Atualizado em 21/01/2021
Slavoj Zizek numa seção do primeiro capítulo de O mais sublime dos histéricos (Zahar, 1991), apresenta a leitura de Hegel dos famosos paradoxos de Zenão de Eléia. São quatro, mas, para a finalidade desta nota, só um deles é necessário: aliás, o mais famoso deles, que é conhecido como a corrida na qual o atleta Aquiles tenta alcançar a molenga tartaruga, que partira a sua frente porque lhe fora dada uma boa vantagem.
Eis como essa prova pode ser descrita brevemente:
Como se sabe, Zenão, filósofo da Grécia antiga, apresentou uma aporia para mostrar que o movimento não existe, que ele é ilusão. Numa corrida de 2 mil metros entre Aquiles e a tartaruga é dada uma vantagem de mil metros para a tartaruga. Dada a partida, assim que Aquiles tenha andado mil metros, a tartaruga, suponha-se, andou quinhentos metros; ela está, portanto, à frente de Aquiles. Quando Aquiles andou mais quinhentos metros, a tartaruga andou mais duzentos e cinquenta metros, continuando à sua frente. E assim por diante. A reiteração desse argumento, mostra, na visão de Zenão, que Aquiles não alcança nunca a tartaruga.
O filósofo grego apresenta esse raciocínio visando mostrar que o movimento é apenas aparência – e não a verdadeira realidade. Para discutir a leitura de Hegel dessa aporia, Zizek apresenta primeiro, sumariamente, como a ótica kantiana compreende esse modo de pensar. Emprega, então, as categorias kantianas do “em si” e do “para nós” com essa finalidade. Para Kant, como se sabe, a coisa em si é incognoscível – mas isto, entretanto, não é verdade para Zenão. Eis que esse pensador considerava possível conhecer a coisa em si mesma.
Eis o texto em pdf: Verdade como perda do objeto enquanto “em si” fixo e imutável
Para ambos esses filósofos, porém, o movimento aparente existe “para nós”, ainda que não do mesmo modo. Com base nesse pressuposto comum, para o filósofo moderno, Zenão quer conhecer o que não pode ser conhecido. Mas, então, como pode ser apresentada uma crítica do primeiro com base na teoria do conhecimento do segundo? E este é apenas um primeiro passo. Pois, não apenas Zenão, mas também Kant, devem ser criticados pelo filosofar de Hegel.
Para Kant, a consciência é o sujeito ativo do conhecimento; entretanto, ela é capaz de apreender, por meio da sensibilidade, apenas os fenômenos da realidade, ou seja, aquilo que aparece. Já para Zenão, o sujeito cognoscitivo é capaz de apreender o objeto enquanto tal. É por isso mesmo que o filósofo grego apreende esse objeto “em si” como fixo, imóvel e estável, tomando-o como algo “para nós”. Ora, para o filósofo moderno, esse “objeto imóvel” é apenas produto de uma ingenuidade da reflexão. Para o filósofo antigo, o objeto do conhecimento, que está aí disponível para a consciência, pode ser apreendido integralmente. Ao querer apreendê-lo, ao desejar se adequar a ele, julga conhecer o seu fundamento para além de sua aparência cognoscível.
Muito bem, mas diante dessa crítica como se coloca o pensamento de Hegel. Para apresentá-lo, é preciso examinar como Zenão e Kant apreendem o movimento de deslocamento. O primeiro o vê como uma sucessão de pontos no espaço: aqui, aqui, aqui, aqui e assim por diante. Em cada “aqui”, note-se, tem-se o mesmo objeto. Já Kant, conhecedor da física newtoniana, pensa o movimento também como sucessão de pontos, mas determinados simultaneamente no espaço e no tempo: aqui/agora, aqui/agora, aqui/agora e assim por diante.
Assim, da perspectiva kantiana, é possível explicar o erro formal de Zenão ao raciocinar sobre a insólita corrida entre Aquiles e a tartaruga: este se engana porque pensa o movimento só no espaço.[1] Ao considerar essas duas dimensões, fica fácil descobrir que Aquiles encontra a tartaruga num certo momento da corrida.
