Resumo: As pulsões sexuais põem a vida num corpo (vivo por isso), o qual sem elas estaria morto; por isso mesmo a pulsão de morte, a morte pulsional melhor dizendo está pressuposta nas manifestações da vida.
Autora: Alenka Zupančič
Para os filósofos lacanianos a noção de pulsão de morte tem uma função muito importante e persistente, pois aparece geralmente em pontos cruciais de vários argumentos conceituais. Apesar de haver esclarecimentos (e exemplos) do que essa noção nomeia e se refere, há ainda muita confusão a esse respeito. Pode ser que essa confusão venha do fato maior de que essa noção está e permanece em processo de construção no interior da psicanálise.
Não que as outras noções freudianas estejam simples e totalmente estabelecidas e fixadas, sem possibilidade de que possam ter ainda uma vida conceitual mais longa, mas a pulsão de morte parece carecer particularmente de algum tipo de ancoragem inicial ou fundamental. A razão é muito simples: o que Freud, em Além a princípio do prazer, apresenta primeiro sob o rótulo de pulsão de morte (Todestrieb) não é exatamente o que “nós” lacanianos (e eu me incluo entre eles) entende por ela.
Eis como, a título de exemplo, Freud especula sobre as origens possíveis do que ele chamará de pulsão de morte:
Os atributos da vida foram em algum momento evocados na matéria inanimada pela ação de uma força que não podemos conceber… A tensão que então surgiu no que era até agora substância inanimada passou a se esforçar para cancelar a si mesma. Desse modo, o primeiro instinto (Trieb) veio a ser: o instinto de retornar ao estado inanimado.
Esse “instinto” ou pulsão para recuperar o suposto estado homeostático original, um estado sem tensão, é que ele chama de pulsão de morte. Aqui está, entretanto, como Zizek pensa a pulsão de morte:
A pulsão de morte significa precisamente que a tendência mais radical de um organismo vivo é manter um estado de tensão, evitar o “relaxamento” na obtenção de um estado totalmente homeostático. “Pulsão de morte” como algo “além a princípio do prazer” é a própria insistência de um organismo em repetir indefinidamente o estado de tensão.
Isto é crucial insistir, contudo, que não se tem aqui, simplesmente, um “mal-entendido” (no melhor dos casos) ou uma ” fabricação deliberada” (no pior dos casos), pois, na verdade, existe uma lógica psicanalítica (freudiana) que vai da primeira à segunda formulação.
Neste capítulo [do livro What is sex?], proponho-me a esboçar essa lógica. Vou fazê-lo por meio de uma leitura atenta de algumas partes de Além do Princípio do Prazer, que é um dos ensaios de Freud (escrito em 1920) mais intrigantes e complexos. Esse ensaio não é de modo algum “linear”, pois a posição de Freud passa por várias mudanças significativas.
Começo no meio do ensaio, momento em que Freud se aventura em algumas das mais surpreendentes reflexões especulativas por meio das quais ele apresenta a noção de a pulsão de morte. Estas poucas páginas merecem uma consideração séria não só porque introduzem esta noção pela primeira vez, mas também porque realizam uma intrigante “desconstrução” da nossa compreensão espontânea da vida (e do vitalismo), despojando a noção de vida de qualquer tipo de consistência ou fundamento ontológico.
A partir daí, apontarei e acompanharei vários deslocamentos e contradições no ensaio de Freud, a fim de propor a construção de uma noção diferente da pulsão de morte, mas que está implícita no ensaio em diferentes pontos, e particularmente nas mudanças de posição e dúvidas às quais ele continua voltando. Argumentarei que o conceito psicanalítico genuíno da pulsão de morte está de fato relacionado a fenômenos que Freud vê principalmente em oposição à sua própria noção de pulsão de morte, a saber, a sexualidade (“pulsões sexuais”, que ele vê como “pulsões de vida”). Ora, é precisamente no terreno da sexualidade que encontramos a chave para a lógica da transição do conceito original de Freud para o conceito lacaniano da pulsão de morte.
É preciso começar in medias res, considerando esta longa e intrigante passagem de Além do princípio do prazer:
Se tomarmos como verdade sem exceções que tudo o que vive morre por razões internas – torna-se novamente inorgânico – então seremos compelidos a dizer que “o objetivo de toda vida é a morte” e, olhando para trás, que “as coisas inanimadas existiram antes das vivas”.
