O capitalismo e a forma K

Michael Roberts – The next recession blog [1]

O K não é OK nos EUA

Lê-se no Financial Times que, na campanha do ano passado, Donald Trump prometeu “baixar os preços imediatamente, a partir do primeiro dia”. No entanto, desde seu retorno à Casa Branca, em janeiro de 2025, a inflação tem permanecido elevada para os padrões norte-americanos. Como resultado, a aprovação de Trump caiu por estar afetada por preocupações com a elevação do custo de vida. No entanto, na última quarta-feira, ele afirmou que as preocupações com o custo de vida dos Estados Unidos são um “trabalho sujo” e uma “farsa” que vem sendo perpetuada pelos democratas.

O crescimento anual do índice de preços dos gastos em consumo pessoal dos EUA, que é o índice empregado pelo Federal Reserve em suas decisões de política de juros, subiu para 2,8% em setembro, acima dos 2,3% de abril, quando Trump revelou a sua intenção de elevar bruscamente as tarifas de importação. Isso ocorreu no “dia da libertação”, que não deixou de ser uma libertação, mas apenas para o crescimento dos preços.

Desde então, apesar das oscilações de comportamento, dos aumentos e recuos nas decisões tarifárias de Trump, os custos de importação de mercadorias aumentaram e, assim, elevaram os preços de bens importados, incluindo carros e roupas. Essas elevações também contribuíram para o aumento dos preços de alimentos e bebidas, incluindo carne bovina, café e algumas frutas. Da mesma forma, os impostos sobre matérias-primas, incluindo cobre e madeira, passaram a se refletir nos custos das obras residenciais; em consequência, os preços das casas em relação aos rendimentos familiares nos EUA se aproxima de um recorde histórico.

Além disso, a repressão violenta de Trump contra a imigração gerou forte escassez de mão de obra na agricultura e na construção civil; em consequência, as baixas remunerações desses trabalhadores se elevaram um pouco. E isso levou a um aumento dos preços dos alimentos e da habitação. Acima de tudo, houve uma enorme alta nos preços da eletricidade, os quais foram impulsionados pela demanda crescente dos centros de dados de IA, que consomem muita energia. A OpenAI usa tanta eletricidade quanto as cidades de Nova York e San Diego, juntas, ou tanto quanto a demanda total de eletricidade dos países Suíça e Portugal, juntos.

A inflação crescente é apenas um lado dessa história. Eis que ela vem sendo acompanhada de um enfraquecimento do mercado de trabalho. À medida que o crescimento do emprego desacelera, desaceleram também os aumentos salariais, especialmente para os trabalhadores mais mal pagos. O desemprego entre trabalhadores hispânicos — que se inclinaram significativamente para Trump na eleição ocorrida em novembro passado — subiu para 5,5% em setembro, um pouco acima do observado para o conjunto dos trabalhadores, que ficou em 4,4%.

A previsão de crescimento do PIB real feita pelo Federal Reserve de Nova York, relativa ao último trimestre deste ano, é de 1,7% em valores anualizados, ou seja, 0,4% acima do terceiro trimestre. Isso representa uma desaceleração significativa em relação ao que ocorreu neste terceiro trimestre. Assim, os sinais de estagflação – inflação crescente e desaceleração do crescimento – estão persistindo.

A análise do Federal Reserve de Atlanta, baseada em dados do Bureau of Labor Statistics, mostra que, após anos de crescimento acima da tendência, o salário dos que menos ganham nos Estados Unidos desacelerou mais acentuadamente do que os salários do que obtêm salários mais altos — fato este que anulou grande parte do progresso feito na última década para reduzir a diferença.

O salário-mínimo federal permanece em $7,25 por hora de trabalho desde 2009, um piso que afeta pelo menos 1,3 milhão de trabalhadores, tal como indicado pelo Departamento do Trabalho. A filiação sindical caiu para 10,1% em 2022, a menor taxa já registrada, o que enfraquece o poder de negociação especialmente em setores como o de varejo. Enquanto isso, o mercado de ações dos EUA continua atingindo novos picos, sob o efeito da “mania por IA”; como isso ocorre junto com a perspectiva de cortes nas taxas de juros e nos impostos sobre lucros corporativos, tem crescido o alvoroço no âmbito da elite.

