste blog.

[3] Ver Quinet, Antonio – Psicose e laço social – esquizofrenia, paranóia e melancolia. Rio de Janeio: Zahar, 2006, p. 9.