Sobre as origens do dinheiro

Autor: Michael Hudson [1]Counterpunch – 7 de março de 2025

O final do século XIX viu uma linhagem de economistas, principalmente alemães e austríacos, criar uma mitologia sobre as origens do dinheiro, que ainda é repetida nos livros didáticos de hoje. Para eles, o dinheiro se originou apenas na forma de mais uma mercadoria que era trocada; o metal foi a mercadoria preferida porque não é perecível (e, portanto, é passível de ser guardado), pode ser padronizado (apesar da possibilidade de fraude se não for cunhado), podendo, ademais, ser facilmente divisível. Supõe-se, assim, que a prata foi usada em pequenas trocas de mercado, o que é irreal, dado o caráter grosseiro das balanças antigas, as quais era muito imprecisas para pesos de alguns gramas.[1]

Essa mitologia não reconhece que o governo possa ter desempenhado qualquer papel como inovador, patrocinador ou regulador monetário, ou ainda como entidade que dá valor ao dinheiro ao aceitá-lo como um veículo para pagar impostos, comprar serviços públicos ou fazer contribuições religiosas. Também é minimizada a função do dinheiro como padrão de valor para denominar e pagar dívidas.[2]

Embora não haja evidências empíricas para esse mito segundo o qual o dinheiro surge do escambo de mercadorias, ele sobreviveu em bases puramente hipotéticas por causa de seu viés político que serve à escola austríaca antissocialista e aos subsequentes interesses dos credores que apregoam o “livre mercado” e se opõem à criação de dinheiro pelo governo.

O dinheiro como parte do sistema social

Como um dos fundadores da antropologia econômica, Heinrich Schurtz apreendeu as origens do dinheiro como muito mais complexa do que aquela apresentada na visão “econômica” acima delineada. O dinheiro não surgiu simplesmente como resultado da ida das famílias ao mercado para trocar.

Pesquisando uma ampla gama de comunidades indígenas, em seu livro de 1898, An outline of the origins of Money (Um esboço das origens do dinheiro), ele apresentou o dinheiro e o comércio como parte de um sistema institucional mais amplo, no qual os membros se empenhavam na busca por posição social e riqueza. Schurtz mostrou que os sistemas monetários evolveram a partir de uma ampla gama de funções e dimensões sociais, as quais a teorização “econômica” de hoje exclui como externa ao seu escopo analítico.

Apresentando o dinheiro no contexto do sistema geral de organização social de certas comunidades, Schurtz alertou: se se separa os “problemas sociológicos e econômicos do ambiente em que surgiram… sua terra natal… apenas se apreende uma parte de todo o organismo e não se consegue entender as forças vitais que os criaram e os sustentaram”.

Supondo que as comunidades indígenas preservaram tradições presumivelmente arcaicas, Schurtz viu o comércio com estranhos como aquilo que levou a riqueza a assumir uma forma cada vez mais monetária, a qual, aliás, corroía o equilíbrio das relações sociais internas. Contudo, Schurtz considerou que a ligação entre dinheiro, dívida e posse da terra estava além do escopo em que os seus estudos se concentravam. Ademais, ele não mencionou as contribuições para festas em grupo (que o historiador Bernard Laum sugeriu como o germe do qual os óbolos e dracmas gregos podem ter evoluído).[3]

Note-se, inicialmente, a diferença entre riqueza e dinheiro: as formas paradigmáticas de riqueza indígena eram joias e outros itens de adorno pessoal, decorações e troféus, especialmente produtos exóticos estrangeiros na forma de conchas e pedras preciosas ou itens com uma longa e prestigiosa história que dava status a seus usuários ou proprietários. Nem sempre, entretanto, eram objeto de monetização: “contas feitas de argila e pedra” – escreveu em seu livro – “também eram feitas por povos indígenas e amplamente utilizadas como ornamentos, mas raramente como dinheiro”. Eis que tinham um valor de troca, tal como hoje, mas isso não os tornava um meio monetário de troca.

A questão vem a ser saber como uma economia monetária difere do escambo e da circulação e da troca de itens úteis e valiosos no interior de uma economia social. A troca e a riqueza indígenas eram formas precursoras, uma semente arcaica que levou às “formas mais ideais” de dinheiro?

