Crítica da narrativa sobre o “tecnofeudalismo”
Arif Novianto [1] – 5 de maio de 2025
Nos últimos anos, a ascensão de monopólios que operam por meio de plataformas como Google, Amazon, Meta e Microsoft gerou um debate crescente entre estudiosos e intelectuais públicos. Muitos deles descrevem esses desenvolvimentos sob a ótica de um suposto retorno às estruturas de propriedade feudais.
Essa narrativa, frequentemente rotulada como tecnofeudalismo ou como feudalismo digital, sugere que o capitalismo contemporâneo, baseado em meios de produção digitais, não é mais movido principalmente pela exploração do trabalho, mas pela extração de rendas de aluguel por meio do controle de infraestruturas digitais (Varoufakis, 2021).
Pensadores proeminentes de esquerda como Yanis Varoufakis, Mariana Mazzucato, McKenzie Wark, Jodi Dean, David Arditi e Robert Kuttner empregaram o arcabouço sintetizado no termo “tecnofeudalismo” para destacar as crescentes assimetrias de poder e riqueza na era digital.
O termo ganhou força significativa, principalmente devido à força retórica e capacidade de evocar imaginários históricos de servidão, hierarquia e imobilidade (Morozov, 2022). No entanto, a sua popularidade crescente também introduziu imprecisão analítica, com muitos adotando esse rótulo como palavra da moda em vez de se engajarem criticamente as compreensão da novidade.
À primeira vista, a metáfora parece atraente: os gigantes da tecnologia de hoje se assemelham a senhores presidindo feudos digitais, extraindo valor de usuários e trabalhadores que têm pouca escolha a não ser se submeter às regras da plataforma. No entanto, este artigo argumenta que tais analogias são conceitualmente falhas e politicamente enganosas.
Baseando-se na tradição da crítica da economia política, este artigo desafia a tese do tecnofeudalismo ao argumentar que a economia digital permanece profundamente atravessada pelas lógicas capitalistas, particularmente em suas formas monopolistas e financeiras. O que estamos testemunhando não é um retorno às relações de produção feudais; ao contrário, tem-se, isso sim, uma intensificação das estratégias capitalistas de acumulação sob novas condições tecnológicas.
Monopólios por meio de plataformas não obtêm poder econômico por meio da posse de terras ou status herdado, mas sim por meio de sua capacidade de mercantilizar dados, impor controle algorítmico e monetizar o acesso a infraestruturas essenciais — especialmente por meio de computação dita em nuvem e plataformas digitais. Essas dinâmicas não marcam uma ruptura com o capitalismo; eis que são apenas a sua última mutação, na qual a dominação se dá pela via da internalização do mercado, ou seja, é alcançada por meio de um sistema de monopólio – e não pelo intermédio de uma hierarquia feudal.
Ao desmistificar esse mito – mito do tecnofeudalismo –, este artigo busca redirecionar a crítica para as estruturas duradouras da dominação capitalista que continuam a definir a economia digital. Ao compreender as “big techs” como titãs capitalistas, e não como senhorios digitais, têm-se uma lente analítica mais precisa para compreender os mecanismos de exploração, acumulação e controle que moldam a economia política das plataformas que caracteriza a contemporaneidade.
Feudalismo vs. Capitalismo: A diferença essencial nos mecanismos de controle
Para entender porque tecnofeudalismo é um termo enganoso, é crucial examinar as diferenças fundamentais entre feudalismo e capitalismo. O feudalismo era um sistema econômico e social baseado na posse da terra e em relações laborais coercitivas. Sob esse sistema, o valor excedente era extraído por meio extraeconômico, ou seja, por coerção política; eis que os senhores exerciam poder militar e legal para controlar servos, que estavam legalmente vinculados à terra e não tinham liberdade econômica (Wood, 2002).
O capitalismo, por outro lado, depende de mecanismos econômicos para controlar o trabalho, gerar e extrair mais-valor. A exploração ocorre por meio do sistema salarial ancorado nos mercados de trabalho; aí, os trabalhadores são formalmente livres, mas estruturalmente obrigados a vender sua força de trabalho para sobreviver. Marx, no tomo I de O capital, explica que o capitalismo explora o trabalho não por meio de coerção política direta, como no feudalismo, mas por meio de mecanismos econômicos como produtividade, eficiência, competição, orientação ao lucro e controle sobre os meios de produção.

