Ser de direita em política

Autor: Matthew McManus [1] (Primeira Parte)

O que significa ser de diteita em política?

É a adesão que define a condição da sociedade e que constitui a sociedade como algo maior do que o “agregado de indivíduos”, tal como a mente liberal a percebe. Os conservadores são céticos em relação às reivindicações feitas em nome do valor do indivíduo, se elas entram em conflito com a fidelidade necessária à manutenção da sociedade. E é assim,  mesmo se se deseja que o Estado (no sentido do aparato do governo) mantenha um controle bem frouxo das atividades dos cidadãos enquanto indivíduos. Pois, a individualidade é também um artefato, uma conquista que depende da vida social das pessoas.

(Roger Scruton – O Significado do Conservadorismo)

A posição de direita na história moderna

Desde pelo menos a eleição de Trump em 2016, a questão do que constitui a direita em política – e o que a distingue do liberalismo e do socialismo – ganhou importância renovada. Na direita política [norte-americana], o termo “liberal” tem sido frequentemente usado em sentido pejorativo, como se fosse um insulto – eis que tem apenas menos veneno do que o termo “socialista”. No entanto, muitos intelectuais proeminentes da direita política (…) orgulhosamente se identificam como “liberais clássicos”, especialmente quando fazem discursos inflamados sobre alguma suposta doutrinação de estudantes universitários.

Às vezes, os conservadores são retratados como os defensores determinados dos valores liberais tais como a liberdade de expressão e de associação, particularmente quando estão travando batalhas contra a esquerda censuradora e sua crescente lista de aliados culturais e de mercado. Há também um movimento crescente de pensadores conservadores “pós-liberais” cada vez mais influentes. Eles se ressentem dos esforços alegados ou reais da esquerda em censurá-los, embora sejam, de longa data, notavelmente menos apegados a ideais liberais, tais como a economia de mercado e a neutralidade da lei.

Pensar sobre esse problema exige que se considere como a direita política é fundamentalmente uma resposta ao projeto moral da modernidade; nos seus termos, a sociedade é formada por pessoas moralmente iguais morais que estão livres para perseguir os seus interesses dentro de instituições políticas participativas. Esse projeto igualitário sempre foi concebido de diferentes maneiras pelas duas grandes doutrinas modernistas, liberal e socialista, ambas as quais se envolveram muitas vezes com formas cruéis de tirania, imperialismo e disciplina carcerária.

Mas o que sempre distinguiu as doutrinas modernistas do liberalismo e do socialismo foi a pressão constante, feita pelos ativistas e até pelos revolucionários, por reformas, insistindo sempre que os compromissos com a desigualdade e a falta de liberdade eram intoleráveis e mesmo malignos. Seria ir longe demais chegar à conclusão, com base num hegelianismo equivocado de esquerda, que existe um télos inevitável ou um percurso histórico que se dirige no sentido da realização do projeto modernista. E, de fato, em grande parte por causa dos esforços muitas vezes bem-sucedidos da direita política, o projeto da modernidade foi sempre contestado, estando sujeito a movimentos de ida e volta. Mas Will Kymlicka está amplamente certo de que ele avançou, mesmo que tenha avançado de modo hesitante; por isso, liberais e socialistas têm motivos para aplaudir esse desenvolvimento.

A direita política não tem o que comemorar. Isso ocorre porque a direita política se sente mais confortável com a ideia de que as pessoas são desiguais e que, portanto, elas devem ser tratadas de forma desigual. Existem, contudo, formas mais e menos extremas dessa posição; as formas mais moderadas de conservadorismo, baseadas em liberdade ordenada, sobrepõem-se às variantes de direita do liberalismo.

No entanto, quanto mais os liberais estão convencidos de que a igualdade moral deve implicar altos níveis de paridade material, maior a probabilidade de que se afiliem aos ideais socialistas. Ora, eu acho que, em última análise, a ideia de igualdade moral exige que se garanta a todos os indivíduos um conjunto comparável – embora não igual – de capacidades necessárias para viver uma vida boa. Os liberais às vezes gravitam mais em direção a essas posições progressistas.