Em algum momento, os atributos da vida foram evocados na matéria inanimada pela ação de uma força de cuja natureza não podemos formar nenhuma concepção… A tensão que então surgiu no que até então havia sido uma substância inanimada tendeu a se anular. Assim surgiu o primeiro instinto: o instinto de retornar ao estado inanimado. Naquela época primeira, ainda era fácil para a substância viva morrer; o curso de sua vida era provavelmente breve, pois a sua existência estava determinada pela estrutura química da vida jovem.
Por um longo tempo, talvez, a substância viva foi sendo constantemente criada de novo e morrendo facilmente, até que influências externas decisivas se alteraram de tal maneira que obrigaram a substância ainda sobrevivente a divergir cada vez mais amplamente de seu curso original de vida, tomando cada vez mais desvios mais complicados antes de atingir seu objetivo de morte. Esses tortuosos caminhos para a morte, fielmente percorridos pelos instintos conservadores, nos apresentariam assim hoje o quadro dos fenômenos da vida.
O que Freud está dizendo aqui? Vista sob a perspectiva do resultado (tudo que vive acaba morrendo, e morre por razões internas), a morte parece ser o objetivo mais fundamental da vida. Freud sugere assim um caráter primário da pulsão de morte (como impulso inerente à vida como tal) e define os instintos conservadores como forças que fortificam os desvios desse impulso fundamental.
Os “instintos de vida” (ou instintos de autopreservação) não seriam, portanto, de uma espécie de força afirmativa (e espontânea) de vida, mas formações secundárias em relação à pulsão primária da existência, que é a pulsão de morte. Isso se constitui como uma reviravolta um tanto surpreendente do que vem a ser a nossa percepção espontânea: a partir dessa perspectiva freudiana, não há nada de original ou de espontâneo na afirmação e na conservação de vida. Os instintos de vida são automáticos (ou se auto pilotam), mas não são ontologicamente primários (para Freud, há na verdade uma primazia ontológica, literalmente, do “ser-para-a-morte”).
Os instintos de vida estão são uma forma de “conhecimento” (de saber-como-fazer) necessário para a preservação desse desvio a partir da negatividade fundamental implícita na própria vida, qual é chamada de morte (pulsão). A pulsão de morte nomeia uma espécie de fadiga fundamental ou ontológica da vida como tal. É a subjacente corrente constante da vida em todas as suas formas coloridas e exuberantes. Não é o oposto dessas formas, mas está presente em todas elas.
Por mais estranhas que pareçam essas especulações, elas não devem ser descartadas tão rapidamente. Colocando em questão um pressuposto automático (ainda que problemático, até fantasmático) de que existe algum tipo de força original ou “vontade” de vida, Freud é capaz de preparar o terreno para uma hipótese profundamente interessante. O que ele diz é basicamente isso: a vida é acidental, não há uma (misteriosa) vontade de vida: o que se vê como “forças vitais” são instintos constituídos no processo de reiteração de acidentes que fazem existir o que se chama de vida. Tais instintos “sabem” conservar (preservar) os caminhos dessa reiteração, mas não querem nada, não miram em nada.
Portanto, o que Freud está dizendo aqui é, na verdade, algo bastante diferente da retórica do combate entre os instintos de vida e de morte (ao qual faz referência em certos pontos). Essa última retórica sugere que há duas forças independentes (a “vontade para viver” e a “vontade para morrer”), como se fossem dois princípios um lutando com o outro. E isso não faz sentido quando se olha firmemente o que Freud está dizendo na passagem acima.
Não há luta aqui: a vida é apenas uma rota tortuosa para morte; os instintos conservadores são o pavimento desta rota, indistinguível dela. Elas não “quererem” nada, elas não “lutam” contra a morte, pois, simplesmente, fazem o seu trabalho de manter esse especial caminho tortuoso caminho rumo ao inanimado. Estritamente falando, trabalham para manter o caminho e não simplesmente para “manter a vida.” Freud é mais que explícito neste ponto:
Visto sob esta luz, diminui muito a importância teórica dos instintos de autopreservação, de autoafirmação e de domínio. Eles são instintos componentes cuja função é assegurar que a organismo siga o seu próprio caminho para morte, afastando quaisquer formas possíveis de retornar à existência inorgânica que não seja imanente ao organismo em si mesmo.
De acordo com essa perspectiva, os instintos de autopreservação não mudam – mesmo temporariamente – o objetivo fundamental da vida (a morte); eis que, simplesmente, introduzem uma temporalidade nela. E o modo de ser dessa temporalidade é essencialmente a repetição. Os instintos conservativos repetem os caminhos da vida adquiridos/estabelecidos, a não ser que sejam forçados (por razões externas) a se modificarem; e é isso que percebemos erroneamente como instintos que impulsionam a mudança, desenvolvimento e a produção de novas formas. Nada impulsiona essa espécie de mudança – não há pulsão para ela.