Repartição piorada

Sabe-se, ademais, que o 1% mais rico das famílias dos Estados Unidos acumulou quase mil vezes mais riqueza do que os 20% mais pobres nas últimas três décadas e meia; além disso, a desigualdade econômica está piorando cada vez mais, tal como mostram  novas pesquisas. Só no último ano, tal como observou a Oxfam, a riqueza dos 10 bilionários mais ricos dos EUA se elevou em 698 bilhões de dólares. Isso significa que a fatia dos 0,1% mais ricos na riqueza total atingiu agora um recorde de 12,6%. O 1% mais rico controla mais de um quinto de toda a renda, enquanto os 20% mais pobres dos americanos compartilham apenas 3,1% da renda total. Isso representa uma proporção de 20 para 1 entre as participações de renda dos quintis mais altos e mais baixos, demonstrando a natureza extrema dos níveis atuais de desigualdade.

Esse contraste foi sintetizado na ideia de que economia capitalista tende a se desenvolver em forma de K; eis que aqueles que estão na base perdem ou ganham apenas um pouco, enquanto aqueles classificados como mais abastados ganham mais e mais. Números recentes apontam para um reforço nessa tendência, já que o mercado de trabalho está fraco e os preços estão aquecidos; ora, essa “teimosia” da economia capitalista amplia a diferença entre os que ganham mais e os que ganham menos.

Sabe-se já que as famílias mais pobres foram afetadas por um crescimento salarial mais fraco e por uma desaceleração nas contratações. Sob a lei orçamentaria de Trump, denominada efusivamente por ele de One Big Beautiful Bill Act, muitos americanos de baixa renda perderão os benefícios alimentares e os subsídios ao seguro de saúde.

Não é de se admirar que o sentimento do consumidor do terço inferior dos assalariados tenha caído para o menor nível já registrado. O Índice de Confiança do Consumidor do Banco Central caiu acentuadamente em novembro e, em uma média móvel de seis meses, os consumidores que ganham menos de $15.000 por ano continuaram sendo os menos otimistas de todos os grupos de renda.

Durante a mais recente teleconferência sobre os resultados obtidos pela rede McDonald’s, o seu CEO, Christopher Kempczinski, disse que via uma “bifurcação na demanda dos consumidores: a demanda dos consumidores de baixa renda diminuía mais do que a demanda dos consumidores de médias e altas rendas; e que essa tendência se verificava de modo persistente há quase dois anos”.

Outrossim, muitos americanos sentem-se muito pressionados orçamentariamente. Eis que a inflação – os preços médios subiram 23% desde 2020 – corroeu significativamente o seu poder de compra. Os custos da moradia dispararam, tornando a compra de imóveis um objetivo cada vez mais inalcançável.

O aperto continua

As despesas com saúde também tenderam a sobrecarregar os orçamentos americanos. A Kaiser Family Foundation relatou que os prêmios médios de seguro saúde familiar subiram para $23.968 anuais, em 2023, um aumento de 20% em relação a 2019. Em 2022, a dívida médica afetou 41% dos adultos dos EUA, totalizando US$ 220 bilhões em todo o país, de acordo com o Consumer Financial Protection Bureau. Uma pesquisa do Commonwealth Fund, em 2023, constatou que 25% dos americanos dispensaram cuidados necessários devido aos custos, apesar dos planos patrocinados pelo empregador estarem abrangendo mais trabalhadores.

As mensalidades e taxas universitárias aumentaram 179% de 1980 a 2023, ajustadas pela inflação, segundo dados do College Board. As universidades públicas de quatro anos custaram em média $10.662 por ano, aos valores de 2023. A dívida total de empréstimos estudantis atingiu US$ 1,7 trilhão em 2025; ela é mantida por 42 milhões de tomadores, com o tomador médio devendo US$ 39.000. Os pagamentos mensais de $300 em média foram retomados para muitos após a pausa da pandemia que durou até 2023. Em estados como a Califórnia, a mensalidade para residentes na UC Berkeley atingiu US$ 14.746 no ano acadêmico, aos valores de 2023-2024. Isso atrasou a compra de imóveis por parte daqueles que se formaram e entraram no mercado de trabalho.

A dívida estudantil chegou a $1,8 trilhão. Ademais, ela continua persistindo até a idade adulta, o que representa um atraso de vida para um grande número de profissionais. 20% dos adultos americanos com graduação têm dívidas de empréstimos estudantis. Mutuários de 25 a 34 anos têm uma dívida média de $33.000, enquanto aqueles de 35 a 49 anos possuem em média $46.000. Essa dívida tem atrasado os casamentos e as decisões de paternidade; apesar disso, 16% dos pagamentos estão inadimplentes. A decisão da Suprema Corte, em 2023, de derrubar o plano de perdão de empréstimos de 400 bilhões de dólares do presidente Biden deixou milhões sem qualquer alívio em suas dívida, agravando o estresse financeiro em áreas de alto custo como Boston.

