A desigualdade nos EUA (Parte III)

Autor: Paul Krugman. A Parte I está aqui e a Parte II está aqui.

Havia ficado estabelecido que a terceira parte da série de pequenos artigos sobre desigualdade nos Estados Unidos se concentraria no aumento das fortunas gigantes, algo que vem ocorrendo desde 2000. Contudo, agora vi que essa promessa precisa ser quebrada, por dois motivos. A primeira é que a pesquisa ainda está sendo feita.

A segunda é que surgiu algo mais atual para ser discutido. Eis que o Stone Center on Socio-Economic Inequality realizou seu workshop anual e ele versou sobre os números da desigualdade. O seminário contou com apresentações de pesquisadores e estudiosos mais jovens, mas também de alguns com mais idade. Aquele que aqui escreve foi convidado a dar uma palestra, relativamente não técnica, sobre coisas que atualmente estão em circulação.

O assunto abordado versou sobre um ponto novo: como as recentes mudanças tarifárias afetam a desigualdade. Havia algumas coisas novas a dizer sobre esse ponto e as pessoas pareciam interessadas. E esta também foi a semana em que saíram as primeiras as estimativas do comitê de orçamento do Congresso (CBO) sobre os efeitos da distribuição de renda do projeto orçamentário que ficou chamado de One Big Beautiful Bill Act (OBBBA). Embora seja bem embaraçoso, esse é realmente o seu nome oficial.

Em face dessas circunstâncias, pareceu-me que seria adequado escrever e elaborar sobre esse tema.

Spoilers: Em princípio, as tarifas podem aumentar ou reduzir a desigualdade de renda. Nas circunstâncias atuais, argumentarei, eles provavelmente não terão efeitos imediatos sobre a distribuição das rendas (salários, lucros etc.). As tarifas são, no entanto, impostos regressivos e aumentam a desigualdade por meio desse canal.

Em sequência, abordarei os seguintes pontos:

  1. Tarifas e desigualdade: o que dizem os modelos econômicos
  2. As tarifas podem reverter os efeitos da globalização sobre a desigualdade?
  3. As tarifas podem reverter o “choque da China”?
  4. Tarifas como política tributária regressiva

Tarifas e desigualdade: teoria

As tarifas que Donald Trump impôs desde que assumiu o cargo são as mais altas desde 1934, quando FDR aprovou a Lei de Acordos Comerciais Recíprocos. Essa legislação dos EUA mais tarde se tornou a base para um acordo internacional, o Acordo Geral de Tarifas e Comércio de 1947. Daí resultou um sistema no qual os países negociavam reduções tarifárias mútuas, e as novas tarifas, agora mais baixas, tinham o caráter vinculativo, ou seja, os países não podiam colocar as tarifas de volta, exceto sob um conjunto limitado de circunstâncias.

Caso alguém me pergunte se isso significa que quase tudo o que Trump fez no comércio é uma clara violação dos acordos anteriores dos EUA. Sim, mas isso é outro assunto.

Embora muitas vezes se esteja vendo Trump recuar na fixação das tarifas, não se vê isso na tarifa média, que permanece um pouco abaixo do que era após a infame tarifa Smoot-Hawley de 1930:

Além disso, a tarifa Smoot-Hawley ocorreu após gerações de altas tarifas. As tarifas de Trump representam um salto repentino em relação às tarifas bastante baixas de apenas alguns meses atrás. Além disso, as importações como porcentagem do PIB são cerca de três vezes maiores do que eram em 1930. Portanto, as tarifas de Trump são de longe o maior choque de política comercial da história dos EUA.

Um choque tão grande não pode deixar de ter efeitos significativos na distribuição de renda. Ora, o que a análise econômica tem a dizer em geral sobre os efeitos das tarifas?

Claramente, as tarifas podem beneficiar indústrias específicas que passam a estar protegidas da concorrência advindas das importações. Se alguém possui uma fábrica de enfeites de gramado, seus lucros aumentarão se houver uma nova tarifa sobre as importações de flamingos rosa de plástico.

Mas grupos mais amplos – por exemplo, os trabalhadores sem diploma universitário – podem se beneficiar das tarifas postas? Os defensores do livre comércio podem ficar tentados a dizer algo assim: “Bem” – dirão –, “as tarifas podem mudar a distribuição de renda em favor dos trabalhadores menos instruídos; contudo, elas também tornam a economia como um todo menos eficiente; por isso, certamente, é bem provável que esses trabalhadores acabem ficando numa situação pior do que estavam sem elas”.

