Autor: Eleutério F. S. Prado[1]
Discute-se em sequência um escrito que ampara uma tese contrária àquela sustentada no artigo Lacan, crítico de Marx.[2] Argumentou-se nele que Lacan não compreendera corretamente a categoria de valor de Marx e, em consequência disso, sustentara que a dinâmica da economia psíquica dos indivíduos era confluente, guardava semelhanças, com a dinâmica da reprodução do capital apresentada já no capítulo IV do Livro I de O capital. Esse mencionado escrito é da lavra do filósofo americano Adrian Johnston, tendo sido publicado aqui sob o título Marx com Lacan: para criticar o capitalismo.[3]
Para esse autor, ao contrário do que se sugeriu naquele escrito, Lacan pode ser apresentado como um leitor rigoroso de Marx que compreendera adequadamente as categorias de valor e mais-valor desse autor clássico. E que, por isso mesmo, fora bem capaz de fazer um correto entrelaçamento entre marxismo e psicanálise. Foi com base nessa visão que ele, no escrito mencionado, juntou mais uma vez Marx com Lacan para renovar a teoria crítica do capitalismo. Ora, antecipando o que apenas se poderá provar logo adiante, chega a essa conclusão porque confia – assim como Lacan – na interpretação dessas categorias de Marx feita por Louis Althusser e associados, principalmente em Ler O capital[4].
Em resumo, a divergência acima relatada em largos traços se assenta sobre a seguinte afirmação de Adrian Johnston, posta logo no início do seu escrito: “o surgimento explícito do inconsciente analítico no capitalismo moderno revela uma metapsicologia já implicitamente operante na espécie homo sapiens muito antes do surgimento do modo de produção capitalista”. Sim, mas que metapsicologia?
Ora, o que ele entende aí por metapsicologia consiste precisamente no núcleo das concepções de Jacques Lacan, as quais foram desenvolvidas no transcurso de toda uma vida intelectual dedicada a reinterpretar as realizações de Sigmund Freud com base numa teorização centrada na linguagem. Assim como a crítica da economia política pressupõe a crítica da linguagem das mercadorias, das formas sociais que presidem o evolver do sistema da relação de capital, a crítica das formações submersas da psique requer que se tenha por assentado que o inconsciente se articula por meio de uma linguagem.
E aqui é preciso anotar: tal como o retorno estruturalista de Althusser à Marx, Lacan havia feito antes dele um retorno, igualmente estruturalista, à Freud. Ora, esse retorno tem consequências para o modo de compreender o valor em Marx: este será compreendido de modo epistemológico – e não ontologicamente; será apreendido, ademais, sob o visor da linguística estrutural – e não por meio da dialética do conceito, tal como está apresentado no escrito original.
Em Análise do valor, capítulo de Ler O capital, Pierre Macherey diz que “o valor não é dado, nem destacado, nem posto em evidência: é construído como conceito”. Da contradição posta pela igualdade de dois valores de uso diferentes que receberam já a forma de mercadoria, Marx deduz que o valor de troca expressa implicitamente uma igualdade de valor. Mas como o valor só pode advir do trabalho, conclui: “Se a substância do valor é o trabalho em geral (…), é que o elemento simples do valor só tem sentido diacrítico, [ou seja, é valor] por meio das relações que mantém com todos os demais valores”.
Ora, vale questionar, o valor é trabalho em geral “reduzido” intelectualmente à trabalho abstrato, tal como julgam esses intérpretes de Marx? Não! O valor não é, para ele, um mero conceito científico ou representação abstrata que dá fundamento ao sistema de preços. É, isso sim, uma categoria existencial do próprio modo de produção capitalista. O valor, ademais, não se constitui de maneira diacrítica tal como ocorre com o valor na linguística estruturalista de Ferdinand Saussure. Como se sabe, o trabalho ganha forma de trabalho abstrato para ser em efetivo a substância do valor. Bem ao contrário do que pensam os althusserianos, a relação de valor, o valor de troca, está fundado no valor das mercadorias.