Modernidade e a ideia de igualdade moral

A relação histórica entre igualdade moral, liberalismo e socialismo é complexa, mas pode ser resumida de forma relativamente simples. Em O Significado do Conservadorismo, Roger Scruton apresenta a questão clássica envolvida já que discute aí o individualismo liberal, mostrando a sua posição cautelosa em relação à noção de “fidelidade”.

Em outro lugar, ele estipula que o individualismo precisa ser apresentado como uma “atitude de respeito à existência individual; eis que ele consiste numa tentativa de deixar tanto espaço moral e político em torno de cada pessoa quanto for compatível com as demandas da vida social. Como tal, julgou-se muitas vezes que implicava um grau moderado de igualitarismo.

Ora, por sua própria natureza, o respeito que o liberalismo mostra pelo indivíduo se aplica a cada indivíduo igualmente. Scruton está certíssimo neste ponto, pois, como se verá, a direita insiste que o respeito político e o poder de agir não são devidos a todos os indivíduos igualmente. Ora, esse ponto está na raiz da disputa da direita conservadora com o liberalismo e o socialismo.

Claramente, a ideia de igualdade moral tem raízes mais profundas e menos seculares do que o liberalismo. O imperador budista Ashoka refletiu sobre o ideal de aprender com todas as fontes de sabedoria, independentemente de onde elas tenham vindo. Os estoicos romanos, que influenciaram profundamente liberais como Adam Smith, insistiam sempre que o escravo e o imperador vivem, envelhecem e morrem da mesma forma. E os melhores elementos da tradição escolástica cristã ensinavam que todos os filhos de Deus eram iguais aos seus olhos.

Contudo, essas doutrinas estão em confronto com um consenso mais amplo no âmbito da opinião erudita de que as pessoas são, por natureza ou por decreto divino, fundamentalmente desiguais. Consequentemente, é inevitável e mesmo desejável que a sociedade reflita essas desigualdades na forma como aloca a riqueza e o poder entre as pessoas.

Platão, em A república, distinguiu entre pessoas com almas de bronze, prata e ouro e insistiu que apenas as últimas estavam aptas a governar. Se as almas erradas governassem de alguma forma, a cidade estaria condenada. Aristóteles classificou as pessoas de acordo com suas virtudes e capacidades naturais, declarando de modo infame que muitos eram “escravos naturais”, apenas adequados em grande parte para o trabalho manual já que, assim, eles permitiriam aos seus superiores perseguirem fins mais elevados e virtuosos.

Na era medieval e no início da era moderna, as defesas religiosas do feudalismo e do absolutismo posterior enfatizaram o caráter divino da estratificação social. Sir Robert Filmer, no livro Patriarca,que foicriticado de forma contundente por ninguém menos que John Locke, defendeu o direito divino dos reis por meio de uma mistura de naturalidade e necessidade: argumentou que Deus concedeu autoridade inicial a uma série de patriarcas bíblicos, que a transmitiram por meio de seus descendentes biológicos.

Já os autores de tendências liberais, assim como os liberais propriamente ditos, atacaram essas posições de vários ângulos diferentes, tentando minar na verdade a alegação de que a sociedade deveria manter distinções calcificadas de riqueza e poder. Na base da argumentação estava a afirmação de que, pelo menos no início proverbial, todos os seres humanos eram moralmente iguais em princípio.

Isso não significa que todos sejam iguais de fato na sociedade, mas problematiza a ideia de que a estratificação social se encontra estabelecida de uma vez por todas por ordenamento natural ou divino. Hobbes – que não era um liberal, mas que se tornou profundamente influente nessa tradição – zombou do etos aristocrático de Platão, assim como da estratificação social de Aristóteles, considerando ambos como absurdos. E insistiu que, no estado de natureza, todos são visivelmente iguais nas faculdades corporais e, em especial, nas faculdades mentais.

