Autor: Eleutério F. S. Prado [1]
Introdução
Uma escrita enigmática, às vezes, costuma medrar no campo lacaniano. Os psicanalistas que aí lavram apreciam aparecer como defensores do esclarecimento; contudo, não deixam de se expressar por meio de um discurso de difícil acesso, recheado às vezes com fórmulas herméticas.
Aqui se vai comentar um tópico específico de um escrito de Jorge Alemán que prima pelo esforço de ser acessível e claro nos limites do possível. Contrariando a tendência obscurantista aludida, combina psicanálise e sociologia marxista para pensar o advento das “novas extremas-direitas” no capitalismo contemporâneo. Para começar, cita-se um trecho de uma seção de seu livro recém-publicado[2] que ele achou por bem denominar de “mais-valia informacional e democracia refém”:
Um novo tipo de mais-valia vem determinando o mundo contemporâneo há anos. Isso aconteceu porque a informação constitui um valor chave, uma nova força produtiva na máquina capitalista.
O movimento circular dessa máquina pode ser descrito de forma simples: o “usuário” consome diferentes tipos de bens – celulares, tablets, computadores, Uber, Amazon, Google –, ou seja, participa de diferentes plataformas online. Ele paga para usá-las e, enquanto o faz, algo não previsto pelas teorizações clássicas do capitalismo acontece. O consumidor paga, mas ao mesmo tempo é produtor de informações que são processadas com algoritmos, arquivadas e mantidas em nuvem para serem trocadas. Essa informação se torna a mais-valia que alimenta todo o sistema financeiro de mídia.
Admitindo de saída que Alemán comete um grande equívoco, onde se encontraria – é preciso perguntar – o furo de sua formulação? Em sequência, dar-se-á uma resposta cabal para essa indagação. Contudo, isso não será suficiente para fechar a questão. Pois, se esse argentino inquieto, que mora na Espanha por ter fugido da ditatura em seu país, escreveu essa enormidade, foi porque o aparecimento de uma suposta nova forma de mais-valia lhe pareceu bem plausível. Assim sendo, ter-se-á de mostrar também porque essa teorização parece – e apenas parece – fazer sentido, figurando como uma crítica inovadora do capitalismo contemporâneo. Crítica esta, aliás, que pretende ter abarcado um aspecto importante de seu modo de desenvolvimento.
A primeira parte do que vem em sequência é trivial; já a segunda parte tem caráter preliminar já que expõe, na verdade, uma conjectura que poderá ser modificada ou mesmo abandonada no futuro da investigação. Antes de entrar propriamente na crítica da tese acima exposta, é preciso tratar de uma questão de linguagem. Veja-se que o termo “valia” do composto “mais-valia” se presta à confusão. Eis que ele significa literalmente “utilização proveitosa de algo ou alguém”. Como as plataformas colhem informações geradas espontaneamente pelos seus usuários sem lhes pedir autorização, elas estão de fato se aproveitando deles. Logo, faz sentido falar metaforicamente que obtêm “mais-valia” dessa relação.
Assumindo que Alemán não quer fazer apenas uma metáfora, mas deseja dizer algo substantivo no campo da crítica da economia política, é preciso questionar a sua intervenção nos debates atuais sobre a exploração da força de trabalho e sobre a forma de subsunção do trabalho ao capital. Por isso, deste ponto em diante se empregará o termo “mais-valor” – e não “mais-valia” – para se referir àquilo que o capital posto em plataformas supostamente extraí dos usuários.
Descobrindo o “furo”
Há – é preciso perguntar enfaticamente – extração de mais-valor nessa relação que se afigura comercial – e não industrial? Ora, donde vem esse termo chave e o que ele significa precisamente? Ele vem, como bem se sabe, da teoria do valor de Marx e ele está rigorosamente definido em O capital. Para apresentá-lo, esse autor começa afirmando que a riqueza no capitalismo é constituída por uma “imensa coleção de mercadorias”. A mercadoria, enquanto forma elementar dessa riqueza, figura então como uma duplicidade de determinações contrapostas: valor de uso e valor de troca.
O valor de uso é imediatamente explicado como uma relação da coisa produzida com os seus possíveis consumidores. Em sequência, Marx examina a relação de troca entre duas mercadorias para mostrar que o valor de troca é apenas a forma de manifestação do valor. Em consequência, a duplicidade constitutiva da mercadoria tem de ser, assim, mais bem apresentada: agora, ela passa a ser “unidade contraditória de valor de uso e valor”. Na relação de troca, a contradição interna à mercadoria se desdobra numa contradição externa: eis que o valor se apresenta duplamente, ou seja, na forma relativa (como valor de troca) e na forma equivalente (como forma de valor).