Sem qualquer delonga, eis o ponto fulcral causador da divergência: o psicanalista francês pensara o trabalho do inconsciente (noção que vem de Freud)[5] também como trabalho abstrato e, por isso, chegara a uma suposta homologia entre o modo de se desenvolver da economia psíquica (concebido por ele mesmo) e aquele da economia social (apresentado por Marx). Vira, assim, uma homologia entre as noções que construíra de valor do gozo e de mais-gozar, respectivamente, com as categorias de valor econômico e de mais-valor constantes na apresentação dialética das determinações do capital em O capital.
Para que não haja dúvida sobre esse ponto, leia-se o que disse no seminário De um Outro a outro (livro 16). Sabendo que “objeto a” é o nome dado ao alvo suposto da infinitude do desejo humano, Lacan não afirma aí que “é de um nível homológico calcado em Marx que partirei para introduzir (…) a função essencial do objeto a”? Não considera que “Marx… sim, era estruturalista”? Não estabelece no escrito uma homologia entre o mais-valor objetivo que Marx encontra na produção capitalista e um suposto mais-gozar subjetivo que ele, Lacan, encontra no sujeito social? – um sujeito que não deixa de considerar como assujeitado.
Veja-se, pois, o que diz, aliás, sempre de um modo arrevesado como é do seu estilo:
Assim como o trabalho não era novo na produção da mercadoria, a renúncia ao gozo, cuja relação com o trabalho já não tenho que definir aqui, também não é nova. Desde o começo, com efeito, e ao contrário do que diz ou parece dizer Hegel, é ela [a renúncia ao gozo] que constitui o senhor, o qual pretende fazer dela o princípio de seu poder. O que há de novo é existir um discurso que articula essa renúncia, e que faz evidenciar-se nela o que chamarei de função do mais-de-gozar. É essa a essência do discurso analítico.[6]
Neste ponto, vale perguntar: o desejo é insaciável como o valor que se valoriza ou, em si mesmo, se configura apenas como resultante da pulsão que põe o ser humano numa busca constante por autorrealização? No primeiro caso, o sujeito assujeitado foca e procura um suposto “objeto a” que funciona para ele de modo semelhante ao lucro para o capitalista; no segundo, ele se concentra em objetos e objetivos concretos que se sucedem trazendo satisfação – ainda que sempre insuficiente – ou mesmo frustração e, assim, insatisfação. De qualquer modo, como se sabe, o humano nunca deixa a condição de um ser insatisfeito.
Como foi mostrado num texto antes escrito[7], em que se faz uma apropriação crítica de teses de Samo Tomšič, essa homologia não pode ser sustentada com rigor. A sua existência foi reivindicada por Lacan, mas ela deve ser considerada falsa. Eis que se procurou mostrar aí que o trabalho abstrato na esfera social é uma medida posta pela própria sociabilidade do capital, mas o trabalho abstrato no âmbito do inconsciente só pode ser uma derivação meramente intelectual do trabalho em geral. Eis aqui, pois, um erro cometido por Althusser, Lacan e seus seguidores na interpretação de Marx. Assim, em consequência dessa crítica, fica posta em questão a veracidade das noções de mais-gozar e objeto “a” do próprio Lacan, assim como o viés psicanalítico que põe o ser social como insaciável. Parece ser isso, no entanto, o que se encontra na metapsicologia desse psicanalista famoso.
Em consequência dessa crítica, na alçada que aqui se assume, os desejos sempre se cristalizam em objetos concretos, os quais são buscados por si mesmos e/ou como substitutos de objetos perdidos. Nessa perspectiva, o ser social é visto como um ser insatisfeito – e não como um ser intrinsecamente insaciável. Se assim ele se afigura em certas circunstâncias é porque ele está subsumido à lógica do capital, ao mau infinito da acumulação de capital. Como se sabe, Marx apresentou o trabalhador e o capitalista como suportes da relação de capital – personificações – o primeiro como usuário constrangido da própria força de trabalho e o segundo como proprietário do capital.