A distinção de Schurtz entre dinheiro interno e dinheiro externo

A troca com pessoas de fora do grupo social era tipicamente conduzida por líderes políticos, os quais figuravam como o rosto das comunidades para o mundo exterior. Esse comércio (e o pagamento de tributos) envolvia relações fiscais e sociais que implicavam em usos de dinheiro que eram diferentes daqueles inerentes à economia doméstica; contudo, acabavam se misturando com elas dando ao dinheiro um caráter híbrido. Schurtz distinguiu o que chamou de dinheiro externo do dinheiro interno; para ele, entretanto, o primeiro podia dominar o sistema monetário interno.

“O dinheiro”, escreveu ele, originou-se “de duas formas distintas: aquela que funciona como base da riqueza e medida do valor e serve a fins sociais no interior da comunidade tribal é, em suas origens, totalmente diferente daquela que atua como meio de troca entres as tribos; esta última, eventualmente, se transforma em uma mercadoria universalmente aceita, ou seja, em uma espécie de moeda”.

O dinheiro interno era usado dentro das comunidades seja para a troca seja para a acumulação de riqueza. O dinheiro externo era usado nas transações externas. E aquele que funcionava “fora” estava submetido a um conjunto de práticas, as quais regiam o comércio fora da jurisdição da governança local.[4]

A distinção de Schurtz mostrou uma característica das práticas de comércio que continuou a existir no mundo de hoje: o contraste entre o intercâmbio doméstico e o intercâmbio com pessoas de fora da comunidade. O primeiro estava em geral sujeito a freios e contrapesos que visavam proteger as necessidades básicas dadas as hierarquias de status; assim, ele tendia a limitar as acentuadas disparidades de riqueza.

Já o segundo, muitas vezes conduzido em ilhas, áreas de cais ou outros locais socialmente fora dos limites da comunidade, estava sujeito a regras padronizadas mais impessoais. Em todo o mundo antigo, encontramos entrepostos insulares, convenientemente localizados, os quais era usados para realizar comércio com estranhos.

Essas ilhas mantinham o contato com o exterior à distância para evitar que as relações mercantis perturbassem o equilíbrio econômico local. O Egito restringiu os contatos estrangeiros à região do Delta, onde o Nilo desaguava no Mediterrâneo. Para os etruscos, a ilha de Ischia/Pithekoussai tornou-se a base para mercadores fenícios e gregos lidarem com o continente italiano nos séculos VIII e VII aC. Os alemães do norte parecem ter conduzido o comércio de âmbar do Báltico através da ilha sagrada de Helgoland.

Essa distinção podia, entretanto, ser borrada: “o surgimento de sistemas monetários internos específicos parece advir de uma inclinação de transformar dinheiro externo em dinheiro interno, ou seja, de empregar dinheiro não para facilitar o comércio externo, como se poderia supor de acordo com as teorias comuns, mas sim para obstruí-lo”, concluiu Schurtz.

No capítulo “metal como ornamento e dinheiro”, ele apontou que foi o comércio exterior que levou o metal a se tornar a principal forma de dinheiro. “Enquanto a maioria das variedades de dinheiro ornamental perde gradualmente seu significado, uma delas, o dinheiro metálico se impõe cada vez mais, deslocando os seus concorrentes. Ele mostrou, assim, que “o dinheiro metálico, ou seja, aquele feito de metais nobres, não funciona como puro signo, pois, é ao mesmo tempo uma mercadoria valiosa, cujo valor depende da oferta e da demanda. Em sua forma madura, portanto, incorpora em si mesma a fusão do dinheiro interno com o dinheiro externo, do sinal de valor e propriedade valiosa com os meios de troca.[5]

Essa fusão de dinheiro interno e externo está documentada já no terceiro milênio a. C., no Oriente Próximo. O dinheiro de prata foi usado para o comércio de longa distância e passou a ser usado também nas relações econômica domésticas, enquanto o grão permaneceu o veículo monetário para denominar a produção agrária, impostos e serviço da dívida sobre a terra, e para distribuição ao trabalho dependente nos templos e palácios da Mesopotâmia.