Isso, no entanto, não é o que diz a economia internacional dos livros didáticos. Em 1941, Wolfgang Stolper e Paul Samuelson publicaram um artigo teórico altamente influente, Protection and real wages, que refutou esse argumento que soava plausível.

Eles modelaram um país que produzia uma mistura de bens intensivos em capital e em intensivos em trabalho – isto é, bens que exigem uma quantidade relativamente alta ou relativamente baixa de capital por trabalhador. Mostraram que, então, se este país fosse um importador líquido de bens intensivos em mão-de-obra, as tarifas aumentariam os salários reais dos trabalhadores – não apenas em relação aos retornos sobre o capital, mas em termos absolutos.

Em suma, as tarifas podem, em princípio, afetar fortemente a distribuição de renda entre amplas classes da sociedade. E, sob certas circunstâncias, as tarifas podem reduzir a desigualdade de renda – enquanto as reduções tarifárias, correspondentemente, podem aumentar a desigualdade.

Observe minha cuidadosa dúvida que incide sobre o termo “certas circunstâncias”. Como veremos, essa é uma qualificação crucial quando se trata das tarifas de Trump. Mas os efeitos das tarifas sobre a desigualdade dependem dos detalhes. Eles não podem ser deduzidos de princípios gerais.

O teorema de Stolper-Samuelson teve um enorme impacto na teoria econômica do comércio internacional. Teve muito menos efeito nas discussões sobre política comercial do mundo real nas décadas seguintes, por razões que não posso discutir neste artigo.

Mas o teorema de Stolper-Samuelson chamou atenção por volta de 1980, quando a desigualdade nos EUA começou a aumentar – e as importações de produtos manufaturados de mercados emergentes foram definitivamente um fator nesse aumento.

Então, as tarifas de Trump podem ser vistas como uma forma de reduzir a desigualdade? Na prática, não – mas esse veredicto requer alguma explicação.

As tarifas podem reverter o choque da globalização?

O caráter do comércio mundial começou a mudar na década de 1980. Até então, os países mais pobres e com salários relativamente baixos basicamente vendiam produtos agrícolas e de mineração para nações ricas, o mesmo tempo em que compravam produtos manufaturados em troca. Depois de cerca de 1980, no entanto, as nações de mercados emergentes tornaram-se grandes exportadores de manufaturas, inicialmente de produtos intensivos em mão-de-obra.

A China é o exemplo que todos conhecem, mas esse caso faz parte de um quadro mais amplo. Por exemplo, no início da década de 1980, Bangladesh exportava basicamente juta e produtos feitos de juta (como estopa). Desde então, tornou-se uma economia centrada na exportação de roupas.

Esta mudança no carácter do comércio mundial reflectiu pelo menos dois desenvolvimentos. Primeiro, houve grandes mudanças políticas no mundo em desenvolvimento. As nações pararam de tentar se industrializar produzindo para seus pequenos mercados domésticos; mudaram, na verdade,  para uma estratégia de industrialização por meio de exportações.

Em segundo lugar, a adoção mundial de contêineres de tamanho padrão – uma inovação aparentemente prosaica que mudou tudo – tornou possível dividir a produção de muitos bens manufaturados em vários estágios, com os estágios de trabalho intensivo ocorrendo em nações de baixos salários.

O aumento das exportações de mão-de-obra intensiva dos mercados emergentes reduziu a demanda por mão de obra menos qualificada nos países mais ricos? Definitivamente – e economistas honestos, mesmo aqueles que geralmente eram pró-globalização, admitiram isso na época.

Em 1995, usando dados até 1990, eu próprio estimei que as importações aumentaram o prêmio para trabalhadores com formação universitária em cerca de 3%. Uma estimativa atualizada de Bivens dobrou esse número. Existem muitas suposições envolvidas em tais cálculos, mas não há dúvida real de que o comércio teve um efeito significativo sobre a desigualdade.

