Capital: finança, poder ou relação social?

Autor: Nick Johnson – Blog: The political economy of development – 28/08/2024

Aqui se cita [e se discute] a introdução do último livro de Geoffrey Hodgson, The wealth of a nation – The institutional foundation of English capitalism, no qual ele põe e defende uma concepção particular de capital e de capitalismo. Embora o conceito de capital como fator de produção desempenhe um papel proeminente na economia convencional, o termo capitalismo é aí menos usado. Muitos economistas preferem usar o termo economia de mercado, em vez de capitalismo. Talvez seja porque eles veem a teoria econômica como um conjunto de leis universais que podem ser aplicadas a qualquer sistema econômico que tenha existido na longa história da sociedade humana.

Em contraste, muitos economistas críticos, não convencionais ou heterodoxos usam mais prontamente o termo capitalismo. Sendo mais críticos em relação ao sistema ora existente, eles o veem como historicamente específico. Ao fazê-lo, julgam que ele necessita de uma reforma significativa ou mesmo que é preciso substitui-lo por algo melhor. Isso não implica em aderir a tese do socialismo como um estado planejado centralmente, pois pode simplesmente apontar para uma abertura à evolução socioeconômica, seja lá o que isso possa envolver.

É vital que os cientistas sociais concordem com definições específicas de conceitos destinados a serem usados em suas pesquisas. Embora as definições possam ser frequentemente contestadas, sem alguma demarcação, torna-se bastante difícil para uma temática científica, tal como a econômica, progredir e evoluir na compreensão dos objetos de análise, assim como da comunicação efetiva entre os envolvidos em sua compreensão. Se discordássemos o tempo todo sobre as definições de certas palavras, o progresso científico estagnaria. Ainda podemos concordar que todo conhecimento é parcial e falível, mas isso não deve atrapalhar a investigação científica bem-sucedida.

A economia lida com interações complexas entre indivíduos complexos; eles querem compreender e explicar essa realidade, bem como chegar às aplicações e às políticas destinadas a melhorar a vida da sociedade e de seus membros. O modo como escolhemos definir os seus conceitos é importante.

Para aqueles para quem o capitalismo é um importante objeto de análise – não atemporal, mas sim historicamente específico –, o próprio conceito de capital pode parecer bem controverso. Esta nota tem como objetivo explorar alguns dos significados não convencionais de capital como algo específico do próprio capitalismo. Sem essas especificidades, os significados de capital e capitalismo tornam-se diluídos e menos úteis para a compreensão, explicação e formulação de políticas progressistas.

Resumidamente, para Hodgson, o capital é uma forma de finança empregada na produção; para Jonathan Nitzan e Shimshon Bichler, em seu livro Capital as Power, o capital é, bem, uma representação do poder; enquanto para Marx, em sua magnum opus O Capital, ele pode ser muitas coisas usadas no processo de produção para a obtenção do lucro, sendo então definido como uma relação social.

Capital como ativo financeiro

O estudo abrangente de Geoffrey Hodgson, Conceptualizing Capitalism, contém um capítulo inteiro dedicado aos significados do capital. Resumidamente, ele argumenta que antes da Riqueza das Nações de Adam Smith, capital era definido teoricamente de acordo com a definição comum de negócios como finanças ou garantias, mensuráveis em termos monetários.

Ele enfatiza que é importante usar essa definição para iluminar sua função no capitalismo, que é um modo de produção ou sistema socioeconômico historicamente específico. Não deve ser definido simplesmente como bens de capital físicos, pois, como tais, estes bens são diferentes entre si; por isso mesmo, ele crê que é problemático apresentá-los em conjunto como uma medida, de uma forma que os torne úteis para análise.

A economia desde Smith tende a definir o capital neste último sentido o que originou muitas controvérsias. Para Hodgson, o capital não deve ser pensado como algo usado ou útil para a produção. Hoje em dia, temos uma infinidade de tais termos, incluindo capital humano e capital social, os quais, como tais, são também difíceis de medir em conjunto; ademais, eles não podem ser usados como garantia (exceto sob a escravidão no caso do capital humano!), nem podem ser comprados e vendidos. Esses tipos de usos fazem o capital parecer universal e a-histórico, em vez de específico do capitalismo, tal como o exige uma análise mais rica e crítica.

Portanto, o capital deve ser pensado como “dinheiro investido na produção ou … o valor monetário da propriedade própria, alienável e colateralizável que é empregada na produção” [e não] “qualquer coisa duradoura que contribua para a produção de bens ou serviços”.