Na economia capitalista digital, as Big Tech não exercem coerção política direta sobre trabalhadores ou sobre os usuários das plataformas digitais. Em vez disso, cria um ecossistema econômico que incentiva a participação e a doação de atenção. Por exemplo, trabalhadores que se utilizam das plataforma/mercados como Uber ou Gojek não são legalmente vinculados a essas empresas, mas dependem fortemente delas devido à gestão algorítmica e às estruturas digitais que organizam as relações de oferta e demanda de trabalho (Woodcock & Graham, 2019; Novianto, 2024). Da mesma forma, os usuários de redes sociais não são obrigados a interagir com plataformas como Facebook ou YouTube; contudo, mas o design dessas plataformas, assim o monopólio que detêm sobre infraestruturas digitais de comunicação, deixam os usuários com poucas alternativas viáveis. Essa forma de controle — dependência estrutural em vez de coerção legal — é uma marca registrada do capitalismo e não do feudalismo.
Capitalismo digital: monopólios e mecanismos de extração de renda
Uma das principais alegações dos defensores do tecnofeudalismo é que as corporações digitais não dependem mais da exploração laboral no sentido tradicional. Supostamente, elas extraem valor principalmente por meio da obtenção de renda por meio da captura de dados e uso de infraestrutura digital. Na economia digital, o valor econômico parece ser gerado não pela produção de bens e serviços como mercadorias, mas pelo controle de redes, algoritmos e dados do usuário.
[N. T.: Contudo, não é verdade que ao gerar informação, os usuários de plataformas estão gerando valor. O valor que a captura de dados propicia vem da venda de anúncios para empresas dos setores em que valores e mais-valores são gerados. Vejam-se os seguintes artigos que demostram isso rigorosamente: Crítica da teoria do valor-atenção; E Marx não conheceu a internet; Gerar informação gera mais-valor?; O incontornável fim de um teoria.]
No entanto, é crucial reconhecer que a renda no contexto do capitalismo digital não é renda feudal, mas uma nova forma de renda capitalista, viabilizada por monopólios digitais. Srnicek (2017), em Plataform Capitalism, explica que as grandes empresas de tecnologia operam controlando as infraestruturas digitais que sustentam a atividade econômica global. Eles criam “jardins murados” onde o acesso a mercados e serviços está rigidamente controlado, exigindo que os participantes paguem taxas ou compartilhem dados como forma indireta de pagar uma renda de aluguel.
A Amazon, por exemplo, não lucra apenas com o comércio eletrônico, mas também com os serviços de computação em nuvem, já que é proprietária dessa infraestrutura computacional global. Google e Meta geram lucros massivos com dados de usuários, que são convertidos em valor econômico por meio de modelos de publicidade direcionada. No capitalismo tradicional, os lucros são extraídos diretamente da exploração do trabalho assalariado; no capitalismo digital, ganham também obtidos controlando o acesso a dados e redes digitais, criando uma forma de renda baseada no controle monopolista (Sadowski, 2020).
Além da busca por renda, outro aspecto crítico do capitalismo digital é sua dependência de trabalho digital não remunerado. Christian Fuchs (2014), em Digital Labor and Karl Marx argumenta que as redes sociais e as plataformas digitais extraem mais-valor dos usuários sem contratá-los diretamente como trabalhadores assalariados. Diferente do trabalho assalariado tradicional, onde o valor excedente é extraído pela exploração de trabalhadores remunerados, as plataformas digitais exploram os usuários monetizando suas interações, criação de conteúdo e engajamento.
Cada postagem, comentário ou vídeo enviado por meio de plataformas como Facebook ou YouTube gera dados que são vendidos a anunciantes; ora, isso gera de algum forma ganhos para a plataforma enquanto os usuários não recebem nenhuma compensação econômica direta. Essa forma de extração de valor é única do capitalismo digital, mas permanece consistente com a crítica mais ampla de Marx ao capitalismo: o valor excedente é gerado ao controlar os meios de produção (neste caso, infraestruturas digitais) e apropriar-se de valor excedente gerado pelo trabalho.
Porque a narrativa do tecnofeudalismo é problemática
A narrativa do tecnofeudalismo, embora ganhe força nos discursos críticos recentes, é profundamente problemática tanto conceitualmente quanto politicamente. Uma das questões centrais desse arcabouço é que ele obscurece a dinâmica subjacente do próprio capitalismo. Referir-se ao capitalismo contemporâneo como uma forma de “neofeudalismo” corre o risco de deturpar a adaptabilidade inerente desse sistema.