Mas as tarifas de Trump podem reverter esse efeito? Neste ponto, é preciso fazer uma qualificação crucial do teorema de Stolper-Samuelson: uma tarifa sobre importações intensivas em mão-de-obra pode aumentar os salários se levar a uma expansão da produção interna intensiva em mão-de-obra. Afinal, a única maneira de as tarifas aumentarem os salários das pessoas é se gerarem uma expansão do emprego.

E é improvável que as tarifas de Trump façam isso, porque a produção altamente intensiva em mão-de-obra nos Estados Unidos agora não é e não pode ser competitiva mesmo com tarifas muito altas. Veja o exemplo do vestuário, que agora é quase o único suporte da economia de Bangladesh; trata-se do exemplo clássico de uma importação de mão-de-obra intensiva. A produção de vestuário, além de itens especiais de alta qualidade, basicamente terminou na América:

Ora, mesmo a tarifa de 37% que Trump propôs inicialmente em Bangladesh não trará de volta os empregos perdidos no passado.

Contudo, pode-se perguntar: não trará de volta também os componentes da cadeia de valor com uso intensivo de mão de obra? Howard Lutnick, o secretário de comércio, disse que sim: “O exército de milhões e milhões de seres humanos apertando pequenos parafusos para fazer iPhones – ora,  esse tipo de coisa virá para a América”. Não, não virá – pode-se afirmar.

Existem alguns bens que os EUA importam e que produzem internamente em quantidades substanciais, notadamente carros, aço e alumínio. Mas esses não são setores de mão-de-obra intensiva! Portanto, é improvável que as tarifas sobre esses bens, embora aumentem os custos e os preços ao consumidor, reduzam a desigualdade.

O resultado é que, embora as tarifas possam, em princípio, reduzir a desigualdade aumentando a produção de bens intensivos em mão-de-obra, as tarifas de Trump na prática simplesmente não farão isso.

As tarifas podem reverter o choque da China?

A China é o maior dos países em desenvolvimento que começaram a exportar produtos de mão-de-obra intensiva para o Ocidente. Isso pode realmente ser um problema menor agora do que costumava ser, porque os salários da China aumentaram e sua produção aumentou (embora isso levante outras preocupações).

 Mas o crescimento muito rápido das exportações chinesas entre o final dos anos 1990 e aproximadamente 2010 criou um tipo diferente de problema de desigualdade, geralmente referido como o “choque da China” após o trabalho de Autor, Dorn e Hanson.

De acordo com a teoria desses autores, o rápido aumento das exportações chinesas deslocou de 1 milhão a 2 milhões de empregos na indústria dos EUA ao longo de cerca de uma década. Na verdade, esse não é um número grande para uma economia enorme e dinâmica. Nos Estados Unidos, cerca de 1,7 milhão de trabalhadores são demitidos ou demitidos todos os meses.

Mas, como essa teoria documentou, essas perdas de empregos foram distribuídas de forma muito desigual entre as regiões; certos clusters industriais específicos foram atingidos com muita força. Meu exemplo favorito é a indústria de móveis, que não enfrentou muita concorrência de importação até que os chineses entraram no jogo; desde então, perdeu centenas de milhares de empregos:

Novamente, esse não é um número enorme do ponto de vista nacional. Mas a indústria de móveis dos EUA estava amplamente concentrada na Carolina do Norte, e o aumento das importações foi devastador para pequenas cidades como Hickory, por exemplo.

Então, novamente, as importações aumentaram a desigualdade – neste caso, a desigualdade geográfica; isso contribuiu para fazer com que certas regiões ficassem para trás. Mas as tarifas de Trump farão alguma coisa para reverter esse choque? Novamente, isso parece improvável. É difícil ver como as tarifas poderiam trazer de volta a indústria de móveis da Carolina do Norte.

Além disso, o choque da China, embora dramático – e, mea culpa, em grande parte imprevisto até mesmo por economistas que levaram a sério os efeitos do comércio na distribuição de renda – aconteceu principalmente antes de 2010. Desde então, algumas comunidades fizeram a transição para outras indústrias, enquanto outras entraram em declínio de longo prazo. Os trabalhadores seguiram em frente ou envelheceram fora da força de trabalho.

Talvez pudéssemos e devêssemos ter feito mais para mitigar os efeitos do choque da China enquanto ele estava acontecendo. Mas as altas tarifas impostas em 2025 não vão recriar o cenário industrial agora. Na verdade, eles apenas impõem outro conjunto de interrupções.