Então, se aceitamos e seguimos essas reflexões freudianas, descobrindo as suas implicações, o que afinal é a vida? A vida não tem fundamento ou fonte própria. É algo que acontece no inanimado, é um acidente que ocorre no inanimado (possivelmente devido às suas contradições ou inconsistências inerentes). Não é simplesmente o seu outro. É uma interrupção, uma perturbação do inanimado, uma lacuna que aparece nele; ou, em uma outra perspectiva especulativa viável: a vida dá uma forma singular e separada a uma lacuna inerente por conta da qual o inanimado simplesmente não coincide consigo mesmo.
Em sintonia com os grandes materialistas e em descrédito da visão antropocêntrica (ou “correlacionista”) da realidade, dir-se-á que o inanimado é indiferente à vida, que ele existia antes que a vida viesse a acontecer; existirá mesmo depois que a vida se tornar extinta. Ora, essas considerações acima nos convidam a ir ainda mais longe.
Em vez de dizer que o universo (inanimado) não dá importância se vivemos ou morremos (e que, a partir da perspectiva do universo, nossa existência é totalmente insignificante), nós estamos convidados a considerar a possibilidade que nos torna ainda menos excepcionais: que sejamos meras perversões, estranhos prazeres, do próprio inanimado. Não no sentido de constituir parte harmoniosa e integral do grande todo ou ciclo do universo (o que dá origem ao “sentimento oceânico” também discutido por Freud), mas no sentido de constituir apenas produto de seus tiques.
A vida é apenas um sonho do inanimado. Mais precisamente, é um pesadelo do inanimado (consiste numa perturbação noturna): o inanimado não quer coisa alguma, mas apenas que o deixe sozinho. Nesse sentido, poder-se-ia dizer que a pulsão de morte não é tanto uma pulsão, mas uma fadiga ontológica, um efeito fundamental da vida – não se trata de dizer que seja necessariamente vivenciado, “sentido” como um cansaço; não, ele está presente como uma espécie de “afeto objetivo” da vida…
Até agora estivemos discutindo o que Freud escreveu mais ou menos no meio de seu texto. Passemos agora ao seu início, onde Freud (re)afirma a sua convicção quanto ao caráter primário do que denominou “princípio do prazer”:
Na teoria da psicanálise não há hesitação em assumir que o curso tomado pelos eventos mentais é automaticamente regulado pelo princípio do prazer. Acreditamos que o curso desses eventos é invariavelmente posto em movimento por uma tensão desagradável e que esse curso toma uma direção tal que o resultado final coincide com uma redução dessa tensão, ou seja, com uma evitação do desprazer ou uma produção de prazer… Decidimos relacionar o prazer e o desprazer à quantidade de excitação que está presente na mente mas não está circunscrita de nenhum maneira por um “limite”; decidimos, também, relacioná-los de tal maneira que o desprazer corresponda a um aumento na quantidade de excitação e o prazer a uma diminuição.
É claro por essa passagem que o “princípio do prazer” para Freud não se refere a qualquer tipo de busca hedonista e de luta pelo prazer, procurando ativamente por gratificação e satisfação, mas basicamente a busca de alívio (de tensão e excitação), de “diminuição da tensão”, na tentativa de alcançar um estado homeostático.
Se agora relacionarmos essas frase de abertura do ensaio de Freud com nossa discussão anterior, fica claro como o “princípio do prazer”, com a sua tendência homeostática, é na verdade um equivalente mental do que aparece mais tarde nas especulações de Freud sobre a tendência fundamental de toda a vida para retornar ao inanimado e, consequentemente, para reduzir a tensão induzido (na matéria inanimada) pela emergência da vida.
