A economia neoclássica é incapaz de compreender a politica tarifária de Trump

O texto em sequência aponta para “a incapacidade da economia convencional de explicar a desigualdade doméstica e a competição internacional entre as nações” e, assim, a política tarifária de Trump. A perspectiva dessa crítica, contudo, não parecer ser a dos países subjugados. De qualquer modo, ela admite implicitamente que as relações entre países portam contradições, as quais se manifestam como interações que visam a cooperação e/ou o conflito.

Autor: Branko Milanovic

Blog do autor – 19 de maio de 2025 – Título original: Nothing (meaningful) to say.

Em um excelente artigo recente “Guerra e política internacional” (de acesso livre), John Mearsheimer apresenta uma versão sucinta da teoria realista das relações internacionais, aplicada ao mundo multipolar atual. Ele se concentra na existência inevitável da guerra devido à forma como o sistema internacional está estruturado: vem a ser uma anarquia em que nenhum país desfruta do monopólio do poder semelhante ao que o Estado tem na política interna; eis que nele não há  uma instância capaz de impor o cumprimento das regras.

Ele critica os pensadores liberais por sua ingenuidade de acreditar (na década de 1990) que as guerras terminariam e a política das grandes potências se tornaria obsoleta. (Visão ingênua semelhante também foi ridicularizada por Karl Polanyi em A Grande Transformação.) Mearsheimer explica isso em parte pelo fato de que muitos pensadores liberais atingiram a maioridade intelectual durante o momento unipolar em que tais sonhos, pouco afeitos às realidades históricas, podiam ser mantidos.

De passagem, Mearsheimer faz uma observação que é extremamente importante para os economistas. Ele escreve:

Os economistas convencionais podem se concentrar em facilitar a competição econômica dentro de um sistema mundial fundamentalmente cooperativo porque quase não prestam atenção sobre como os Estados pensam a própria sobrevivência na anarquia internacional, na qual a guerra é sempre uma possibilidade.

Assim, conceitos como competição por segurança e equilíbrio de poder, que são fundamentais para o estudo da política internacional, não têm lugar na economia convencional… Além disso, os economistas tendem a privilegiar os ganhos absolutos de um estado, não seus ganhos relativos, o que significa que eles ignoram amplamente o equilíbrio de poder.

A incapacidade dos economistas de discutir significativamente as atuais relações econômicas internacionais tornou-se óbvia em suas tentativas, às vezes patéticas, de dar lições à liderança dos EUA em Economia Básica, sem perceber que a liderança dos EUA, sob Trump I e II e Biden, não estava envolvida em uma política para melhorar a posição dos consumidores ou trabalhadores dos EUA, mas para desacelerar a ascensão da China visando manter a posição hegemônica global americana.

Essa incapacidade de se envolver com a realidade surge de uma posição metodológica extremamente reducionista, onde o bem-estar de uma pessoa é uma função apenas da própria renda absoluta. Sob tal suposição, torna-se impossível entender por que um país como os Estados Unidos se envolveria em uma guerra tarifária; por que, ademais, usaria outras políticas que reduzem o bem-estar de seus próprios cidadãos (enquanto, ao mesmo tempo, também reduzem o bem-estar na China e no resto do mundo).

Trata-se de uma política que não implica apenas um jogo de soma negativa, mas é projetada para ser uma política de perde-perde, isto é, que pode piorar tanto o originador quanto o alvo da política em termos econômicos. Ora, isso não faz absolutamente nenhum sentido para esses economistas.

Mas no mundo real, ela faz sentido. Os economistas não podem compreendê-la por que a sua caixa de ferramentas metodológicas é incompleta e obsoleta: ela não leva em conta as posições relativas, isto é, a importância, o prazer ou a utilidade que os indivíduos – e ainda mais os países e as suas elites dominantes – derivam por serem mais ricos ou mais poderosos do que outros.

Se eles adicionassem mais argumentos em suas funções de utilidade, incluindo assim as posições relativas, seja da renda própria de um em relação aos outros dentro do próprio país, seja de um poder em relação a outros, eles teriam algo a dizer que fosse mais significativo. Como não o fazem, ficam reduzidos à repetir interminavelmente certas trivialidades.

Poder não se refere apenas ao bem-estar de alguém; poder consiste em que o bem-estar de alguém é maior do que o de outros concorrentes. A renda absoluta de alguém pode ser menor em um estado alternativo do mundo, mas se a diferença entre a renda dele e a dos outros for maior (e a seu favor), ele pode preferi-la à alternativa em que ambos estariam melhor.