Posto tudo isso, é preciso voltar à citação de Tomšič que animou Adrian Johnston a fazer comentários e a formular certas reservas:
Freud não diz o que os freudo-marxistas dirão mais tarde, ou seja, que o inconsciente explica o capitalismo; ele afirma precisamente o contrário: é o capitalismo que elucida o inconsciente. O inconsciente descoberto em A Interpretação dos Sonhos nada mais é do que o inconsciente capitalista, o entrelaçamento da satisfação inconsciente com a estrutura e a lógica do modo de produção capitalista.[8]
A primeira reserva já foi discutida: Johnston crê que o sujeito assujeitado no capitalismo é basicamente – e já sempre – o homo insatiabilis. Ora, ficou bem mostrado até esse ponto que é errado pensar o “homem em geral” como uma criatura social inerentemente sem limites. A eventual insaciabilidade pulsional dos sujeitos assujeitados no modo de produção capitalista, entendida como uma distorção frente à humanidade possível daquele que foi “expulso do paraíso”, está colocada na conta histórica do próprio capitalismo, o qual, aliás, não economiza barbárie no processo da acumulação de capital.
A segunda objeção afirma que não só a crítica da economia política é bem capaz de iluminar a psicanálise, mas também que a própria psicanálise pode ajudar a compreender melhor o capitalismo – que é também objetivo da primeira crítica. Ora, essa reinvindicação parece justa, mas é de esperar também que esse saber não apresente o sujeito assujeitado no atual modo de produção como transistórico. É preciso, pois, que seja capaz de contribuir para o advento de um sujeito emancipado apontando também as condições em que ele pode advir historicamente. O que então se põe como questão vem a ser saber se os ensinamentos provindos de Freud e de Lacan são capazes de cumprir esse desiderato.
Como se sabe, o suposto sujeito moderno, tal como apresentado por Descartes por meio já do “penso, logo existo”, passa a aparecer como ilusório após Freud ter revelado a existência do inconsciente e ter mostrado que ele é fonte de heteronomia. Assim, a ideia do “eu” como agente e sede do pensamento deixou de parecer plausível depois que esse “sujeito” – agora entre aspas – deixou de aparecer como dono dos próprios pensamentos. E que ademais, deve ser encarado como psiquicamente “castrado” – seja porque está caracterizado pela carência seja porque não é autônomo e senhor de si mesmo. Finalmente, Freud mostrou que esse “sujeito” não é sobretudo razão, vontade de conhecimento, mas busca de satisfação que sempre se renova. Animado pelo desejo de ser, de ter e de fazer, esse “sujeito” é mais bem apreendido como “falta-a-ser”.
Contra uma tese de Lacan, é preciso dizer então que o inconsciente não é morada de um sujeito, mas a causa principal do assujeitamento do “sujeito” às determinações da ordem simbólica que constitui a sociedade. Assim, ao invés de um indivíduo centrado em si, tem-se um ser humano caracterizado por um descentramento constitutivo. Com Lacan, pode-se afirmar então que o indivíduo moderno não é senhor de si mesmo porque é produto e efeito da linguagem e esta é portadora de todo um discurso que é formado fora dele, na sociedade como esfera de sujeições e discriminações em que prospera principalmente a ideologia da classe dominante.
A psicanálise, seja com Freud seja com Lacan e outros, não se preocupa – ou se preocupa apenas de modo ocasional – com as transformações possíveis da sociedade. Volta-se principalmente para o sofrimento do indivíduo encarando-o como caso particular de patologias psíquico sociais. Toma assim, em geral, a sociedade como um dado, como uma realidade que aí está, senão também que é preciso respeitar. Por isso, não investe na dialética, não pensa o “sujeito” como produto de uma sociedade movida por contradições de classe, gênero, etnicidade (cor, língua, cultura) etc. e em processo de transformação. Ao fazê-lo, uma questão se alevanta: o sujeito assujeitado do capitalismo pode ser superado historicamente?
O filósofo brasileiro, Ruy Fausto,[9] mostrou que Marx tinha um modo de pensar a questão do sujeito quando declarou que o capitalismo deve ser a última forma de produção da pré-história da sociedade. E que esse modo de ajuizar a condição humana na temporalidade social vinha do próprio Hegel. Assim, nessa perspectiva dialética, aquele que ainda é designado pelo termo “homem” não pode ser considerado sujeito enquanto o capitalismo persiste, mas apenas um ser assujeitado, submetido à lógica de reprodução de uma relação que se configura como um sujeito automático.
