Falo/feitiço e o fetichismo da mercadoria como ilusões reais

Os escritos no campo da psicanálise lacaniana tendem a escapar da compreensão de muitos. Este economista que aqui escreve não é exceção. Entretanto, crê – e isto não é novo – que The Sublime Object of Ideology (The Essential Zizek)certos conhecimentos de psicanálise precisam ser incorporados na crítica da economia política. Ora, um texto que faz uma conexão entre dois fetiches sexuais com o fetiche da mercadoria é aqui reapresentado – talvez – numa forma mais didática.

Num escrito dessa matriz encontra-se a seguinte frase: “o falo deve ser apreendido como significante da castração”. O que ela significa? Qual a sua significância? Que relação tem com a conexão acima mencionada?

Ora, é assim que Slavoj Zizek começa uma seção de seu livro Eles não sabem o que fazem – o sublime objeto da ideologia (Zahar, 1992) intitulada Falo e feitiço. Ora, esse autor, tal como o seu mestre, costuma esconder, parcialmente, a trama do jogo de linguagem que entretém. Nem por isso, entretanto, o que ele escreve é irrelevante – ao contrário, frequentemente lança luzes sobre temas difíceis. Por isso é preciso investigar o que ele pode estar querendo dizer com essa expressão que parece bem arrevesada.

Antes de começar examiná-la, anote-se que os termos “falo” e “feitiço” são significantes similares às “ilusões reais” da crítica da economia política, a saber, a mercadoria e o dinheiro como fetiches. A questão que se põe a respeito deles é aqui, como lá, saber que significação têm. Como deslindar esse nó?

Para tentar compreender o que diz Zizek por meio daquela expressão é preciso começar com a noção de castração. J. D. Nasio, em Lições sobre os 7 conceitos cruciais da psicanálise (Zahar, 1997) fornece uma interpretação suscinta dessa noção: “designa ela uma experiência psíquica completa, inconscientemente vivida pela criança por volta dos cinco anos de idade, e decisiva para a assunção de sua futura identidade sexual”. Nesse momento, portanto, a criança descobre a diferença entre os sexos, começando a ter de buscar a sua própria definição de gênero. A observação psicanalítica considera que essa descoberta vem junto como uma experiência de perda, o que vem justificar o emprego do termo “castração” para designá-la. Mas de que perda se trata?

Eis como Nasio prossegue a sua explicitação da noção de “castração”: “O aspecto essencial dessa experiência consiste no fato de que, pela primeira vez, a criança reconhece, ao preço da angustia, a diferença anatômica entre os sexos”. Anatômica e para além dela, poder-se-ia acrescentar. Ora, ainda não ficou claro porque se trata, sim, de uma castração. “Até ali” – diz ele – “ela vivia na ilusão da onipotência; dali por diante (…) terá de aceitar que o universo seja composto de homens e mulheres”. Ao fazê-lo, explica ele, descobre que o seu corpo e os seus desejos sexuais e para além deles enfrentam limitações. Daí em diante, terá de se conformar que sempre desejará, mas não poderá realizar todos os seus desejos – eis que alguns de seus desejos mais importantes terão de ser reprimidos, pois não são controláveis enquanto tais.

Posto isso, é preciso voltar ao texto de Zizek, para apresentar agora a sua sentença de modo completo: “o falo deve ser apreendido como significante da castração: a virada característica do momento “fálico” se dá quando o exercício da potência começa a funcionar como confirmação de uma impotência fundamental, quando o dado positivo de um elemento presentifica a ausência, o vazio”. Posta essa sentença enigmática em forma completa, o desafio agora vem a ser compreendê-la adequadamente.  Como explicá-la? – eis a questão.