O aumento da dívida do consumidor tem elevado as pressões financeiras. A dívida dos cartões de crédito atingiu US$ 1,3 trilhão este ano, com saldos médios de US$ 7.000. As inadimplências nos empréstimos para a compra de automóveis e, assim, as apreensões, também estão aumentando novamente, com vários indicadores superando níveis não vistos durante a Grande Recessão.

E esse quadro que se traçou acima tende a piorar devido da lei orçamentaria implementada pelo partido republicado e por Trump. Nos dois gráficos em sequência são apresentadas as perdas/ganhos por decil de renda; as perdas estão em vermelho e os ganhos em azul.

O presidente dos EUA fará provavelmente campanha para as eleições legislativas de meio de mandato no próximo ano, enfrentando o ônus/benefício de sua lei orçamentária que denominou de “lei grande e bonita”, aprovada em julho, mas que só deve entrar em vigor em 2026. O projeto aprovado mantêm os cortes de impostos implementados durante o primeiro mandato na Casa Branca; contudo, ele sobrecarregou os mais pobres já que também impôs agora cortes no seguro saúde (medicaid) e nos vale-alimentação. O Escritório de Orçamento do Congresso disse que o projeto provavelmente reduziria os recursos das famílias no decil mais baixo da distribuição de renda em US$ 1.600 por ano — em comparação com um aumento de cerca de US$ 12.000 para os 10% mais ricos

Eis como foi avaliado por Justin Wolfers, professor de economia da Universidade de Michigan: “As pessoas vão ser expulsas do Medicaid, enquanto a classe média verá seus prêmios do Obamacare subir de forma bastante dolorosa.” Após um suspiro, acrescentou: “Mesmo que os agregados aumentem e o tamanho do crescimento do PIB seja positivo, os americanos de classe trabalhadora e da classe média podem enfrentar ainda uma recessão que cortará parte de suas rendas.”

O “roubo” nas taxas de inflação

Além disso, as medidas oficiais de inflação são tendenciosas já que abatem o verdadeiro crescimento dos preços. Corbin Trent analisou as rendas reais nos EUA usando uma medida diferente da inflação tal como é costumeiramente medida. As estatísticas do governo dos EUA mostram que os salários reais médios aumentaram 252% desde 1950. Mas Trent argumenta que, na verdade, as rendas reais perderam 61% do poder de compra desde 1950.

Como pode sustentar isso? Conforme argumenta, as estatísticas oficiais ‘ajustam’ os preços de muitos bens para levar em conta uma suposta melhoria de qualidade. Se uma televisão colorida substitui uma televisão em preto e branco custando o mesmo, então elas reduzem o preço da colorida na formação do índice de preços sob o argumento de que o novo bem tem mais qualidade do que o antigo.

Esses ajustes ‘hedônicos’ reduzem cerca de 50-60% da inflação real, argumenta Trent. Além disso. A ‘cesta’ de bens e serviços favorece na construção do índice os bens cujos preços estão caindo em relação àqueles cujos preços estão subindo. Eis o que Trent escreveu: “Claro. Os eletrônicos ficaram mais baratos. Posso comprar agora uma TV de 55″ colorida por $300. A TV preto e branco de 19″ do meu avô custou $200, em 1950, o que equivale a $2.400 hoje. Mas, enquanto a TV ficou mais barata, tudo que realmente importa ficou mais caro. Não se pode viver hoje com uma TV de tela plana. Não se pode criar filhos sem lhes dar um smartphone. Não se pode cortar a assinatura de streaming.”

Em substituição, Trent analisou a renda frente a uma medida de inflação baseada nas horas de trabalho necessárias para comprar bens e serviços. “Eu eliminei as manobras estatísticas. Tirei os ajustes hedônicos. Tirei os equivalentes teóricos para aluguel. Tirei a repesagem da cesta de consumo. Usei apenas uma matemática sem subterfúgios. Verifiquei quanto ganhamos e quanto custam os artigos básicos dos itens importantes? Olhei dados oficiais do governo. Verifiquei as rendas medianas do Censo. Preços reais de itens essenciais e registros federais. Então fiz uma pergunta simples. Quantos anos, semanas ou meses de trabalho são necessários para comprar o que precisamos?

De certa forma, Trent usou uma abordagem sobre o impacto da inflação de preços na renda que pode ser considera marxista; eis que faz cálculos com base em valor medido em horas de trabalho; verificou, assim, quanto tempo de trabalho é necessário para comprar bens e serviços. Ao proceder desse modo, ele revela algo importante: para igualar os itens essenciais que os avós dos americanos de hoje, em 1950, realmente podiam comprar, a renda mediana oficial de 2023, que é apenas de $42.220, precisaria ser de $102.024.