Entretanto, mesmo enquanto vigora o capitalismo, o sujeito existe como possibilidade real, como pressuposto que pode eventualmente ser posto historicamente. Eis que ele só pode se tornar sujeito com o fim da sociabilidade repressora, dividida sobretudo em classes sociais, baseada na submissão e na exploração. No capitalismo, o “homem” não pode ser considerado sujeito porque ainda existe grosso modo apenas como trabalhador ou capitalista, ou seja, como suporte de relações sociais autonomizadas. Só poderá vir a sê-lo com a superação da pré-história, com o advento do socialismo, mantendo no horizonte a ideia reguladora do comunismo. Eis que com o advento desse modo de produção baseado no comum, por enquanto apenas uma possibilidade, terá início a história propriamente humana.
Se o sujeito moderno se afigura agora como ideologia, o sujeito que pode vir a ser posto é ainda utopia – uma utopia que só poderá prosperar com a chegada de uma sociabilidade que ainda não existe, mas pode vir a existir se determinadas condições históricas prevalecerem. E é aqui que a colaboração da psicanálise com a crítica de Marx pode ser relevante. Elas podem, em conjunto, definir melhor, ainda que aproximadamente, o que é possível esperar.
Saiba-se de antemão, nesse sentido, que não há sociedade futura possível sem contradições estruturais e circunstanciais. E sem indivíduos internamente contraditórios, movidos por desejos que nascem no inconsciente, por vontades que se formam no consciente, sob alguma coerência posta pela razão. Não há, em consequência, qualquer solução final e duradoura para os pequenos e grandes desencontros – sejam eles internos ou externos aos indivíduos – que emergirão inexoravelmente no curso do evolver da sociedade. Eis aqui, pois, uma razão pela qual a boa sociedade requer necessariamente a democracia.
É evidente que esse sujeito novo possível em princípio – um sujeito que se realiza comunitária e não individualmente – não vai deixar de estar condicionado por seu inconsciente e pelas pulsões que nele se engendram e que eventualmente emergem no consciente. Mas esta não é apenas uma condição constitutiva e inexorável do ser humano em geral. Eis que o inconsciente individual tem um conteúdo historicamente específico e este está fundado nas características estruturais e superestruturais da sociabilidade em que está imerso. Uma sociedade em que foram superadas já as contradições do capitalismo – mas não as contradições em geral – deve ser capaz de propiciar um existir coletivo em que os seres humanos – mulheres, homens e as suas variantes –, sempre insatisfeitos, possam atuar como sujeitos livremente organizados para atingir objetivos que eles próprios dão a si mesmos.
[1] Professor aposentado da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blog na internet: https://eleuterioprado.blog
[2] Prado, Eleutério F. S. – Lacan – crítico de Marx. In: Blog Economia e Complexidade, 23/01/2022. https://eleuterioprado.blog/2022/01/23/lacan-critico-de-marx/
[3] Johnston, Adrian – “Marx com Lacan” para compreender o capitalismo. In: Blog Economia e Complexidade, xxxxxxxxxxxxxx
[4] Althusser, Louis; Rancière, Jacques; Macherey, Pierre – Ler O capital. Rio de Janeiro, 1975,
[5] Supõe-se aqui – sem contestar – que faz sentido aproximar o trabalho do inconsciente do trabalho social.
[6] Lacan, Jacques – O seminário De um Outro ao outro (livro 16). Rio de Janeiro: Zahar, 2006, p. 17.
[7] Prado, Eleutério F. S. – Marx e Freud: a tese de Samo Tomšič. In: Blog Economia e Complexidade, xxxxxxxxxxxxxx
[8] Tomšič, Samo – The capitalist unconscious: Marx and Lacan. Londres: Verso, 2015.
[9] Fausto, Ruy – Dialética marxista, humanismo, anti-humanismo. In: Marx: Lógica e Política. Tomo I. São Paulo: Brasiliense, 1983.