Nesse sentido preciso, por paradoxal que possa parecer, a pulsão de morte, tal como fora introduzida por Freud, é de fato, simplesmente, outro nome para o “princípio do prazer”. Quando ele explica como fundamental que o “princípio de realidade” (relacionado à preservação de vida) força os humanos a fazer exceções ao princípio do prazer, Freud usa exatamente a mesma imagem de um desvio que ele usa mais tarde no contexto da discussão da relação entre a vida e a pulsão de morte:
Sob a influência do instintos do ego de autopreservação, o princípio do prazer é substituído pelo princípio da realidade. Este último princípio não contraria totalmente a intenção de obter prazer em última instância, mas exige e efetiva o adiamento da satisfação, o abandono de uma série de possibilidades de obtenção de satisfação e a tolerância temporária do desprazer como um passo no longo caminho indireto ao prazer
Esse é exatamente o quadro discutido acima: a vida como uma perturbação e adiamento temporário ao que aparece como um prazer metafísico (homeostase) do inanimado. A vida/o princípio da realidade é um adiamento da morte e o princípio do prazer está nele implicado. O princípio do prazer é sinônimo de pulsão de morte, que permanece — apesar dos desvios e adiamentos temporários — o princípio/meta fundamental da vida… Há um mapeamento direto, ponto a ponto, que poderia ser feito entre os dois, entre o princípio do prazer e o princípio de morte (tendência para retornar ao inanimado), como presente em toda a vida.
E assim como os instintos de autopreservação não são opostos à pulsão de morte, mas somente seu desvio inerente, o princípio de realidade não é oposto ao princípio do prazer, mas funções de seu circuito de prolongamento. Estritamente falando não há um “além do princípio do prazer” a ser aqui discernido. Ao contrário do que estamos inclinados a esperar, a noção (original) de Freud sobre a pulsão de morte não é aquilo que corresponde ao que está “além do princípio do prazer” e, portanto, ao que levou Freud a escrever esse texto em primeiro lugar (a saber, o fenômeno das pessoas se agarrando, e repetindo, algumas experiências decididamente desagradáveis).
A real oposição só aparece no próximo passo, quando Freud – após ter trabalhado a hipótese da pulsão de morte como o único impulso – apresenta o que ele chama de “instintos da vida real”, os quais ele identifica com os sexuais. “As pulsões sexuais” (diferentes dos instintos de autopreservação) são agora as únicas pulsões que parecem quebrar o ciclo da vida, tal como dominado pelo princípio do prazer e seu ímpeto fundamental de retornar inanimado.
Mantidos por sua “tensão”, eles se põem por meio de excitação e tensão (pelo menos um pouco), estando relacionados de um ponto de vista biológico à continuação “sem fim” da vida. Eles também, caso se fale em reprodução (união de duas células diferentes), em amor (em suas diferentes formas) ou em grandes sublimações (tal como a arte), saem de seu caminho para abraçar alguma alteridade, certa diferença, o Outro (ou ao menos um sinal do outro). Prazer (no sentido freudiano), por outro lado, não requer qualquer Outro; o Outro (como Outro) é fator de perturbação para ele… A pulsão sexual não “luta” contra o princípio do prazer quando parece suspendê-la, mas a invaliada como um princípio em primeiro lugar. Parecem contrariar a fadiga, ou seja, parecem ter uma força e uma lógica própria. Isto é muito importante que se mantenha em mente que não é simplesmente uma força que guia a vida, mas de algo singular que acontece na própria vida. A equação das “pulsões sexuais” e das “pulsões de vida” é, portanto, enganosa, uma vez que o primeiro se refere a algo na vida mais (ou menos) do que (apenas) vida.
Essa é a parte do texto de Freud em que ele estabelece (após explorar a hipótese de que a única pulsão inerente à vida é a pulsão de morte) o que ele mesmo chama de visão dualista, com uma clara oposição entre Lebens – oder Sexualtriebe e Todestriebe (oposição que pode ser rapidamente resumida como a oposição entre Eros e Thanatos). Todestriebe corresponde ao que discutimos até agora (ao cansaço como afeto fundamental e com objetivo da vida), ao passo que as pulsões sexuais se distanciam desse destino e lógica e trabalham em uma direção diferente; não são apenas adiamentos da morte, desvios no caminho da vida para a morte: são desvios que fazem/introduzem uma diferença real, produzem algo “novo”; estabelecem mesmo uma “imortalidade potencial” (das espécies, ao preço da morte dos organismos individuais).
No entanto, essa visão dualista também se mostra insustentável; o que a mina ou complica, para colocar isso de forma muito simples, é que a sexualidade não pode ser incluída na noção de “instintos de vida”. Se a sexualidade correspondesse a um “instinto de vida” não haveria psicanálise, pois uma de suas principais descobertas foi justamente a de que não havia princípio (ou lei) fundamental orientando a sexualidade humana.