Schurtz também questionou se o domínio do dinheiro metálico surgiu espontaneamente em muitos lugares ou se houve uma difusão a partir de uma origem singular, ou seja, “se essa instituição cultural cresceu in situ ou foi transferida de outras regiões por meio da migração e do contato entre sociedades”. A difusão dos pesos na mesopotâmia partiu de certos locais em que se usava a prata; a sua disseminação deveu-se à prática existente nessa região de definir as taxas de juros simplesmente para facilitar o cálculo em termos do sistema aritmético fracionário local.

Contrapesos para evitar a concentração egoísta de riqueza

O que parece ter se desenvolvido espontaneamente foram certas atitudes sociais e políticas para evitar que a concentração de riqueza prejudicasse o equilíbrio econômico. A concentração de riqueza, especialmente quando privava os agricultores de seus meios de subsistência, violava a ética da ajuda mútua que as economias com baixo excedente precisam manter como condição para sua resiliência.

Tomando dinheiro como parte de um contexto social geral, Schurtz conseguiu mostrar “a transformação social que resultou da monetização do comércio e da busca comercial pelo lucro, engendrando assim a “ganância”:

“À medida que todo mundo passa a ser compelido a participar da competição por propriedade crescente, cada um será puxado para o vórtice criado por novos centros emergentes de poder e propriedade; assim, ele precisará trabalhar duro para poder viver. Então, para o proprietário, nenhum limite temporal restringe sua visão sobre o aumento perpétuo de sua riqueza”.

Schurtz caracterizou a mentalidade econômica como um impulso para “a acumulação ilimitada de bens móveis”, a serem repassados aos filhos, levando à criação de uma classe hereditária rica. Se as sociedades arcaicas tivessem essa ética, as civilizações antigas poderiam ter decolado? Como eles impediram que o crescimento da riqueza fomentasse uma oligarquia que buscava aumentar sua riqueza às custas da comunidade em geral e de sua resiliência?

Schurtz notou em suas investigações que as comunidades indígenas normalmente evitavam esse destino moldando um sistema de valores sociais que impedia que a riqueza fosse usada para alcançar o poder predatório de uns sobre os outros. Ele citou vários exemplos em que “imensos tesouros muitas vezes se acumulam sem reentrar nas transações da vida diária”. Uma maneira difundida de fazer isso era simplesmente enterrar riquezas.

“O homem primitivo”, escreveu ele, “acreditava que terá acesso a todos os bens que lhe foram dados na sepultura, mesmo na vida após a morte. Desse modo, ele também não conheceu limites para a aquisição. Levar a riqueza com ele para usar na outra vida evitava que a riqueza acumulada fosse herdada “e se tornasse um perigoso instrumento de poder” convertendo-se em dinástica; em última análise, operando “na crença de que o falecido não abre mão de seus direitos de propriedade, mas zelosamente guarda sua propriedade para garantir que nenhum herdeiro faça uso dela”.

Uma remoção menos destrutiva da riqueza de seus proprietários foi criar uma ética que pressionava os indivíduos do grupo a colaborarem: estes ganhavam status e aclamação popular quando acumulavam riqueza não para si, mas para doar. Schurtz escreveu:

“Os membros do antigo comunalismo permanecem vivos o suficiente por muito tempo para bloquear efetivamente as tentativas de acumular a maior quantidade possível de ativos em uma única mão. E em lugares sem um sistema real de dívida e juros, o indivíduo poderoso, em cuja casa fluem os tributos do povo, tem de fato pouca escolha a não ser ‘presentear’ com base em sua riqueza: em outras palavras, permitir que o povo participe de suas indulgências”. Tal indivíduo alcança renome filantrópico distribuindo generosamente suas posses a “seus amigos e seguidores, conquistando seus corações e, assim, estabelecendo o poder real baseado na devoção leal”.

Uma prática difundida era celebrar casamentos, funerais e outros ritos de passagem, proporcionando grandes festas. Este “extraordinário meio de destruição e esbanjamento de bens valiosos, particularmente gado e alimentos, durante as grandes festas dos mortos que evoluíram de sacrifícios e são, entre alguns povos, não apenas um obstáculo efetivo à acumulação de riquezas, mas se transformaram em calamidades econômicas” quando as famílias se sentem obrigadas a contrair dívidas para sediar tais exibições extravagantes.