A política econômica que o governo dos EUA está perseguindo agora encontra-se marcada exatamente pelo perde-perde. O requisito de segurança nacional se impõe à elite política dos EUA; é por isso que essa elite passa a julgar que os custos impostos à China (em termos de taxa de crescimento mais lenta, atraso no desenvolvimento tecnológico etc.) serão maiores do que os custos sofridos internamente.

Um artigo recente publicado pela Foreign Affairs de Stephen G. Brooks e Ben A. Vagle apresenta uma série de cenários os quais foram elaborados pelo Center for Strategic and International Studies de Washington. Supondo que estejam corretos, nota-se que eles descobrem em quase todos os casos que a política de perde-perde é mais prejudicial para a China do que para os Estados Unidos. Uma conclusão semelhante foi alcançada por um centro de pesquisa sediado em Pequim, o qual foi citado pelo Wall Street Journal (“Beijing Braces for a Rematch of Trump vs. China): a perda de PIB da China seria três vezes maior do que a dos EUA.

Ora, é possível duvidar que esse possa ser, realmente, o resultado da atual política. A discussão legítima entre economistas e cientistas políticos deve, portanto, se concentrar em saber se a política de perde-perde melhoraria ou pioraria a posição relativa dos EUA em relação ao seu concorrente da Ásia. Pode-se, por exemplo, examinar a tentativa dos EUA de reduzir os canais de transmissão de alta tecnologia para a China; ao fazê-lo, pode-se constatar que essa iniciativa favoreceu em última análise a própria China pois  a levou a dobrar as fontes domésticas de desenvolvimento de alta tecnologia. A iniciativa norte-americana, portanto, não desacelerou a economia concorrente; ao contrário, ajudou a forjar a recuperação chinesa.

Pode-se também dizer que a China pode, sob pressão, diversificar suas fontes de abastecimento e se tornar mais resiliente a choques no longo prazo; ou que pode fazer esforços mais sérios para aumentar o consumo doméstico. Esses são tópicos legítimos e significativos para discussão. Mas a política de perde-perde deve ser tomada como um ponto de partida.

Biden e Trump sempre estiveram engajados em fazer uma política exterior benéfica para os EUA. Ao avaliá-la nos termos em que ela é apresentada ao público, ou seja, como uma política que visa “melhorar a posição do trabalhador americano”, que vai “trazer de volta empregos para os Estados Unidos”), cai-se em erro e se mostra trivialmente que ela trará os resultados diferentes dos esperados.

Trump e Biden sempre defenderam as suas políticas alegando que elas seriam impulsionadas pelos interesses econômicos de alguns segmentos da população dos EUA. Nenhum dos dois políticos estão até mesmo dispostos a sacrificá-las já que são motivadas principalmente pelo desejo de prejudicar a China mais do que os EUA.

Os comentaristas econômicos, portanto, criticam algo que é irrelevante, ou seja, que não diz respeito ao verdadeiro objetivo da política posta em prática – e isso pode fazer com que apareçam como bobos. Eles acreditam mostrar que as elites dirigentes, ao dispensarem as lições elementares de economia, estão equivocadas, enquanto, na verdade, simplesmente revelam a inadequação de seu próprio aparato metodológico.

Essa abordagem extremamente reducionista da economia neoclássica e do neoliberalismo se revela como inadequada no caso aludido. Contudo, a razão pela qual a inadequação apontada por Mearsheimer atraiu minha atenção é porque ela é paralela à inadequação que os economistas convencionais mostram em questões de compreensão e estudo da desigualdade.

A questão é a mesma: se se assume que o único argumento na função de utilidade dos indivíduos é o seu nível de renda, e que a renda relativa (isto é, sua posição em relação aos outros) não importa, então a desigualdade, que por definição lida com posições relativas, está implicitamente excluída da análise. No melhor dos casos, será relegada, como foi em livros didáticos famosos, às notas de rodapé e aos anexos. Se a economia, além disso, imaginar que as classes sociais não existem, a desigualdade será duplamente ignorada.

Essa ignorância deliberada não vem a ser, como argumentei no meu livro Visões da Desigualdade, uma anomalia na economia neoclássica. Ela está profundamente enraizada na metodologia dominante. Enquanto a economia convencional não abandonar a sua visão reducionista da natureza humana e o seu esquecimento das classes, ela não terá quase nada significativo a dizer sobre as desigualdades dentro das sociedades, nem sobre a economia internacional em curso. Eis que as grandes potências usam as ferramentas econômicas que possuem para enfraquecer umas às outras.