Além disso, a ideia de algo (em nós) que visa a continuação da vida e algo que visa ao retorno ao inanimado, não é de forma alguma o que corresponde à noção de pulsão (Trieb) propriamente dita. Trata-se de uma noção muito interessante e complexa, envolvendo uma divisão, repetição, satisfação excedente e presunção constante. Freud faz neste ponto uma breve referência a Jung, pois ele parece ser lembrado do seguinte fato: o dualismo das pulsões (“pulsões de vida” e “pulsões de morte”) é, na verdade, o outro lado da concepção da libido como “neutra”, substância dessexualizada.
Jung, diz ele, “fazendo um julgamento precipitado, usou a palavra libido para significar ‘força instintiva/impulsiva’ (Triebkraft) em geral”. É exatamente isso que estava em jogo em sua cisão com Jung, essa dessexualização da libido em termos de uma substância primária neutra, posteriormente dividida entre diferentes pulsões que fazem parte desse “grande todo” chamado libido, constituindo basicamente dois princípios (complementares)….
O movimento fundamental de Freud, por outro lado, foi dessubstancializar a sexualidade: o sexual não é um princípio a ser propriamente descrito e circunscrito, é a própria impossibilidade de sua própria circunscrição ou delimitação. Não pode ser completamente separada das necessidades e funções biológicas, orgânicas (uma vez que se origina em seu reino, começa por habitá-las), nem pode ser simplesmente reduzida a elas. O sexual não é um princípio ou domínio separado da vida humana e é, por isso, que pode habitar todos os domínios da vida humana. Em última análise, nada mais é do que a contradição inerente à “vida”, que por sua vez perde seu caráter auto evidente.
A referência a Jung neste ponto do ensaio parece lembrar Freud disso e, na verdade, sopra um vento novo e diferente nas velas de seu argumento. Agora caminhamos na direção de uma hipótese de que só existem pulsões sexuais (ou que todas as pulsões são sexuais). Nada decorre dos achados psicanalíticos, afirma Freud, que apontem para outras pulsões que não sejam as libidinais e as libidinais são sexuais. Freud agora se inclina para o “monismo”, mas não do tipo junguiano (que é o monismo da substância-libido); ele se inclina para o que eu chamaria de monismo (singularidade) de antagonismo, contradição ou divisão.
Ele reconhece esse antagonismo e cisão no terreno das próprias pulsões sexuais e não de “sua” pulsão de morte, que, como vimos, é bastante monolítica. Por exemplo, o próprio objeto de amor pode ser dividido entre amor e ódio, ou, como Lacan formulou pungentemente: “Eu te amo, mas, porque inexplicavelmente amo em ti algo mais do que tu mesmo – eis que amo o objet petit a – eu te ofendo e magoo”.
Freud agora reafirma sua convicção de que tudo o que a ciência pode nos dizer aqui equivaleria ao fato de que existem apenas impulsos sexuais. Mais exatamente, que apenas os impulsos sexuais possivelmente nos impelem a outro lugar que não a um retorno a um estágio anterior (homeostático). Isso pode ser ainda mais enfatizado ao dizer que apenas os impulsos sexuais nos “conduzem” em qualquer sentido significativo da palavra (diferentemente do “magnetismo do inanimado”, que parece ser da modalidade da fadiga – e não do impulso propriamente dito — Trieb).
Reafirmando sua tese central sobre a “natureza” sexual da libido como tal, Freud, na última parte de seu ensaio, trabalha assim com a hipótese de que só existem pulsões sexuais. Quase imperceptivelmente a perspectiva mudou (novamente) dramaticamente. Do monismo da pulsão de morte (enquanto princípio do prazer) passamos ao dualismo de Eros e Thanatos (isto é, das pulsões sexuais e pulsões de morte), e daí ao monismo das pulsões sexuais.
Em que sentido podemos dizer que isso implica agora um “monismo” não da substância, mas de uma cisão ou de um obstáculo que impede a substância de ser “una” enquanto tal? Em primeiro lugar, as pulsões sexuais não são mais vistas simplesmente como pulsões de vida, porque repetem ou reproduzem a própria divisão entre vida e morte; com as pulsões sexuais, a morte é inerente à vida, condicionando sua perpetuação (e — em resumo — essa negatividade [esse “menos”] inerente à vida torna-se o próprio lugar da vida psíquica — na medida em que esta é coextensiva ao inconsciente).
A repetição da morte na vida sexuada é apontada por Freud tanto no nível celular quanto no nível do indivíduo envolvido na reprodução sexual.
Lacan explica isso da seguinte forma:
Sabemos que a divisão sexual, na medida em que reina sobre a maioria dos seres vivos, é o que garante a sobrevivência de uma espécie… Digamos que a espécie sobrevive na forma de seus indivíduos. No entanto, a sobrevivência do cavalo como espécie tem um significado – cada cavalo é transitório e morre. Então, veja bem, a ligação entre sexo e morte, sexo e morte do indivíduo, é fundamental.