Contra os antigos, Hobbes insistiu no seguinte: “no que se refere às faculdades, acho que os homens são ainda mais iguais nas da mente do que nas assentadas na força corporal”. No Segundo Tratado de Governo, Locke reiterou a sua crítica a Robert Filmer, insistindo que o estado de natureza “é também um estado de igualdade em que ninguém tem mais poder e autoridade do que qualquer outro; pois é simplesmente óbvio que todas as criaturas da mesma espécie e de mesmo status nasceram com as mesmas vantagens naturais, sendo capazes de usar as suas habilidades de modo igual…”

Mais tarde, em Vindicação dos Direitos das Mulheres, Mary Wollstonecraft repreendeu muito eloquentemente seus colegas liberais por não aplicarem tais princípios de modo consistente; considerando, então, a tese de que “a liberdade é a mãe de todas as virtudes, argumentou da seguinte forma: se as mulheres, por sua própria constituição, são escravas, e não têm permissão para respirar o ar revigorante e agudo da liberdade, então elas têm de definhar sempre como seres exóticos ou serem consideradas como belas falhas na natureza.

Este último ponto nos leva à característica mais nociva encontrada na história dos liberalismos. Trata-se precisamente da egoística tendência de seus expoentes de pregar a igualdade moral apenas para considerar depois exceções gigantescas onde quer que se mostrem convenientes. Os fundadores americanos são um exemplo espetacular desse tipo de incongruência; eis que muitos deles eram proprietários de escravos. O piedoso democrata Thomas Jefferson, por exemplo, não viu nada de errado no abuso sexual. O teórico pós-colonial Uday Mehta chamou a atenção para o fato de que J.S. Mill, um socialista liberal altamente admirável na maioria dos outros aspectos, adotou visões preconceituosas em relação aos povos colonizados do Império Britânico”.

Estes se comparam desfavoravelmente ao conservador Edmund Burke, que era mais sensível às diferenças culturais encontradas no subcontinente indiano. De modo ainda mais notável, o compromisso com a igualdade moral dos liberais não implicava num comprometimento com a igualdade material ou com uma mesma política para todos.

Ecoando C.B. Macpherson, pode-se dizer que a maioria dos primeiros liberais eram “individualistas possessivos”. Eles acharam que as antigas hierarquias naturalizadas deveriam dar lugar a uma sociedade mais dinâmica, onde a estratificação social seria determinada pela competição no mercado, em vez de algo mais arbitrário que se devia ao privilégio aristocrático.

Essa postura persiste até os dias atuais. Eis que o neoliberalismo se constitui como a forma mais radical já vista de individualismo possessivo. Os individualistas possessivos liberais podem ter aceitado a necessidade de acabar com a discriminação legal contra grupos que os impediam de participar como pessoas formalmente iguais nos mercados. Mas eles geralmente são cautelosos em tomar muitas medidas para compensar membros de grupos discriminados com base na “justiça social” abstrata. Ademais, eles absolutamente não aceitam que haja qualquer direito à provisão de altos níveis de bem-estar material para todos por meios políticos, pois isso supostamente violaria os mecanismos eficientes do mercado.

Entre os séculos XIX e XX, o socialismo emergiu como a outra grande doutrina modernista, oferecendo críticas prementes ao liberalismo e ao capitalismo, cuja relevância persiste até hoje. Os primeiros socialistas como Robert Owen e St. Simon foram principalmente figuras do início do Iluminismo. Eles elaboram projetos magníficos, mas muitas vezes fantasiosos, os quais descreviam como a propriedade poderia ser distribuída de maneira mais igualitária, preservando a eficiência econômica e o desenvolvimento. Eles estavam motivados em primeiro lugar, como diria Terry Eagleton, pelo sentimento de que era errado admitir “que a maioria das pessoas vivas, ou já mortas, passassem as suas vidas numa labuta miserável, infrutífera e incessante”. Na época de Mill e Dickens, essas objeções começaram a ganhar força.