Note-se que ele está falando em primeiro lugar do sexo masculino – e não do sexo feminino. Eis que é um menino que descobre o próprio falo como uma diferença entre o seu corpo e o corpo feminino. É este o momento fálico a que Zizek se refere. Desse momento em diante, o falo passa a ser o significante da potência masculina, algo se projeta do corpo para fora. Mas como essa potência desejante está contida e não pode se expressar de modo completo na sociedade, o falo é também o significante de uma impotência – ou seja, trata-se de uma potência que está constantemente contida e reprimida. Ora, apesar de haver dado um passo, ainda não ficou bem explicado porque o falo é uma presença que presentifica uma ausência.

Para prosseguir é preciso considerar a relação social “homem <> mulher”, em que o matema <> significa precisamente “relação social direta”. Nesse momento, é preciso perguntar o que torna possível essa relação? É o fato de que em ambos os seus polos figuram significantes que denotam seres humanos, seres da mesma espécie e que se caracterizam por viver em sociedade. Esses significantes “homem” e “mulher” aparecem aí como oposto que indicam os dois gêneros  em que se divide as pessoas da espécie humana na vida social. No momento prévio à castração, o menino comparece nessa relação social geral como ser humano indiferenciado quanto ao sexo, isto é, vazio de definição sexual. Quando a castração ocorre, ele passa daí em diante a ter de assumir a condição de homem, cuja definição, aliás, é também social.

Na relação “homem <> mulher”, portanto, esses dois significantes vêm então para preencher posições sociais que antes estavam “vazias”.

O falo, pois, consiste no significante cujo significado é “projeção/castração”. Como tal, ele apresenta uma “potência impotente” – ainda que não toda, é preciso acrescentar. De qualquer modo, ele é identificado unilateralmente por Zizek como o significante da castração. O que define o sexo masculino anatomicamente é o corpo masculino, algo que os homens utilizam para diversas finalidades, inclusive para fazer sexo. O falo, enquanto significante, é uma forma social representativa da masculinidade, que soe estar sempre ameaçada seja na família seja fora dela. A identificação dessa forma com o corpo masculino e mesmo com o pênis no meio social, ou seja, da forma com o suporte da forma, provê ao corpo masculino de um certo excesso de significação, uma “vontade de potência”, que o próprio homem, como se sabe, não pode controlar e que é, de fato, incontrolável. Ora, essa identificação gera, assim, uma ilusão real.

Mas Zizek, nesse texto, justapõe ou contrapõe falo e feitiço. “O feitiço” – diz ele – “é o sucedâneo do falo na mulher: trata-se do desmentido da castração”. O feitiço de que trata agora, pois, associa-se também a um significante, como tal, da ausência de castração. Eis que o temor de perda, da impotência associada à castração, não afeta a mulher. Mas ela é afetada de outro modo. A feminilidade consiste de um desejo transbordante de atrair para si o outro gênero, ou seja, ser objeto da projeção masculina. E esse desejo, como bem se sabe, também é constantemente ameaçado e contido no contexto social. Assim, o significante “feitiço” passa a significar uma outra duplicidade, que se pode indicar como “atração/contenção”. Como a forma representativa da feminilidade é identificada com o próprio corpo da mulher na vida social, este último passa a figurar como algo que atrai, como algo que tem um mistério, como um feitiço.  Ora, essa identificação, como no caso anterior, produz também uma ilusão real, algo social que parece natural.

No texto de Zizek, a apresentação psicanalítica aqui reconstruída até esse ponto figura apenas como uma introdução para um voo teórico mais audacioso. Porque o falo e o feitiço no campo da sexualidade introduzem a questão mais geral da “potência impotente”, anotando-se que essa impotência vai sempre até certo ponto. Segundo ele, há uma analogia dessas duas ilusões reais com a “coisa em si” kantiana. De qualquer modo, ele a apresenta apenas, de maneira redutiva, por meio do “falo”:

“Eis a “significação do falo”: o ponto em que se entrecruzam o “fora” e o “dentro”, o ponto em que a exterioridade pura do corpo, indisponível para a vontade subjetiva, passa imediatamente para a interioridade do “puro pensamento” – quase poderíamos lembrar a crítica hegeliana da “coisa em si” kantiana, onde essa “coisa em si” transcendental, inacessível ao pensamento humano, revela ser apenas a interioridade do puro pensamento, na abstração feita de qualquer conteúdo objetivo.