Lacan muitas vezes retorna e reafirma essa implicação da morte no cerne da sexuação; às vezes nos próprios termos de “morte” e às vezes na linguagem mais formal de “redução” ou “perda” envolvida na reprodução sexual (por exemplo, quando ele se refere à junção de dois conjuntos de cromossomos). Com a reprodução sexuada, a morte torna-se inerente à vida; não é simplesmente o seu fim ou sua meta final (como no “retorno ao inanimado”), mas a sua negatividade inerente e pressuposição interna. Este é precisamente o ponto onde uma outra noção (lacaniana) da pulsão de morte começa a tomar forma, embora – como veremos – essa cisão em si ainda não corresponda à pulsão de morte propriamente dita.
Crucial para entender a mudança do conceito freudiano para o lacaniano da pulsão de morte é, portanto, o conceito (freudiano) de sexualidade (e sua relação com o inconsciente). Entre Freud insistindo que, considerando todas as coisas, existem apenas pulsões sexuais (ou que as pulsões são sexuais por definição), e Lacan dizendo que “toda pulsão é virtualmente uma pulsão de morte”, o “elo perdido” é simplesmente isto: a morte é o que espreita bem no meio dos impulsos sexuais. Não como seu objetivo, mas como uma determinação negativa ou como um “menos” neles implícita e que se repete junto com eles. Tentemos agora reconstruir a noção lacaniana da pulsão de morte com base no ensaio de Freud.
Podemos partir do que Freud concebe como repetição em ação nos instintos conservadores (instintos de autopreservação): os instintos de autopreservação repetem os caminhos de vida adquiridos/estabelecidos (desvios estabelecidos em seu caminho para a morte). Os instintos repetem os caminhos tortuosos para a morte (que constituem os fenômenos da vida como os conhecemos). Ora, ao invés de conceber a pulsão de morte propriamente dita como a tendência onipresente fundamental de retornar ao inanimado (uma espécie de magnetismo do inanimado), temos de concebê-la como originada em outra (espécie) de repetição que ocorre dentro dessa repetição “conservadora”; como repetição dentro da repetição: ou seja, repetição de alguma satisfação (parcial e, por assim dizer, extracurricular) produzida acidentalmente dentro dessa repetição conservadora.
Isso está muito de acordo com o modo como Freud, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, deduz a sexualidade e as pulsões sexuais: como uma satisfação/excitação excedente que ocorre no curso do funcionamento e da satisfação das diferentes funções orgânicas. (Como o famoso “prazer da boca” que ocorre durante a satisfação da necessidade de comer.) Esse excesso não é uma causa externa, mas causa interna de tensão e de pressão constante; e, paradoxalmente, a pulsão originada nesse excedente não visa diminuir ou aniquilar essa tensão/excitação, mas, ao contrário, repeti-la, sempre. Além disso, essa satisfação acidental “extracurricular” não condiz com nenhum tipo de apaziguamento, pois não é a satisfação de uma necessidade e, portanto, não é um “acalmar” a tensão despertada por essa necessidade.
A dinâmica aqui é bem diferente, pois ocorre uma satisfação que não é uma resposta a uma necessidade preexistente. Aqui, a resposta precede a pergunta. E em vez de a satisfação produzir um apaziguamento de uma excitação excedente, a satisfação (e suas repetições) na verdade produz, gera mais excitação. A repetição dessa satisfação excedente vai, nesse sentido, contra o princípio do prazer (como princípio de redução da tensão), mas não por causa de alguma obscura vontade de morrer, mas por causa de uma pulsão adicional que ocorre na própria vida como seu desdobramento inesperado.
No entanto – e isso é crucial – não devemos tomar essa explicação freudiana para sugerir uma espécie de gênese linear da pulsão (da morte), na qual esta última ocorreria simplesmente como um subproduto direto da satisfação de necessidades orgânicas. A própria satisfação excedente ainda não se qualifica como pulsão. Não é inconcebível que os animais experimentem alguma satisfação excedente ao satisfazer suas necessidades, mas para que ela funcione como objeto parcial (ou objeto da pulsão) essa satisfação deve, ao mesmo tempo, passar a funcionar como corporificação objetiva (objeto-representante) da negatividade ou lacuna envolvida no edifício significante do ser.