De qualquer modo, tal como Zenão, Kant mantém a oposição entre um algo que se move externamente e a consciência que, supostamente, o apreende como tal, situando-se fora dele. Eis que a consciência assim apresentada é pura subjetividade. Ora, há de fato uma mente que pensa e um algo que se move. Entretanto, a subjetividade e a objetividade se situam já sempre num mesmo mundo simbólico, numa realidade que provém da simbolização do mundo real. Este, aliás, não está mais presente enquanto tal já que deixou de ser simplesmente um algo aí fora para se tornar um algo que foi “envolto” por significantes e que, nessa condição, mora agora na própria consciência. O natural, dizendo de outro modo, foi humanizado.
Da perspectiva do autor da Fenomenologia do Espírito, a crítica kantiana não vai muito longe, pois ela retém ainda a “coisa em si” ao afirmar que ela é incognoscível. Para ele, segundo Zizek, a própria “coisa em si” precisa ser anulada, dissolvida enquanto tal:
(…) é preciso fazer uma primeira correção nessa visão padrão kantiana ora apontada: a diferença entre o que é “para ela”, ou seja, para a consciência, e o que existe “em si”, consiste numa distinção que ocorre no interior da própria consciência. A subversão hegeliana consiste, pois, em realocar essa distinção, mostrando que ela não se encontra onde ela é posta pela consciência “ingênua” e, também, pela consciência científica moderna.
Posto isso, é preciso doravante considerar que o mundo como realidade simbolizada pertence já à consciência. Realidade e consciência não se encontram mais um externo ao outro. Assim, aquilo que antes aparecia apenas como uma diferença entre o “ser imóvel” no pensamento lógico-formal e um ser móvel no mundo “aí fora”, aparecerá agora como contradição em que cai o próprio pensamento. Veja-se, então, como Zizek examina o pensamento de Zenão.
“Zenão” – comenta ele – “reivindica que o seu argumento consiste numa prova por redução da existência do ser imutável, o qual permanece “em si” além da aparência enganosa do movimento”. Para ele, há uma distinção entre o movimento aparente que se auto contradiz e o ser-único, idêntico a si mesmo, existente em si. A verdade, para ele, consiste no conteúdo inerte, no “ser em si para nós”.
Ora, ele pensa assim porque quer pensar de um modo isento de qualquer contradição. Mas o que o seu raciocínio mostra é que ele, ao expulsá-la, cai em contradição. Ora, com base no filosofar hegeliano, o que ele realmente afirma vem a ser a redução do deslocamento no espaço a um movimento que se suprime a si mesmo, que se nega ao acontecer. Pois, aquilo que se move também fica, também permanece.
Assim, o “ser imóvel” do além da aparência contradita explicitamente o movimento, mas, ao fazê-lo, na verdade, apresenta implicitamente o movimento como contraditório, como um estar e um passar simultâneos. Ou seja, para que haja o movimento de deslocamento no espaço, o próprio móvel deve permanecer existindo e se diferenciando, ficando e saindo de cada ponto em particular de sua trajetória. O argumento de Zenão, no entanto, permanece exterior à “coisa em si”; ele fala do ser uno, supondo que ele persiste existindo por si mesmo, indiferente ao observador. E esse permanecer idêntico é metafísico; pois, ao contrário, nada fica, tudo se transforma no mundo real pressuposto, mesmo aquele que ainda não foi acolhido e humanizado pelo pensamento humano.
Eis que, no registro do “para nós”, o ser imutável consiste apenas numa objetivação, numa fixação a partir da qual o movimento passa a ser visto como mera aparência enganadora. A consciência ingênua, pondo-se do exterior do objeto que se desloca no espaço, encontra, na verdade – sem que o saiba – a contradição própria do movimento, ainda que apresente essa contradição por meio de uma disjunção e, assim, de uma aporia.
“A passagem do que é somente “para a consciência”, isto é, um “em si” tomado como um “para nós”, não é, portanto, uma passagem da aparência superficial, enganosa, para o subjacente que existe “em si mesmo”. Ao contrário, trata-se de reconhecer que a consciência que pôs a verdade como fora de si mesma, entrou já no caminho da verdade, é já uma aproximação à própria verdade”.