Dito de outro modo, Zizek querer dizer – em sua ponte da esfera da sexualidade para a esfera da consciência – que a significação contraditória “potência impotente” também pode ser pensada no âmbito da consciência. A “coisa em si” figura na consciência como uma potência para pensar qualquer conteúdo objetivo possível, mas fechada em si mesma, ela não permite pensar em nada. A sua significação, como diz Zizek, é “a própria pulsação entre o tudo e o nada; ela é – potencialmente – “todas as significações”, a própria universalidade da significação (…) e, por essa razão, efetivamente sem nenhuma significação determinada”.

Dito ainda de outro modo, a “coisa em si” – assim como o falo e o feitiço – figura na Crítica da razão pura como um significante “sem” significação. Como o falo e o feitiço, nessa mesma linha de argumentação, expressam todo desejo possível do homem e da mulher, eles não expressam desejo algum. Trata-se, pois, do puro desejo, indizível e inefável enquanto tal.  Nesse sentido, Zizek completa:

Esse, naturalmente, é um dos lugares comuns da teoria lacaniana: tão logo se tenta apreender “todos” os significantes de uma estrutura, tão logo se tenta “preencher” sua universalidade com seus componentes particulares, tem-se que lhe acrescentar um significado paradoxal que não é um significado particular-determinado, mas como encarna “todas as significações”, a própria universalidade dessa estrutura, embora seja, ao mesmo tempo, o “significante “sem” significado”.

Zizek, em seu texto, após passar do campo da sexualidade para o campo da consciência filosófica, passa também desse último para o campo da política. Faz então uma citação do livro Lutas de classe na França de Marx em que este autor fala de um partido político que guarda em si uma contradição, já que contém em si mesmo duas facções monarquistas adversárias, dois polos opostos: “o reino anônimo da república era o único sob o qual as duas facções podiam manter, como iguais poderes, seu interesse comum de classe, sem renunciar a sua rivalidade política (…)”.

Esses dois polos, que propugnavam por diversas restaurações monárquicas, justamente por isso, não podiam se pôr na coligação como tais, com suas metas específicas, já que isto causaria um curto-circuito. Tinham, pois, de ser pôr na coligação sem se pôr enquanto tais, ou seja, no modo do “silêncio”. As suas metas permaneciam, assim, indizíveis e inefáveis. Daí a conclusão de Marx: “se uma dessas facções, considerada separadamente, se apresentasse como monarquista[2], o produto da combinação química deveria ser necessariamente republicano.

A última conclusão se segue porque somente a forma republicana de partido político pode admitir duas facções, mesmo monarquistas, até certo ponto antagônicas entre si. Na verdade, apenas a república admite verdadeiramente a existência de partidos políticos distintos entre si. O partido republicano é, pois, a espécie no interior do gênero partido em geral. “O partido republicano, nessa lógica” – diz Zizek – “é uma espécie interna ao gênero partido político, faz as vezes, no interior (das espécies) desse gênero, do próprio gênero”.

Daí ele continua:

Esse elemento paradoxal, o ponto propriamente inquietante em que o gênero universal recai sobre si mesmo entre suas espécies particulares, é justamente o elemento “fálico” [ou seja, um “é/não é”]. O seu lugar paradoxal – o ponto de cruzamento entre o “fora” e o “dentro” [ou seja, um “fora/dentro”] – é decisivo para aprender o fetichismo; é precisamente esse lugar que ele perde.

Aqui, Zizek faz referência não ao feitiço da mulher, mas – crê-se – ao fetichismo da mercadoria. De qualquer modo, fazer essa transição conceitual parece necessária aqui.