Esse, afinal, é o ponto central do conceito de pulsão de morte. É isso que Lacan quer dizer quando diz que “toda pulsão é virtualmente uma pulsão de morte”: a pulsão de morte não é uma entre as pulsões (parciais), mas se refere a uma cisão ou declinação ativa dentro de toda pulsão. A pulsão de morte aponta para a negatividade em torno da qual circulam diferentes pulsões parciais, e que elas — nesse sentido — têm em comum. Essa é a cisão inerente às pulsões como tais, que não é simplesmente a mesma que a cisão da pulsão das funções orgânicas.
De um lado, há as pulsões envolvidas em todos os tipos de satisfações parciais excedentes, seguindo a conhecida lista (oral, anal, escópica); mas há também a pulsão como negatividade pulsante puramente disruptiva que lhes dá seu ritmo e torção singulares. No Seminário XI, por exemplo, Lacan enfatiza a diferença entre o “objeto a” como marcando uma negatividade (perda ou lacuna) como tal, em torno da qual circula a pulsão, e todas as formas de “objetos a”, que “são apenas seus representantes, suas figuras”. O que as pulsões pretendem repetir não é simplesmente a (mais) satisfação, mas essa negatividade/interrupção que só pode ser repetida repetindo a mais-satisfação. É precisamente isso que distingue a pulsão do “mero autoerotismo da zona erógena”.
Em outras palavras, enquanto objeto da pulsão, o “objeto a” é sempre e necessariamente duplo: é uma mais-satisfação como apego ao vazio (à brecha na ordem do ser); ou seja, é o vazio e sua “crosta” — também por isso que os objetos parciais funcionam como “representantes” desse vazio. E é isso que nos permite sugerir que o objeto real da pulsão não é simplesmente a mais-satisfação (gozo ou satisfação como objeto), mas essa negatividade que “gruda” nela e é por ela repetida.
Para formular ainda de outra forma: devemos ter em mente que, com a pulsão, na verdade, estamos lidando não apenas com uma, mas com duas cisões diferentes (ou “desvios”). Há primeiro a cisão envolvida na mais-satisfação produzida no curso de satisfazer as necessidades e funções orgânicas. A repetição envolvida no funcionamento e na satisfação das funções orgânicas produz uma satisfação supérflua, inesperada, que então se torna o impulso de outra repetição, repetição dentro da repetição, repetindo essa satisfação excedente.
E essa pulsão pode se tornar mais forte que a necessidade orgânica, no sentido de que agora domina ambas. É o que parece estar em jogo, por exemplo, na gula: a mais-satisfação — a mais-valia em relação à necessidade orgânica — produzida no decurso do consumo alimentar (o prazer da boca, etc…) não só desregula a função orgânica, mas inverte a causalidade dessa configuração. Se o excedente é primeiro um subproduto da satisfação da necessidade orgânica de alimentos, a satisfação da necessidade orgânica de alimentos agora se torna um subproduto da repetição da satisfação do excedente. E isso agora funciona em detrimento da vida (e contra a diminuição da tensão): não porque queira destruir a vida, mas porque “ela” quer gozar. Isso explica, de fato, um lado da gênese do objeto da pulsão: há o objeto-alimento e, depois, há a satisfação como objeto.
Mas esta não é toda a história, nem a única divisão. Isso explica a gênese da mais-satisfação, mas não explica por que essa mais-satisfação pode ter um efeito tão “revolucionário” e pode resultar em uma reversão completa da ordem das coisas (ou pelo menos em uma relativa autonomia da pulsão com relação às funções orgânicas). Além disso, seria muito simplista entender a gula simplesmente como um esforço insaciável por satisfação excedente, pois devemos também perguntar que outra demanda (simbólica) esse desejo alimenta.
Então: por que a satisfação excedente pode ter tal efeito que equivale a uma reversão completa da ordem das coisas? Como sugerido, eis a resposta: porque a estrutura da pulsão implica algo mais (e mais) do que essa mais-satisfação: uma negatividade em torno da qual ela circula e que relaciona (a estrutura da) pulsão à repressão primária: a uma negatividade inerente — a negatividade transmitida com a ordem ontológica “positiva” do ser.
Devemos assim complementar a tese de Jacques-Alain Miller segundo a qual o objeto da pulsão é a “satisfação como objeto”; é preciso complementá-la especificando que a satisfação se torna objeto (passa a funcionar como objeto da pulsão) apenas porque dá corpo a essa negatividade, e não simplesmente como satisfação pela satisfação. Em outras palavras, se a pulsão quer que repetamos a satisfação excedente, não é porque ela só quer gozar.