Trata-se de uma análise da inflação semelhante àquela que Gugliermo Carchedi e eu, Michael Robert, usamos num trabalho que fizemos durante todo o último ano. Nossos resultados devem ser divulgados em um artigo próximo na revista Historical Materialism. Em vez de estimar a inflação segundo os dados oficiais dos EUA, medimos as taxas de inflação como a diferença entre a expansão da oferta monetária na economia (ajustada pelo entesouramento) e a variação nas horas trabalhadas pelos trabalhadores nos setores produtivos da economia.

A ‘taxa de valor da inflação’ (TVI) que calculamos se mostrou muito maior do que aquela mostrada pelos dados oficiais. Isso implica que os números oficiais do aumento da renda real média se mostram tendenciosos para cima em um grau bem elevado.

De acordo com dados oficiais, a renda real mediana das famílias dos EUA aumentou 62% de 1960 a 2024 (em azul no gráfico); contudo, ao considerar a taxa de inflação que calculamos, a renda real foi 20% menor em comparação a 1960. De fato, apenas a chamada era de ouro de 1960-73 fez com que a renda real aumentasse segundo a medida ajustada pela TVI (em vermelho no gráfico). No período neoliberal, 1974-00, as rendas reais caíram 14% e, no período da longa depressão (2000-19), as rendas caíram mais 10%. No período pós-pandemia, praticamente não houve aumento, nem mesmo nos dados oficiais. Não é à toa que a maioria dos americanos se sente deprimida frente a uma economia que segue o padrão de um K.

Causas da inflação

O debate sobre as causas da inflação nas economias modernas tem tido continuidade dado que as opiniões divergiam no passado e continua divergindo fortemente. Recentemente, o ex-governador do Banco da Inglaterra, Mervyn King, reverteu suas opiniões anteriores e admitiu que “os bancos centrais não têm uma boa teoria da inflação”, disse ele em um seminário em Harvard. “A políticas das metas de inflação adotadas, muito populares no mundo, diferem totalmente do propósito original de quando foram criadas.”

O economista Milton Friedman costumava argumentar – continuou a sua crítica – que “a inflação é sempre e em todo lugar um fenômeno monetário”, moldado pela criação de dinheiro dos bancos centrais. No entanto, essa abordagem monetarista é limitada “pois a velocidade da circulação monetária pode mudar e os atores privados criam dinheiro.”

A alternativa favorita agora é argumentar que o aumento da inflação é causado por ‘expectativas’ de que os preços irão subir. Essa teoria psicológica, bem estranha, vem a ser simplesmente, segundo King, um abandono de qualquer explicação. Como comentou: “Esta é a teoria da inflação de Rei Canuto”, invocando assim o monarca inglês do século XI que supostamente tentou — e falhou — controlar as ondas do mar com palavras.

No artigo escrito por Carchedi e por mim com o objetivo de explicar a inflação recorrente após o fim do Acordo de Breton Woods, tentamos fazer algo original. A inflação na economia capitalista resulta da seguinte circunstância: o crescimento do valor (medido em horas de trabalho) desacelera e as autoridades monetárias tentam impulsionar a sua acumulação aumentando a oferta de dinheiro. Isso não acontece porque a política do banco central ou a generosidade fiscal do governo não possam estimular o setor capitalista a investir e expandir; em vez disso, o MV supera o T na equação MV = PT e, assim, os preços sobem. Note-se que M é a oferta de dinheiro; V é a velocidade de circulação; P é o nível de preços e T é um índice da quantidade produzida.

Ponha-se agora a teoria entre parênteses e se considere mais uma vez o que está acontecendo na realidade. Os preços médios nos EUA subiram 23% desde 2020, segundo dados oficiais, ou 26% se for medidos com dados de valor. Isso levou a uma queda na renda real média dos americanos, a qual vem atingindo os que recebem salários mais baixos. Os custos dos serviços de saúde estão prestes a subir, os subsídios alimentares estão sendo cortados, o crescimento de empregos e salários está desaparecendo e a inflação está subindo novamente. Esta é a situação para a maioria. Enquanto isso, o mercado de ações cresce e os acionistas acumulam aceleradamente, ou seja, o sol brilha para os de cima enquanto as sombras cobrem os debaixo na economia americana. Dito de outro modo, o sistema da relação de capital realiza-se no trajeto de um K.

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[1] Título original: Stagflation and the K-shaped economy

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