O valor figura então como uma incógnita. Para desvendar a sua constituição, Marx recorre – modifica e aprimora, torna rigorosa – a teoria do valor da economia política clássica. O valor como tal fica então explicado, qualitativamente, como trabalho reduzido a trabalho abstrato e, quantitativamente, como um quantum desse trabalho. Tal quantum, então, é determinado como a quantidade de trabalho que é necessária, em média, para produzir a mercadoria. Marx mostra em sequência que o mundo das mercadorias requer e põe o dinheiro como uma forma universal de valor, etapa necessária do argumento que vai apresentar depois o capital como valor que se valoriza.
A valorização do valor se mostra então como um outro enigma. Para desvendá-lo, Marx mostra no correr de sua análise sintetizadora que, no mercado, está disponível uma mercadoria especial que é capaz de gerar valor, a força de trabalho. Eis que o valor de uso dessa mercadoria, a capacidade de gerar trabalho, ao funcionar para aquele que teve dinheiro para comprá-la, o capitalista, produz novas mercadorias. Como o valor realizado por meio da venda dessas mercadorias é maior do que o valor da própria força de trabalho, expresso pelo salário, surge um excedente de valor – precisamente o mais-valor, o qual é apropriado sem contrapartida, sob a forma aparente de lucro, pelo capitalista.
Ora, uma lógica semelhante pode ser encontrada na transação entre o capital investido em plataforma e os seus usuários? Jorge Alemán parece pensar que sim. Para testar a sua hipótese, considere-se, então, um tipo particular de empreendimento capitalista que fornece informações gerais aparentemente de graça para aqueles que delas precisam. Qualquer um que deseje pode acessá-las ao seu bel prazer. Ao fazê-lo, eles mostram as suas preferências, revelam os seus desejos para os algoritmos das plataformas; estes afetos capturados, por sua vez, são transformados em “dados”, os quais são então utilizados para vender espaços e tempos de publicidade para outras empresas capitalistas.
As empresas que compram espaços e tempos de publicidade são direta ou indiretamente empresas industriais que produzem mercadorias; a plataforma, ao contrário, é uma empresa comercial. E essa distinção é importante porque nas primeiras, de acordo com Marx, valor é produzido – e, assim, mais-valor –, mas na última apenas se o consome uma parte do mais-valor produzido no âmbito do capital industrial.
Assim, tais empresas podem direcionar a propaganda de suas mercadorias justamente para aqueles usuários que parecem quere-las e que, talvez, possam comprá-las. Ora, não há dúvida de que o capital investido em plataforma se valoriza nesse processo. Mas donde vem o mais-valor que obtêm? Ele aparece como lucro, ou seja, como diferença entre o preço de venda do espaço/tempo de propaganda e do custo total para criá-lo. Ora, esse preço de venda é simplesmente a forma aparente uma parcela do mais-valor que foi gerado nas empresas contratantes e que foi destinado à compra do espaço/tempo de propaganda. Trata-se, portanto, de uma ilusão supor que são os usuários da plataforma é que geram esse mais-valor.
Desvelando o furador
Mas por que esse psicanalista lacaniano – uma pessoa certamente muito inteligente, investigativa e estudiosa – é capaz comete esse erro crasso que, ao fim e ao cabo de uma crítica certeira, revela-se como bem banal? Para encontrar uma pista, torna-se necessário citar um outro trecho da mesma seção de seu livro sobre a ascensão da extrema-direita. Conjectura-se, de modo mais preciso, que é no trecho grifado que se encontra a pista procurada.
A novidade é justamente esta: o sujeito paga por sua própria exploração. Trata-se de uma exploração do trabalho que não tem cronogramas ou produtos acabados. É o reino da mercadoria em sua condição fantasmagórica, que o gênio de Marx foi capaz de antecipar e que Lacan retomou para explicar sua enigmática equivalência entre o “mais-gozar” e a “mais-valia”.
Ora, a origem do furo parece se encontrar, portanto, na tese de que as plataformas criam uma audiência cativa e que essa audiência trabalha o tempo todo para o capital. Eis que, ao trabalhar, ela produz mais-valor mesmo se não produz coisas ou “produtos acabados” como mercadorias. Os sustentadores efetivos do sistema da relação de capital não trabalham mais, apenas e tão somente, na produção e na circulação de mercadorias, pois agora eles trabalham também, constantemente, como “prosumidores”, ou seja, como produtores de informação. Eis que o mundo da vida social e cultural desses indivíduos foi já, em grande medida, absorvido pelo sistema, o que transformou a sociedade como um todo numa grande fábrica.