A pulsão não quer que desfrutemos. O superego quer que desfrutemos. O superego (e sua cultura) reduz a pulsão à questão da satisfação (gozo), tornando-nos reféns de suas vicissitudes; bloqueia, também, ativamente o acesso à negatividade que a move. Em outras palavras – e isso é crucial – a satisfação (pela satisfação) não é o objetivo da pulsão, mas o seu meio. É isso que é profundamente perturbador na “pulsão de morte”: não que ela queira apenas gozar, mesmo que nos mate, mas que ela queira apenas repetir essa negatividade, a lacuna na ordem do ser, mesmo que isso signifique aproveitar. O gozo é o meio, enquanto o “objetivo” é a repetição da falta de ser no próprio ser…
Outro ponto importante ligado a isso diz respeito à relação entre a mais-satisfação (ou gozo) e sexualidade. A própria sexuação (reprodução sexual e a morte/negatividade nela implícita) ainda não equivale ao que poderíamos chamar de sexualidade propriamente dita; a sexualidade propriamente dita envolve um passo adicional no qual o “menos”, a negatividade envolvida na sexuação e na reprodução sexual, adquire uma existência positiva em objetos parciais como envolvidos na topologia da pulsão. Esses objetos parciais não são apenas “satisfações como objetos”, eles funcionam ao mesmo tempo como figuras ou representantes dessa negatividade. É somente com esse duplo movimento que passamos da sexuação à sexualidade propriamente dita (uma sexualidade de seres falantes).
Outra maneira de colocar isso seria dizer que, embora todas as pulsões sejam sexuais, não há pulsão sexual (como um todo; a sexualidade não é uma função totalizadora, não é o que totaliza as pulsões). Não há “pulsão sexual” como um todo, e a sexualidade é impulsionada por associações de “pulsões parciais” que têm apenas uma coisa em comum, a saber e precisamente esse “menos” ou vazio. É esta última que os une — os “une” no sentido de que constitui o vão em torno do qual circulam todas as pulsões parciais enquanto visam seus diferentes objetos parciais; e é essa lacuna comum que justifica o fato de essas diferentes e diversas satisfações parciais polimorfas serem chamadas de sexuais.
As pulsões parciais não são simplesmente uma multiplicidade fragmentada neutra (com cada pulsão circulando em torno de seu objeto parcial), mas são “tendenciosas” pela negatividade que têm em comum; essa negatividade lhes dá sua curva. Essa negatividade é “parte” de cada pulsão, e é a mesma em todas as pulsões. Daí o loop duplo da unidade. (O diagrama a seguir é reproduzido de Lacan 1987.)
Voltando a Freud e a algumas de suas reflexões em Além do Princípio do Prazer, poderíamos concluir da seguinte forma. O que pode eventualmente mudar o objetivo fundamental da vida de retornar ao inanimado é, portanto, por mais paradoxal que pareça, justamente a pulsão de morte. [N. T.: aqui é recomendável reler a citação de Zizek que está no começo do artigo.]
É a pulsão de morte que abre o espaço (a cena) das conquistas que se estendem além do comum e dos negócios habituais. Vimos como Freud descreveu os instintos de autopreservação como “instintos componentes cuja função é assegurar que o organismo seguirá seu próprio caminho para a morte, afastando quaisquer caminhos possíveis de retorno à existência inorgânica que não sejam aqueles que são imanentes no próprio organismo”
Podemos agora dizer que a pulsão de morte, em nosso sentido do termo, poderia ser descrita precisamente como o que estabelece (e impulsiona) as formas de retorno à existência inorgânica diferentes daquelas que são imanentes ao próprio organismo. O organismo morre, mas é mais do que uma frase ideológica ou religiosa dizer que há coisas (criações) que sobrevivem a ele.
E é justamente neste ponto que se deve situar o conceito de pulsão de morte – que se deve insistir, também, em abandonar a ideia da dualidade das pulsões: só existe a pulsão de morte. No entanto, não pode ser descrito em termos de tendências destrutivas que nos faz querer retornar ao inanimado, mais precisamente como constituindo caminhos alternativos à morte (daqueles imanentes no próprio organismo). Poderíamos dizer: a pulsão de morte é o que nos permite morrer de maneira diferente. E talvez no fundo seja isto o que importa, e o que brota do cansaço da vida: não a capacidade de viver para sempre, mas a capacidade de morrer diferente. Poderíamos até parafrasear a famosa linha beckettiana e formular o lema da pulsão de morte da seguinte forma: morra de novo, morra melhor!
Você precisa fazer login para comentar.