Como argumenta David Harvey (2005) em Uma Breve História do Neoliberalismo, o capitalismo não é um sistema estático — ele evolui gerando novos mecanismos de extração excedente, preservando sua lógica fundamental de acumulação de capital. Ao rotular a fase atual como feudal em vez de capitalista, ignora-se inadvertidamente como essas dinâmicas exploratórias não são desvios do capitalismo, mas sim extensões de sua própria lógica sob condições digitais.
Além disso, a tese do tecnofeudalismo tende a minimizar a tendência sistêmica inerente ao capitalismo para a formação de monopólios. Caracterizar as grandes empresas de tecnologia como “senhores digitais” governando usuários e trabalhadores evoca uma analogia histórica que ignora a crítica de longa data ao capitalismo monopolista articulada por pensadores como Baran e Sweezy (1966).
Em sua análise, esses autores mostram que as estruturas monopolistas não são anomalias, mas resultados intrínsecos das economias capitalistas maduras. A economia digital, com sua forte dependência de efeitos de rede e dinâmicas em que o vencedor leva tudo, apenas intensifica essas tendências, permitindo que empresas dominantes consolidem o controle e moldem a vida econômica em uma escala sem precedentes.
Além disso, enquadrar o sistema atual como algo além do capitalismo pode diluir a força da crítica anticapitalista. Se o sistema predominante não for mais capitalismo, mas uma forma de tecnofeudalismo, então a solução pode ser mal interpretada como um retorno a um capitalismo “mais puro” ou mais “competitivo”, em vez de uma transformação radical de suas estruturas centrais. Essa distração corre o risco de legitimar reformas neoliberais sob o pretexto de restaurar a justiça de mercado, em vez de abordar as contradições mais profundas da acumulação capitalista e das relações de classe.
Em suma, embora a metáfora do tecnofeudalismo possa oferecer poder retórico, ela acaba desviando a atenção de uma análise mais rigorosa sobre como o capitalismo da era digital funciona. Em vez de sugerir uma ruptura com o capitalismo, o momento atual deve ser entendido como uma intensificação das lógicas capitalistas — particularmente em suas formas monopolistas, exploratórias e apoiadas pelo Estado.
Conclusão: capitalismo de plataforma, não tecnofeudalismo
A economia digital atual deve ser melhor entendida como uma continuação do capitalismo monopolista, e não como uma nova forma de feudalismo. Empresas como Google, Amazon e Meta não criam sistemas baseados na falta de liberdade semelhantes àqueles que existiam no feudalismo, mas usam mecanismos capitalistas — poder monopolista, busca de renda baseada em propriedade de dados e trabalho digital não remunerado — para acumular riqueza.
Em vez de adotar o termo enganoso tecnofeudalismo, é mais correto analisar o capitalismo digital como um sistema em evolução que amplifica as tendências capitalistas tradicionais por meio de novos meios tecnológicos. Ao reconhecer a verdadeira natureza do capitalismo de plataforma, podemos desenvolver estratégias mais eficazes para desafiar o domínio das “bigtechs” e construir uma economia digital mais democrática e equitativa.
Referências
Baran, P. A., & Sweezy, P. M. (1966). Monopoly capital: An essay on the American economic and social order. Monthly Review Press.
Fuchs, C. (2014). Digital labor and Karl Marx. Routledge.
Harvey, D. (2005). A brief history of neoliberalism. Oxford University Press.
Marx, K. (1990). Capital: Volume I. Penguin Classics. (Original work published 1867)
Morozov, E. (2022). Critique of techno-feudal reason. New Left Review, (133), 89-126.
Novianto, A. (2024). Gamification From Below as by Form of Resistance: Algorithm Control, Precarity, and Resistance Dynamic of Indonesian Gig Workers. New Technology, Work and Employment.
Sadowski, J. (2020). Too smart: How digital capitalism is extracting data, controlling our lives, and taking over the world. MIT Press.
Srnicek, N. (2017). Platform capitalism. Polity Press.
Varoufakis, Y. (2021). Techno-feudalism: What killed capitalism? Bodley Head.
Wood, E. M. (1999). The origin of capitalism: A longer view. Verso.
Woodcock, J., & Graham, M. (2019). The gig economy: A critical introduction. Polity Press.
[1] Pesquisador no Instituto de Governança e Assuntos Públicos da Universitas Gadjah Mada, Indonésia.

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