Oficiais religiosos e templos muitas vezes desempenhavam um papel em tais rituais. Observando que “dinheiro, comércio e religião tinham um bom relacionamento entre si na antiguidade”, Schurtz citou a prática de doar riquezas para templos ou para os seus sacerdócios. Mas ele reconheceu que isso poderia permitir que eles “se tornassem dominantes por meio da propriedade do dinheiro” sob seu controle.

“As contramedidas contra a acumulação de riqueza geralmente não perduraram”, escreveu Schurtz. “Certos tipos de propriedade parecem ter favorecido diretamente a ganância, especialmente a pecuária, que pode literalmente se transformar em um vício em acumulação.” Ele descreveu os valores comunalistas de ajuda mútua como tendendo a entrar em colapso à medida que as economias se polarizavam com o aumento da riqueza comercial.

Schurtz também observou que os controles sociais sobre a busca de riqueza pessoal não se aplicavam a economias que desenvolveram um “sistema de dívida e juros”. A riqueza na forma de créditos monetários sobre os devedores não podia ser enterrada e dificilmente poderia ser redistribuída para a população em geral, cujos membros normalmente eram devedores do crescente interesse dos credores. A única maneira de evitar que tais dívidas polarizassem a sociedade era cancelá-las. Isso é o que os governantes do Oriente Próximo fizeram.

Começando com o início dos registros de dívidas c. 2500 a. C. na Suméria, e continuando pela Babilônia, Assíria, até seus vizinhos, e até o início do primeiro milênio a. C., os governantes anularam as reivindicações financeiras dos devedores agrários. Isso impediu que os credores concentrassem dinheiro e terras em suas próprias mãos. Pode-se dizer que esses cancelamentos de dívidas e redistribuições de terras foram a alternativa do Oriente Próximo para abalar a acumulação de riqueza material e, assim, para preservar o equilíbrio na sociedade. Esses atos reais não destruíram a riqueza física, mas simplesmente eliminaram as despesas gerais da dívida para manter a posse generalizada da terra e a liberdade para a população em geral.

O cancelamento da dívida agrária era politicamente viável porque a maioria das dívidas pessoais era devida aos palácios ou aos templos ou ainda aos funcionários desses centros de poder. A prática atestada parecia tão impensável quando os documentos que a comprovavam começaram a ser traduzidos por volta da virada do século passado; assim, os primeiros leitores mal podiam acreditar que eles realmente eram aplicados na prática. A tradução francesa feita por François Thureau-Dangin da proclamação do governante sumério Enmetena (c. 2400 a. C.), em 1905, foi considerada por muitos observadores como utópica e socialmente perturbadora para ter sido seguida na prática.[6]

Mas como muitas dessas proclamações – junto com ações judiciais nas quais os juízes expunham os detalhes – foram encontradas, estendendo-se continuamente ao longo de milhares de anos, que não há dúvida de que esses atos de fato reconciliaram o acúmulo de riqueza monetária com a resiliência social, bloqueando a criação de oligarquias predatórias como as que surgiriam na Grécia e Roma clássicas e de fato sobreviveriam no mundo de hoje.

Inovações monetárias na Idade do Bronze

A documentação econômica compulsada por Schurtz em sua época foi capaz de rastrear a prática monetária apenas até a Grécia e Roma clássicas. Ela suscitou a crença geral de que tais práticas devem ter evoluído em povos indo-europeus. Marcel Mauss logo trataria a troca de presentes da tribo Kwakiutl do noroeste canadense do Pacífico (com sua superioridade competitiva) como o protótipo da ideia de cobrar juros. Mas os juros monetários têm uma taxa estipulada específica, com pagamentos devidos em datas periódicas específicas definidas por contratos escritos. Essa prática surgiu na Suméria no terceiro milênio a. C., junto com o dinheiro de prata (e grãos) e com as inovações financeiras, as quais permitiram uma expansão econômica que moldou a evolução econômica ocidental subsequente.

A função do dinheiro como padrão de valor não desempenhou um grande papel na pesquisa de Schurtz. Mas pesquisas arqueológicas subsequentes revelaram que o surgimento do dinheiro como parte de uma estrutura institucional geral não pode ser entendido sem referência à contabilidade escrita dos acréscimos de dívida e das relações fiscais. Dinheiro, crédito/dívida e obrigações fiscais andaram juntos desde as origens dos registros escritos no antigo Oriente Próximo.