Expandindo desse modo a categoria trabalho que se encontra em Marx, Alemán chega a uma conclusão impactante. Para ele, o neoliberalismo assumiu agora uma forma acabada, unificadora e totalizante, já que passou a se assentar numa infraestrutura própria, num complexo midiático, corporativo e financeiro que não deixa mais nenhum espaço para a vida comunitária e para o exercício da cidadania mesmo nos limites da democracia liberal que, aliás, está ficando puramente oca. Pois, “o seu horizonte último se tornou governar todas as almas”.
No último trecho citado, Alemán se refere explicitamente a Lacan e a um Marx absorvido já na ontologia lacaniana, sem que essa operação ideológica tenha sido apresentada explicitamente. Ora, essa aproximação, denotada que está pela suposta homologia existente entre o mais-valor e o mais-gozar (conjectura errônea[3] levantada e sustentada por Lacan), parece fornecer a pista que se está aqui buscando. Para segui-la é, pois, imperativo refletir sobre a diferença dos modos de pensar de Marx e de Alemán, a qual dá origem à confusão que está sendo aqui investigada. Admite-se, para tanto, que esse último autor, além de psicanalista, é filósofo e, como filósofo, que ele reproduz o modo de pensar de Lacan.
Aposta-se, também, que a ontologia de Jaques Lacan está fundada sub-repticiamente, mesmo se subsistem diferenças, na ontologia de Martin Heidegger.[4] Sob essa suposição é possível refletir um pouco sobre a diferença entre compreender o trabalho como categoria da práxis do homem em sociedade (Marx) e o trabalho como um existencial próprio de ser-no-mundo (Lacan/Alemán).[5]
Provocativamente, afirma-se que Marx parte do ser humano como ser no mundo, de um modo que difere do ser-no-mundo de Heidegger. O autor de O capital concebe o ser em geral ao modo de Hegel, ou seja, como contradição dialética entre ser posto e ser pressuposto, isto é, já sempre no processo de vir a ser. Por mundo, ele entende a realidade social de ontem, hoje e amanhã que está em processo de desenvolvimento histórico.
Na compreensão desse processo, é central para ele apreender o modo pelo qual o ser humano, situado já sempre historicamente, resolve na prática o problema da produção e reprodução da vida humana. Sustenta, como é bem sabido, que ele o faz por meio do trabalho, cuja função crucial consiste em mediar o metabolismo entre o si mesmo do homem social e a natureza. O trabalho não consiste em simples ação, mas em um pôr teleológico que visa transformar e transforma a matéria natural em coisas úteis, tal como enfatizou György Lukács, com base em trechos escritos pelo próprio Marx.[6]
Uma crítica de Marx a partir de Heidegger diria certamente que ele se encontra ainda na tradição que compreende o ser como substantivo e, assim, como presença, ou seja, como objetividade independente do sujeito cognoscitivo. Ora, o apontamento está correto. Marx, no entanto, recusa a tradição metafísica que pensa o ser como substância fixa ou imóvel, ou seja, como aquilo que permanece nas formas que mudam. Como pensador dialético, ele acolhe a categoria de substância, sem, no entanto, tomá-la como fundada, posta. Se recusa a fundação primeira, recusa, também, a sua negação abstrata, nominalista, para acolhê-la como contraditoriedade que se deixa interverter. Pois, para ele, as coisas e o homem ou a mulher, toda a realidade humana, está em constante vir a ser, transforma-se na temporalidade. O ser humano, como animal que trabalha se apropriando da natureza, transforma o mundo e, ao fazê-lo, transforma-se a si mesmo.
A dialética marxiana, ademais, também não é uma filosofia mundana. Ela não põe o ser como o que aí está; não põe a pessoa, o ego do humano meramente como ser-aí; pois, ao recusar toda fundação – ao diluir o ser da mulher ou do homem na temporalidade da vida, na historicidade da existência, tal como ocorre na ontologia heideggeriana –, esse discurso, que ainda se situa nos limites do entendimento, acaba afirmando também o existente como realidade irrevogável, caindo assim na ideologia. A filosofia de Heidegger se mostra como um anti-humanismo; para ela o ser humano vive em permanente estranhamento, ou seja, em seus termos, ele foi jogado e está preso no estado de derrelicção.