Como se sabe, é assim que se compreende o fetiche da mercadoria: a forma mercadoria é como tal forma de uma relação social indireta; ora, a identificação dessa forma com o suporte da forma, ou seja, com o valor de uso da mercadoria, torna esta última um fetiche. E isso se revela quando se diz, por exemplo, que “pão é mercadoria”, quando “pão” em geral é apenas um valor de uso. Ele só se torna mercadoria quando ganha a forma de mercadoria ao ser produzido não para o consumo, mas para o mercado. O fetiche, assim, torna todo e qualquer valor de uso um representante da mercadoria como tal. Mas, como a sequência dos valores de uso é um “mau infinito”, o fetiche só se torna um fetiche acabado no dinheiro, o representante em geral de toda e qualquer mercadoria.[3] É no curso dessa argumentação que Marx, como se sabe, denomina o dinheiro de “equivalente geral”.

Como o dinheiro é “tudo” (isto é, toda mercadoria) e, portanto, “nada” (isto é, nenhuma mercadoria em particular), isto permite a Zizek fazer a seguinte consideração complementar:

Em outras palavras, com esse fetiche [do dinheiro] é desmentido (…) o “nada” que acompanha necessariamente o “tudo”, a heterogeneidade radical desse elemento em relação à universalidade que ele supostamente encarna (o fato de que o significante “dinheiro”[4] só pode trazer a universalidade potencial da significação como significante sem significado específico…). Ora, também é fetiche o S1 que, por sua posição de exceção, encarna imediatamente uma universalidade, o particular que é imediatamente “fundido” com um universal.

Zizek, ao mencionar S1, refere-se aqui àquilo que é chamado de significante-mestre na psicanálise lacaniana. Ou seja, ele foca a relação social assimétrica que melhor se expressa na forma S1 <> Si , uma forma em que o significante S1 é o significante mestre e Si (i = 1,2, 3… n) representa todos os outros elementos de um todo social.

Partindo daí, ele apresenta esse significante S1 como um fetiche na esfera da política e que, por isso mesmo, afigura-se semelhante ao fetiche do dinheiro que preside no mundo das mercadorias, isto é, na esfera econômica da sociedade moderna. Eis que a forma “chefe-mito”, por exemplo, adere em certas circunstâncias históricas ao corpo de um político carismático e este passa então a representar miticamente uma corrente política de direita supostamente patriótica.[5] Há, pois, um fetichismo inerente à posição de exceção: um indivíduo particular encarna aí a universalidade de todos os indivíduos abrangidos por um partido político, uma região, uma nação; assim, ele pode ser, por exemplo, o chefe nazista (Hitler) ou o camarada-presidente (Stalin); assim, em consequência, esse elemento “mestre”, “chefe” etc. passa a figurar como um tudo/nada, um todos/nenhum.

É assim que Zizek se capacita para analisar e elucidar o discurso stalinista em Eles não sabem o que fazem – o sublime objeto da ideologia. Esse material bem significativo, por ele apresentado de maneira extensa em seu livro, por causa de sua particularidade e interesse especial, foi ja objeto de um outro post publicado neste blog – um blog em que se trata, mais especificamente, de economia e complexidade. Eis que essa questão política, mesmo se extrapola o âmbito do blog, é ainda relevante no contexto dos pós “socialismos reais” – socialismos que ainda não morreram totalmente.

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[1] Professor titular e sênior do Departamento de Economia da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blog na internet: https://eleuterioprado.blog

[2] Veja-se, agora, mais precisamente, que Marx se refere às facções orleanistas e legitimistas em França de meados do século XIX, as quais eram, sim, igualmente monarquistas, mas de diferentes espécies, estando assim em contradição uma com a outra.

[3] Ver o post “Um significante representa o sujeito para outro significante”, neste blog.

[4] Ao invés de dinheiro, Zizek escreve “fálico”.

[5] Há também o caso de um líder de esquerda carismático que se tornou por efeito da própria política de seu partido um fetiche político. Por meio de uma intensa campanha das forças de direita, que visava destruí-lo enquanto significante politicamente positivo, ele passou de “paz e amor” e “pai dos pobres” para o de “grande corrupto”, aquele que encarna a corrupção, um significante politicamente negativo.