Os registros fiscais e financeiros do Oriente Próximo descrevem um desenvolvimento do dinheiro, crédito, endividamento e cobrança de juros que nem a teoria do escambo dos economistas nem os estudos etnográficos de Schurtz haviam imaginado. O dinheiro “mais ideal” da Mesopotâmia evoluiu da organização fiscal da contabilidade e do crédito nos palácios e templos da Suméria, Babilônia e seus vizinhos da Idade do Bronze (3200-1200 a.C.). Essas economias do Oriente Próximo eram maiores em escala e muito mais complexas e multifacetadas do que a maioria das comunidades indígenas pesquisadas por Schurtz.

Em contraste com as comunidades amplamente autossuficientes, o sul da Mesopotâmia foi obrigado a se envolver em comércio em grande escala e de longa distância porque o solo da região carecia de metal, pedra e até madeira de lei. A necessidade de matérias-primas pela região era muito diferente do comércio e da “monetização” de bens de lucro feita pelas comunidades de escala relativamente pequena e autossuficientes estudadas por Schurtz. Diferiam também daquela construídas hipoteticamente por economistas imaginando indivíduos negociando em seu mercado local. O comércio da Mesopotâmia tinha que ir muito além de luxos decorativos pessoais e mercadorias de prestígio ou itens de troféu.

Uma classe mercantil empreendedora era necessária para obter essas matérias-primas, juntamente com uma força de trabalho especializada, que era empregada pelos templos e palácios. Eis que ela produzia a maioria dos artesanatos de exportação, fornecia mão de obra de corveia para trabalhar na infraestrutura pública, servia como casas da moeda e supervisores de pesos e medidas e mediava a maior parte da riqueza monetária e dívidas.

Isso exigia planejamento antecipado e contabilidade para alimentar e fornecer mão de obra em suas oficinas de tecelagem e outros artesanatos e para consignar sua produção a comerciantes para exportação. Calcular o custo de distribuição de alimentos e matérias-primas dentro dessas grandes instituições e avaliar sua remessa de mercadorias para os comerciantes exigia a criação de pesos e medidas padrão como base para esse planejamento futuro. A seleção de unidades monetárias fazia parte dessa padronização de medição de custos e valor.

Isso possibilitou o cálculo da receita, superavit ou déficits, de alugueis esperados, juntamente com demonstrações de lucros e perdas e balanços. A mercadoria típica a ser distribuída era o grão, que servia como padrão de valor para transações agrárias e saldos de crédito que se acumulavam durante o ano-safra para adiantamentos a meeiros, consumo como cerveja e pagamentos a padres para a realização de funções cerimoniais. Seu valor em grãos deveria ser pago na época da colheita.

O cálculo das rações alimentares para distribuição aos vários graus de trabalho (masculino, feminino e infantil) permitiu que os custos fossem expressos em grãos ou em equivalentes de jornada de trabalho.

Schurtz teria chamado esse grão de “dinheiro interno”; teria também considerado como “dinheiro externo” a prata cunhada pelos templos para lidar com o comércio exterior e como a medida básica de valor para transações comerciais com a economia palaciana e para liquidar obrigações comerciais. Isso permitiu que as contas fossem mantidas simultaneamente em prata e grãos.

O resultado foi um padrão monetário duplo de grão e prata, o qual refletia a bifurcação das primeiras economias da Mesopotâmia entre as famílias agrárias na terra (usando grãos como “dinheiro interno”) e a economia palaciana com suas oficinas, comércio exterior e empreendimento comercial associado (usando prata como “dinheiro externo”). Assim, os preços das transações de mercado com pessoas de fora podem variar, mas os preços dos pagamentos de dívidas, impostos e outras transações com grandes instituições foram fixados.

A conclusão de Schurtz de que o crescente domínio do dinheiro comercial tendia a quebrar os freios e contrapesos domésticos que protegiam as comunidades indígenas que ele estudou é de fato o que aconteceu quando as práticas de dívida comercial foram trazidas do Oriente Próximo para as terras do Mar Egeu e do Mediterrâneo por volta do século VIII a. C.