A dialética é ontologia negada como tal em razão da assunção da negatividade como intrínseca ao ser; ela põe o ser em estado de permanente negação. Difere, nesse sentido, da ontologia fundamental de Heidegger que pensa o ser como ser-no-mundo, admitindo de partida que ele está diluído no mundo da vida social e cultural que é, como tal, histórico em sentido mundano. Como se sabe, essa ontologia foi forjada no campo da fenomenologia de Husserl, não como filosofia do sujeito, mas como filosofia hermenêutica que toma a “linguagem como a morada do ser”.
Essa ontologia caracteriza-se por abdicar da noção clássica de substância para pensar o ser como ser-no-mundo, ou seja, como unidade de três momentos inseparáveis: o mundo do ser, a ação do ser no mundo e o ser como ser-aí, ou seja, no mundo. Ao invés de pensar com categorias, o que pressupõe a díade sujeito cognoscitivo/objeto de conhecimento – seja como duas entidades separadas que apenas se tocam (filosofia transcendental) seja como totalidade (filosofia dialética) –, o filósofo da floresta negra pensa por meio de existenciais. Eis que a experiência está constituída, segundo ele, pela unidade de um “eu” existencial, um “ato” existencial e um “objeto” existencial.
O meio de constituição do ser humano nessa filosofia não é o trabalho em seu percurso histórico que passa por modos de produção, mas a linguagem em sua dimensão histórica, constituinte fundamental do mundo da vida social e cultural em sua temporalidade intrínseca. Nessa compreensão não há lugar para o trabalho concebido como mediação transformadora subsistente na relação entre sujeito e objeto. Ele só pode ser concebido aí como forma de um ato existencial, como expressão de uma experiência vivida de manipulação dos entes que, porventura, o ser-aí encontra no acontecer de seu próprio mundo.[7]
Tal compreensão filosófica do trabalho – crê-se – está presente implicitamente na ontologia de Lacan quando ele tenta fazer uma aproximação do mais-gozar com o mais-valor. Alemán, que é um lacaniano do século XXI, pode, por isso, pensar que os consumidores de informação trabalham para os capitalistas de plataformas, entregando-lhes um proveito que ele chama de mais-valia. A produção de coisas em geral pode então ser reduzida no discurso, em perspectiva idealista[8] e existencialista, como mera produção de significações. Eis que se está agora, como ele mesmo diz, “no reino da mercadoria em sua condição fantasmagórica”. Contudo, assim pensada, a forma mercadoria se afigura como aquilo é também para Marx, ou seja, como totalitária.
[1] Professor aposentado do Departamento de Economia da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br; blogue na internet: https://eleuterioprado.blog
[2] Alemán, Jorge – Ultraderechas – Notas sobre la nueva deriva neoliberal. Madrid: Ediciones NED, 2025.
[3] A crítica a essa conjectura se encontra em Prado, Eleutério F. S. – Marx contra Lacan – Psique, alienação e práxis. Lutas Anticapital, 2024, p. 87-98, ou seja, no capítulo intitulado Marx com Lacan na crítica do capital.
[4] Ver SANTOS, Ívena Pérola do Amaral. Heidegger e Lacan: a linguagem do ponto de vista ontológico e da prática analítica. Tese Doutorado, Universidade de Brasília, Brasília, 2009.
[5] Nessa incursão filosófica, o que vem a seguir se vale da lição encontrada em Stapleton, Timothy – O dasein como ser-no-mundo. In: Martin Heidegger – Conceitos fundamentais. Editora Vozes, 2020, p. 73-89. Mas se vale também do escrito Fausto, Ruy – Dialética marxista, humanismo e anti-humanismo. In: Marx: Lógica e Política. Tomo I. Editora Brasiliense, 1983, p. 27-65.
[6] Ver Lukács, György – Para uma ontologia do ser social I. Boitempo Editorial, 2012, p. 281-302. Precisamente nesse sentido, produzir significado não é trabalhar, mesmo se visa transformar o mundo.
[7] Há evidência de que Heidegger considerava o trabalho como um existencial, mas o seu modo de compreendê-lo, situado em que ainda estava numa fase adiantada da grande indústria (segundo quartel do século XX), não coincide com aquele mantido por Alemãn (autor que se situa já no século XXI). Ver o capítulo 5 do livro de Wolin, Richard – Heidegger in ruins – between filosophy and ideology. Yale University Press, 2022, p. 170-172.
[8] Eis o que se pode ler num escrito de Richard Polt: “poderíamos, portanto, falar (…) sobre o ‘idealismo temporal de Heidegger (…) [que] tem a vantagem de reconhecer que o ser não pode ser reduzido aos entes, mas já é aquilo que é transcendental para toda entidade”. Ver Polt, Richard – Ser e tempo. Em Marin Heidegger – Conceitos fundamentais. Ed. Bret W. Davis. Vozes, 2020.

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