De certo modo, “tudo já está na consciência”: o “em si” que a consciência ingênua objetiva como algo fora dela e que supostamente está aí oculto, na verdade não está escondido, não se afigura como algo transcendente; ao contrário, encontra-se já nela mesma, eis que ele já foi apropriado por meio da práxis social – e simbólica – do ser humano. Ela comete um erro ao pensar que “si mesma” e o seu objeto são exteriores entre si; eis que o objeto como objeto simbolizado já está contido na consciência. A visada primeira da consciência passa a figurar, então, como momento formal do processo dialético por meio da qual a consciência se apropria do objeto – não, entretanto, como objeto do entendimento.
Contrariamente à representação clássica de uma “forma exterior” que supostamente esconde um conteúdo verdadeiro, a abordagem dialética concebe tal conteúdo apartado como uma “ilusão”; a objetividade cuja presença inerte está fora da consciência, para além de sua própria forma aparente, é um “fetiche”. A verdade do ser para os filósofos eleatas vem por meio de uma abordagem formal que supostamente demonstra a inconsistência do movimento.
Eis porque a dialética hegeliana afirma a nulidade fundamental desse “conteúdo” – um X, um miolo “em si”, que supostamente é alcançado por meio de um procedimento formal. Eis que é preciso reconhecer nesse X o reverso do próprio processo formal. Se Hegel critica Kant por seu formalismo, é porque ele não foi “formalista” o suficiente, isto é, porque ele reteve o postulado de um “em si” que supostamente escapa ao domínio do transcendental, sem tomar consciência de que se trata de uma “coisa já na mente” do sujeito cognoscitivo.
O caminho dialético para a verdade do objeto implica, assim, a experiência de sua perda enquanto tal. O objeto, em sua forma rígida, se dissolve numa rede de “mediações”, de processos formais. A “verdade” dialética de que o objeto consiste na rede de suas mediações não é nova – entretanto, como regra geral, as pessoas esquecem o outro lado da imediatidade, ou seja, a sua negação determinada, a passagem do objeto pela rede de suas próprias mediações.
Para melhor compreender essa afirmação, é preciso esclarecer como o pensador dialético apresenta o movimento de deslocamento. Ora, o modo de pensar de Kant também precisa ser criticado já que ele toma a exterioridade como aparência que não pode ser apreendida senão com base em categoriais transcendentais. Kant também se move pela lógica da identidade e não quer cair em contradições. Ora, sem assumir certas contradições como características inerentes dos processos não é possível apreender verdadeiramente o movimento.
Segundo Hegel, o movimento não consiste meramente numa sucessão formada por “aquis” e “agoras”. Eis que, para ele, o móvel está e não está em cada ponto de sua trajetória. Ele “está” em cada momento no registro da posição, mas “não está”, também em cada momento, no registro da pressuposição. É abraçando essa contradição – que não é a contradição rejeitada corretamente pelo entendimento e pela lógica formal – que o filósofo dialético apreende o movimento aqui considerado; em sua ótica, é preciso que se diga que o móvel “está agora” e “não está agora” em cada ponto possível de sua trajetória.
Kant, como se sabe, abraça o pensamento científico da época moderna. Assim, ele considera que a consciência apenas pode apreender os fenômenos em suas relações externas. Por exemplo, o movimento de deslocamento da realidade é assim apreendido e identificado como um movimento de deslocamento ideal que passa a existir no próprio pensamento. Em consequência, as explicações dos fenômenos se deslocam dos próprios objetos para a consciência. Assim, dizendo de outro modo, passa a ser produzida pela imaginação explanatória, eventualmente mesmo por verdadeiras fantasias. O pensamento dialético, ao contrário, se concentra no próprio objeto, considerando-o já como um objeto simbólico, significante, cujo significado mora na intersubjetividade social. E essa última não é, para ele, nada mais do que um precipitado da práxis social e histórica. Para Marx, essa práxis não é um movimento da ideia, do espírito, mas um movimento produzido pela atividade concreta dos homens na história.