Não tendo nenhuma tradição de cancelamentos de dívidas reais como existia no Oriente Próximo desde o período formativo da dívida com juros, a descontextualização resultante das práticas de crédito fomentou oligarquias financeiras na Grécia e Roma clássicas. Após os primeiros cancelamentos de dívidas e redistribuição de terras por “tiranos” populistas nos séculos VII e VI a. C., as oligarquias clássicas que se seguiram resistiram às revoltas populares exigindo um renascimento de tais políticas.

A dinâmica da dívida que rende juros e as leis pró-dívida do credor das oligarquias credoras da antiguidade clássica causaram polarização econômica que levou a cinco séculos de guerra civil. Essas convulsões não foram o resultado da cunhagem que começou a ser cunhada por volta do século VIII a. C., como muitos observadores do século XIX acreditavam, pensando erroneamente que a cunhagem do mar Egeu foi o primeiro dinheiro metálico. O dinheiro de prata foi a norma por dois milênios em todo o Oriente Próximo, sem causar interrupções como as experimentadas pela antiguidade clássica. O que polarizou as economias da antiguidade clássica foram as leis pró-dívida do credor apoiadas pela violência política, não pelo dinheiro.

Conclusão e Discussão

O ponto de partida de Schurtz consistiu em saber como as comunidades criaram as leis que regem a distribuição de riqueza e de propriedade. Ele via o dinheiro emergindo dessa função institucional com uma ética basicamente comunalista. Uma característica fundamental da resiliência econômica indígena era a pressão social posta sobre os ricos para que eles contribuíssem para o social. Essa foi a condição estabelecida pelos costumes não escritos para permitir que alguns indivíduos e suas famílias se tornassem ricos.

Schurtz e etnólogos subsequentes encontraram uma solução universal para reconciliar a busca de riqueza com a prosperidade em toda a comunidade como sendo a pressão social para que famílias ricas (que era a unidade básica, não indivíduos) distribuíssem sua riqueza aos cidadãos por meio de troca recíproca, troca de presentes, ajuda mútua e outras formas de redistribuição, e proporcionando grandes festas, especialmente para ritos de passagem.

Essa era uma visão muito mais ampla do que a suposição econômica individualista de que a busca de ganhos pessoais e, de fato, o egoísmo eram as forças motrizes da prosperidade geral. A ideia de monetizar a vida econômica sob ajuda mútua comunalista ou direção palaciana foi e continua sendo um anátema para os economistas tradicionais, refletindo a visão de mundo dos credores modernos e das elites financeiras. Schurtz reconheceu que a busca de riqueza mercantil exigia freios e contrapesos para evitar que as economias empobrecessem seus membros.

O problema a resolver para qualquer sociedade em crescimento bem-sucedido era como evitar a concentração indevida de riqueza obtida por meios que prejudicavam o bem-estar geral e a capacidade dos membros da comunidade de serem autossuficientes. Caso contrário, a polarização econômica e a dependência levariam os membros a fugirem da comunidade, ou talvez que ela simplesmente encolhesse e acabasse sendo derrotada por pessoas de fora que se sustentavam por uma ajuda mútua mais bem-sucedida.

Como observado acima, Schurtz tratou a monetização da riqueza na forma de créditos de credores sobre os devedores como pós-arcaica. Mas o que moldou o contexto da monetização e levou o “dinheiro externo” a ter prioridade sobre o dinheiro interno foi a acumulação de riqueza por meio de empréstimos de dinheiro e os usos fiscais e militares do dinheiro. Schurtz rejeitou corretamente a caracterização de Bruno Hildebrand de que o dinheiro se desenvolvia em etapas, desde o escambo em pequena escala até as economias monetizadas que se tornaram mais sofisticadas à medida que evoluíram para economias de crédito que se tornavam financeirizadas.[7]

E, de fato, a sequência histórica real foi o inverso. Da Mesopotâmia à Europa medieval, as economias agrárias operavam a crédito durante o ano-safra. O pagamento monetário ocorreu na época da colheita para liquidar as obrigações acumuladas desde a última safra e para pagar impostos. Essa necessidade de pagar dívidas foi um fator importante que exigiu o desenvolvimento do dinheiro em primeiro lugar. A troca tornou-se o “estágio” monetário final da antiguidade, quando a economia de Roma entrou em colapso depois que sua oligarquia credora impôs a servidão por dívida e assumiu o controle da terra.