A questão é que, embora as importações dos mercados emergentes certamente tenham contribuído para o aumento da desigualdade nas décadas de 1980 e 1990, e possivelmente nos anos 2000, as tarifas de Trump não reverterão essa história. Em uma primeira aproximação, eu argumentaria que as tarifas não terão muito efeito sobre a desigualdade da renda de mercado – renda antes de impostos e transferências – de qualquer maneira.

O que não quer dizer que as tarifas não terão efeito sobre a desigualdade. Pois as tarifas são impostos e, por isso, elas afetarão a desigualdade de renda após os impostos e as transferências. E eles claramente piorarão essa desigualdade.

Tarifas como política tributária regressiva

Uma tarifa é um imposto seletivo sobre o consumo – seletivo na medida em que tributa apenas o consumo de bens importados. No entanto, é um imposto sobre o consumo das famílias. E os impostos sobre o consumo são geralmente considerados regressivos, caindo mais fortemente (ou seja, numa porcentagem da renda maior) sobre as famílias de baixa renda do que sobre as famílias de alta renda.

Na verdade, tenho algumas dúvidas a respeito dessa avaliação; logo tratarei deste ponto. Mas essas dúvidas não afetam o ponto principal; se se considera impacto das tarifas de Trump sobre a renda após impostos e transferências, elas claramente aumentarão a desigualdade.

Aqui está outro gráfico útil da inestimável equipe do Laboratório de Orçamento de Yale. Nele se combinam os efeitos das tarifas de Trump e do orçamento One Big Beautiful Bill Act sobre a renda após impostos e transferências por decil (os pontos pretos mostram o efeito líquido):

Trata-se, na verdade, de uma enorme redistribuição de renda dos pobres para os ricos, provavelmente a maior redistribuição desse tipo ocorrida na história dos EUA. E, como se pode ver, as tarifas são uma parte importante dessa redistribuição, transformando um declínio de renda de 4% para o decil inferior em um declínio de 6,5%, embora tenha pouco efeito no topo.

A razão pela qual as tarifas atingem os pobres com muito mais força do que os ricos, tal como se verifica nesta análise, é que as famílias de baixa renda consomem uma fração muito maior de sua renda do que as famílias de alta renda.

OK, agora as minhas dúvidas. Por que existe uma relação tão forte entre a renda familiar e a parcela dessa renda gasta no consumo? Há muito tempo atrás, Milton Friedman argumentou – e esse é um argumento com o qual concordo – que, pelo menos em parte, vem a ser uma ilusão estatística.

Em geral, argumentou ele, os gastos do consumidor são baseados em grande parte não na renda de um ano, mas no que ele chamou de “renda permanente”, algo como a renda anual que uma família normalmente pode esperar ter por um período bastante longo. Cinco anos? Dez anos? Tanto faz.

E aqui está o ponto: se se tirar um instantâneo da renda e dos gastos em um único ano, os 10 ou 20% inferiores das famílias conterão uma fração desproporcional de pessoas tendo um ano excepcionalmente ruim, enquanto o grupo superior conterá muitas pessoas tendo um ano excepcionalmente bom. Portanto, a correlação entre as participações de renda e consumo seria muito menor se fizéssemos a média de um período mais longo, o que, por sua vez, significa que as tarifas e outros impostos sobre o consumo não são tão regressivos quanto podem parecer à primeira vista.

Há muito mais a dizer aqui, mas elas não são tão importantes. Por quê?

Porque mesmo que as tarifas não sejam tão regressivas quanto podem parecer em uma observação casual, Trump e companhia estão alegando que a receita tarifária compensará as perdas de receita de seus grandes cortes em outros impostos.

Ora, embora a compensação seja muito menor do que eles imaginam, o fato é que pelo menos aumentos tarifários levemente regressivos que prejudicam os pobres estão sendo usados para ajudar a financiar cortes de impostos extremamente regressivos para os ricos. Junte-se os dois e se verá que se está diante de políticas muito regressivas; eis que elas aumentarão em muito a desigualdade.

Resumindo: as tarifas de Trump não reduzirão a desigualdade antes da incidência dos impostos e das transferências. Mas eles fazem parte de uma combinação de políticas que aumentará muito a desigualdade após impostos e transferências.