 Mas, é claro, a objeção mais substancial veio de Karl Marx, cuja crítica histórica da economia política permanece, em alguns aspectos, o clímax do projeto modernista. Ele vincula fortemente a liberdade humana à emancipação da necessidade, não apenas para alguns, mas para todos; a análise científica da dinâmica do capitalismo mostra, segundo pensa, que esse sistema não só tem uma impressionante capacidade produtiva, mas também que carrega dentro de si as sementes de sua própria destruição. O marxismo tornou-se a principal perspectiva teórica para a maioria dos principais movimentos e partidos socialistas no final do século XIX; muitas vezes eles realizaram mesmo certas reformas importantes.

Mas sua reputação foi seriamente manchada pelos movimentos totalitários na União Soviética, China, Camboja e em outros lugares, que apelaram ao seu legado para promover a tirania ao mesmo tempo em que louvavam o seu pensamento como portador de liberdade. Com o colapso do Império Soviético em 1989, muitos passaram a pensar que os dias do socialismo estavam contados. Contudo, desde então, ele tem desfrutado de um ressurgimento em popularidade à medida que as desigualdades e vulgaridades do neoliberalismo se tornaram cada vez mais examinadas.

É surpreendente, mas, em alguns desses pontos, liberais e socialistas podem encontrar um terreno comum com os conservadores, suscitando até mesmo alianças de conveniência. Para muitos socialistas e conservadores, a ênfase liberal no individualismo atomístico é uma mania, uma concepção bastarda da verdadeira natureza humana. Foi assim que o individualismo como mera ideologia, difundida por instituições e políticas, gerou um profundo sentimento de alienação e distanciamento.

A direita política encontrou até mesmo alguns pontos salientes de inspiração na obra do “diabo” Marx. Na década de 1920, Carl Schmitt achou a ênfase do marxismo no conflito de classes e em um mundo utópico ainda por vir mais inspirador do que a tagarelice interminável do parlamentarismo liberal. Conservadores pós-liberais, como Patrick Deneen e Peter Lawler, ainda que a contragosto, reconheceram como verdadeira a afirmação marxista de que o capitalismo é um “modo de produção revolucionário” que invariavelmente derruba as tradições culturais e as antigas hierarquias nas quais era inicialmente parasitário.

Por outro lado, liberais de direita como F.A. Hayek e Michael Oakeshott enfatizaram, pensando ainda nesse caráter disruptivo, a importância da lei, da ordem e da tradição para a estabilização das sociedades capitalistas; eis que proporcionam um senso de apego humanístico acima e além das relações de mercado.

Os liberais, como Alexis de Tocqueville em Democracia na América, às vezes se preocuparam com a possibilidade de que o liberalismo pudesse ceder a um impulso nivelador que, gradualmente, poderia corroer a busca pela excelência e pelo status dos quais dependiam o progresso social e a alta cultura. Julgaram, então, que essa eventualidade precisaria ser combatida por meio de mecanismos quase aristocráticos e competitivos capazes de motivar o esforço.

Mas tais afinidades não significam que liberais e socialistas sejam conservadores. A razão é que, para ambas as doutrinas modernistas, manter algum compromisso entre os princípios de igualdade e de liberdade sempre foi crucial. O próprio Hayek, em seu escrito “Por que não sou conservador”, afirmou que os liberais de direita devem rejeitar a posição conservadora…” segundo a qual, em qualquer “sociedade, existem pessoas reconhecidamente superiores cujos padrões de conduta, valores e posição herdados devem ser protegidos e que elas devem ter uma influência maior nos assuntos públicos do que outros”.

É, pois, essa rejeição de que existem “pessoas reconhecidamente superiores” que faz com que alguém se comprometa com o projeto modernista e não com a direita política.


[1] Professor de Ciência Política da Universidade de Michigan. Apresenta-se aqui uma tradução da introdução do livro The Political right and equality- Turning back the tide of egalitarian modernity. Routledge, 2024, em que a posição de direita no espectro politico é explicada.