Quando os imperadores foram incapazes de tributar a oligarquia credora, eles rebaixaram a cunhagem, e a vida em todo o império se transformou em produção de subsistência local e quase-escambo. O comércio exterior era principalmente para luxos trazidos por árabes e outros habitantes do Oriente Próximo. A sequência otimista que Hildebrand imaginou não apenas o mito da troca de origens monetárias, mas também falhou em levar em conta a polarização da dívida à medida que as economias se tornavam monetizadas e financeirizadas.

Schurtz descreveu como o objetivo de prevenir a má distribuição de riqueza estava no cerne da estruturação social dos grupos indígenas. Mas ele falhou por vários motivos. As economias nas quais a riqueza familiar assumia a forma de gado – ele descobriu – tendiam a se tornar cada vez mais opressivas para manter a desigualdade polarizadora que se desenvolveu. O mesmo pode ser dito das economias de crédito sob o crescente fardo da dívida remunerada. Schurtz observou a prática de cobrar dos devedores o dobro do valor do empréstimo – e qualquer taxa de juros de fato envolve um tempo de duplicação implícito.

Essa dinâmica exponencial é o que polariza as economias financeirizadas. Em contraste com Schurtz, os economistas convencionais de sua geração evitavam lidar com o efeito da inovação monetária e da dívida na distribuição da riqueza. A tendência era tratar o dinheiro apenas como um “véu” de mudanças de preços de bens e serviços, sem analisar como o crédito polariza o balanço patrimonial de ativos e passivos da economia. No entanto, a característica distintiva das economias de crédito era o uso do empréstimo de dinheiro como uma alavanca para enriquecer os credores empobrecendo os devedores. Isso era mais do que apenas um problema monetário. Era um problema político de credor/devedor e, em última análise, um problema público/privado.

A questão era se o governante ou se agentes públicos cívicos conduziriam o aumento da riqueza monetária de forma a evitar a criação de oligarquias de credores.

A maioria dos estudiosos econômicos do século XIX e até mesmo os subsequentes evitaram confrontar esse contexto político, deixando a lacuna mais gritante na análise econômica moderna. Coube à descoberta da documentação cuneiforme entender como o dinheiro se institucionalizou pela primeira vez como veículo para pagar dívidas.

O emprego do dinheiro foi acompanhado por um sucesso notável em sustentar a riqueza crescente, evitando sua concentração nas mãos de uma oligarquia hereditária. O sucesso obtido no Oriente Próximo mostra aquilo que as economias ocidentais menores e mais anárquicas não conseguiram alcançar quando as práticas de dívida com juros foram trazidas para as terras mediterrâneas sem serem controladas pela tradição de cancelamento regular de dívidas pessoais não comerciais.

O crédito e a riqueza monetária foram privatizados nas mãos do que se tornou um conjunto cada vez mais autodestrutivo de oligarquias clássicas, culminando na de Roma, que lutou durante séculos contra revoltas populares em busca de proteção contra a polarização econômica empobrecedora.

Os efeitos devastadores do transplante das práticas de dívida do Oriente Próximo para os agrupamentos menos comunalistas do mundo mediterrâneo mostram a necessidade de discutir o contexto político, fiscal e social moral do dinheiro e da dívida. Schurtz colocou a análise monetária no contexto das instituições políticas e valores morais da sociedade e explicou como o dinheiro é um produto desse contexto e, de fato, como a monetização tende a transformá-lo – de uma forma que tende a quebrar a proteção social.

O seu livro permaneceu relativamente desconhecido ao longo do século passado, em grande parte porque sua perspectiva antropológica institucional é muito ampla para uma disciplina econômica que foi reduzida por ideólogos pró-credores que aplaudiram a destruição do “livre mercado” da regulamentação social destinada a proteger os interesses dos devedores.

Essa atitude evita reconhecer os desafios que levaram as comunidades indígenas estudadas por Schurtz, assim como, também, a formação da Idade do Bronze no Oriente Próximo, a proteger sua resiliência contra a concentração de riqueza, um fenômeno que tem atormentado as economias desde a descontextualização da antiguidade clássica das práticas de dívida do Oriente Próximo.