Ora, essa consideração permite ser mais explícito sobre o modo pelo qual Hegel apreende o movimento de deslocamento. Eis que o objeto, para a razão dialética, “está-agora/não-está-agora”, “está-agora/não-está-agora”, “está-agora/não-está-agora” e assim sucessivamente. A mediação consiste, então, precisamente, na passagem da positivação na negação, assim como da negação na positivação, de modo reiterado e contínuo.
Ao apreender a “verdade” do ser tal como apresentado pelos eleatas (…) como o processo de negação inerente ao movimento, perde-se o “ser” como algo fixo, como uma entidade em si mesma. No lugar do ser – um ponto de referência fixo, idêntico a si mesmo – tudo o que resta é o movimento vertiginoso de um redemoinho sem fim, o movimento como dissolução do fixo, algo que se afigura à primeira vista como algo exterior. Ora, essa “verdade” de Parmênides, implícita no seu dizer, já havia sido apresentada por Heráclito de Éfeso.
E, nesse momento, é preciso visitar, como indica Zizek, o conceito de verdade acolhido por Hegel: a verdade não consiste na correspondência do pensamento com o próprio objeto, mas, diferentemente, na correspondência possível do objeto com o seu conceito. E conceito aqui deve ser entendido como “o próprio si mesmo do objeto, representado em seu devir – o qual não é um sujeito quieto que suporta imóvel os seus acidentes – mas sim algo que se move e recobra em si mesmo as suas determinações.” Eis que é assim que o conceito está apresentado na introdução da Fenomenologia do Espírito. Segundo Zizek, para Hegel,
(…) é preciso considerar três elementos e não apenas dois como faz o entendimento: o conhecimento, formado supostamente na relação dual entre o pensamento e o seu objeto, é substituído por uma trindade formada pelo pensamento subjetivo, pelo objeto e pelo conceito. O conceito, portanto, não se identifica, com o pensamento subjetivo. O conceito – pode-se dizer – é a forma do pensamento que apresenta o objeto progressiva, mas também regressivamente, procurando dar conta de suas múltiplas determinações. Tenha-se em mente que “forma” aqui deve ser compreendida no sentido estrito que ganha na dialética, ou seja, como “aspecto formal”, aparente, da verdade do próprio “conteúdo”.
Pois, tal conteúdo, é preciso acrescentar por maior clareza, apresenta-se já na própria forma – ele não pode estar, portanto, escondido atrás dessa forma apreendida como mera aparência, tal como pensa o entendimento. O que, portanto, permanece impensado no pensamento não é um excedente transcendental – a coisa em si –, mas a própria forma, como forma de um conteúdo.
Tem-se, pois, uma trindade de significação: a forma, o conteúdo e a unidade deles, ou seja, o conteúdo que se apresenta justamente por meio da forma. É por isso que a razão dialética trabalha sempre sobre o material do entendimento, pensamento que se ocupa do mundo, distinguindo sempre e, mais do que isso, sempre opondo a forma e o conteúdo, a essência e a aparência.
Para criticar o entendimento, a dialética apresenta o conceito e este se delineia como procura sistemática para abarcar o objeto, num movimento que vai do abstrato ao concreto pensado, tal como dirá Karl Marx.
O encontro, contudo, do objeto com o seu conceito é sempre um encontro faltoso. O objeto nunca vai corresponder ao seu conceito, porque sua existência, a sua consistência própria, depende de uma não-correspondência; o concreto é uma infinitude que o finito conceitual não pode abranger jamais de modo completo e definitivo. O objeto em si mesmo, como algo fixo, inerte, isto é, como uma presença não dialética, é em certo sentido uma não verdade, o qual, contudo, clama pela verdade do todo à medida que é visto a partir do conceito. Por isso, o caminho da verdade de um objeto implica numa perda, na dissolução de sua fixidez, de sua consistência ontológica.
Neste ponto, entretanto, é preciso mencionar que a dialética hegeliana é uma dialética da autoconsciência, do espírito que a si mesmo se encontra num movimento não só temporal, mas histórico. E que, ela foi superada pela dialética marxiana que é uma dialética da práxis, da atividade concreta dos seres humanos na vida cotidiana e na apropriação da natureza, o que envolve não apenas um empenho da mente, mas também do próprio corpo.
[1] Ver a nota escrita por mim em outro post: O “querer dizer” e o implícito “dizer”.
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