Referências

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Hildebrand, Bruno, 1864. “Naturalwirthschaft, Geldwirthschaft und Creditwirthschaft.” Jahrbücher für Nationalökonomie und Statistik 2: pp. 1–24.

Hudson, Michael, 1999. “From Sacred Enclave to Temple to City.” In Urbanization and Land Ownership in the Ancient Near East, edited by Hudson, Michael, and Levine, Baruch, pp. 117–46. Cambridge, MA: Peabody Museum of Archaeology and Ethnology, Harvard University.

Hudson, Michael, and Wunsch, Cornelia, editors, 2004. “The Development of Money-of-Account in Sumer’s Temples.” In Creating Economic Order: Record-Keeping, Standardization and the Development of Accounting in the Ancient Near East, pp. 303–29. Bethesda, MD: CDL Press; Republished by Dresden: ISLET, 2023.

Hudson, Michael, 2024. Temples of Enterprise: Creating Economic Order in the Bronze Age Near East. Dresden: ISLET.

Laum, Bernard, 1924. Heiliges Geld: Eine historische Untersuchung über den sakralen Ursprung des Geldes. Tübingen: J.C.B. Mohr.

Mauss, Marcel, 1925. The Gift: Expanded Edition. Translated by Guyer, Jane I. Chicago: Hau Books. 2016 edition.

Menger, Carl, 1892. “On the Origins of Money.” Economic Journal, Vol. 2, Issue 6: pp. 238–55.

Thureau-Dangin, François, 1905. Les Inscriptions de Sumer et d’Akkad. Paris: Leroux.

Wray, L. Randall, 2004. Credit and State Theories of Money: The Contributions of A. Mitchell Innes. Cheltenham: Edward Elgar Publishing.

Notas

[1] Menger, Carl, 1892. A teoria do escambo foi refutada por pesquisas modernas que descobriram as origens institucionais do dinheiro na Idade do Bronze no Oriente Próximo. Discuto isso nos capítulos 1 e 3 de Temples of Enterprise (Hudson, 2024). Minhas críticas a essa teoria estão em Origins of Money and Interest: Palatial Credit, Not Barter” (Hudson, Michael, 2020).

[2] Veja os artigos coletados em Wray, L. Randall, 2004.

[3] Mauss, Marcel (1925), 2016; Laum, Bernard, 1924. Schurtz menciona esse dinheiro de passagem, mas acha o comércio de alimentos relativamente sem importância.

[4] Discuto isso em “From Sacred Enclave to Temple to City” (Hudson, Michael, 1999) and Chapter 10 of Temples of Enterprise (Hudson, Michael, 2024).

[5] Schurtz citou como exemplo de como as autoridades monetárias poderiam substituir o dinheiro de metal por dinheiro-signo; ele citou o caso de “Kublai Khan, o governante do império mongol, [que] expulsou o dinheiro de metal com dinheiro-signo, especificamente pedaços de papel carimbados, evidentemente seguindo o exemplo chinês. Os relatos de Marco Polo indicam que o empreendimento deve ter sido temporariamente bem-sucedido apenas por causa do tremendo poder e autoridade do governante, com o resultado de um vasto acúmulo de ouro e prata na residência do Khan. Mas ele fez comentários depreciativos sobre os chamados “assignats” de papel-moeda do governo francês e chamou John Law de “vigarista”, descartando a criação de dinheiro do governo.

[6] Thureau-Dangin, François (1905: 86-87), traduziu o termo sumério “amargi” por “justiça”. Isso implicava especificamente que funcionários e indivíduos ricos (“os poderosos”) não teriam reivindicações legais para execução de dívidas.

[7] Hildebrand, Bruno (1864), classificou as economias numa sequência que começa em Naturalwirtschaft (“economia de escambo”), passa depois para Geldwirtschaft (“economia monetária de ouro/mercadoria”) e termina em  Kreditwirtschaft (“economia de crédito”).


[1] Michael Hudson é economista norte-americano, professor de economia na Universidade do Missouri do Kansas e pesquisador do Levy Economics Institute do Bard College. O texto aqui publicado vem de uma adaptação do prefácio ao livro de Heinrich Schurtz, An outline of the origins of Money.