Se podemos concordar que o próprio capitalismo decolou por volta de 1800 com a primeira revolução industrial, então ele deve ser visto como historicamente específico. Hodgson argumenta que é necessário confinar o significado do capital para limitar debates desnecessários e improdutivos, assim como para ajudar nossa compreensão da produção capitalista e para melhorar a formulação de políticas econômicas.

O próprio Hodgson é um economista institucional e evolucionista, o que o coloca fora do mainstream. Contudo, não é radical no sentido de que propugna por uma revolução socialista ou pela derrubada de todo o sistema atualmente existente. Por enquanto, ele defende uma reforma progressiva e um liberalismo social-democrata, mantendo-se aberto à evolução sistêmica para além do próprio capitalismo.

Capital como poder

Em seu livro Capital as Power, Nitzan e Bichler adotam uma perspectiva de economia política e tentam redefinir o capital, a acumulação de capital e o capitalismo como atributos de um sistema político-econômico que se constitui como um modo de poder organizado. Para eles, o próprio capital é “uma representação simbólica do poder”. Eles rejeitam a abordagem econômica neoclássica mais convencional, bem como a economia política marxista clássica. Para ele, elas se baseiam, respectivamente, nos conceitos de utilidade e de trabalho abstrato como determinantes do preço.

Eles argumentam que nenhum desses dois conceitos pode ser definido satisfatoriamente teoricamente nem medido empiricamente. Em vez disso, eles afirmam que o acúmulo de poder pela classe dominante sob o capitalismo, como uma ordem social hierárquica, pode ser medido pelo crescente domínio e influência do que eles chamam de capitalização. Isso é definido como ganhos futuros esperados e as percepções de risco associadas. A capitalização aparentemente surgiu na Itália do século XIV, anteriormente à industrialização e se espalhou pelo mundo desde então.

Para esses autores, a lógica do capital e da capitalização foi além da economia para penetrar, alterar e se tornar Estado, combinando assim o político e o econômico. Os capitalistas não se pautam, em última análise, pela produção de coisas, mas pelo controle das pessoas por meio da “megamáquina social capitalista”. O próprio poder é definido por eles como “confiança na obediência”.

Mas não pode ser assim, pois, como Hodgson aponta, o poder tem uma história muito mais longa nas sociedades humanas; ele existe há muito tempo antes do nascimento do capitalismo e da capitalização. Embora seu foco, o poder exercido pela classe dominante, seja visto como negativo para o resto (ou seja, para os governados), eles mantêm uma espécie de esperança marxista de mudança social. Ela ocorreria se as massas governadas puderem alcançar uma compreensão consciente de sua situação e pudesse trabalhar para derrubar o próprio capitalismo.

Portanto, Nitzan e Bichler tem por objetivo final chegar a um entendimento de capital que suscite uma revolução social. No entanto, como Hodgson, eles adotam uma definição de capital que pode ser quantificada em termos financeiros, ou seja, por meio de sua “capitalização”.

Capital como relação social

Marx definiu o capitalismo como um sistema social historicamente específico e, ao fazê-lo, inspirou muitos autores, incluindo também os dois acima considerados. De fato, a sua magnum opus foi intitulada O capital. Ele usou o termo “modo de produção capitalista” em vez de capitalismo. Hodgson observa que, em seus volumosos escritos, Marx tentou definir o capital como algo específico do capitalismo e também como uma relação social em vez de uma coisa física. No entanto, Hodgson critica Marx por alternar entre “significados relacionais, processuais, físicos e outros que seriam incompatíveis”.

No processo básico da produção capitalista, Marx argumenta que o capital-dinheiro, o capital que assume a forma de dinheiro, é usado para comprar mercadorias para uso na produção, que se tornam capital-mercadoria, e a produção resultante é vendida por (esperançosamente) um valor maior do que o dos insumos, que se torna mais capital monetário, ou capital de novo como dinheiro, gerando assim lucro para o capitalista, que pode ser reinvestido na expansão da produção e das vendas.

Essa fluidez do significado do capital é típica da análise de Marx em seus escritos maduros já que aí ele pretende espelhar a fluidez dos processos socioeconômicos estudados. Marx também se refere ao capital como “valor que se valoriza”, que engloba o processo contínuo de uma economia em crescimento (acumulação de capital), ou valor que cria mais valor a partir de si mesmo. Em outros lugares, o capital é referido como uma “relação social”: a existência do capital implica a existência do trabalho assalariado e das duas classes opostas que dominam sua análise, capitalistas e trabalhadores.

Poder e desigualdade

As três concepções de capital consideradas acima diferem entre si. No entanto, todas elas vão além da ideia simples de que capital possa ser bens físicos ou um fator de produção, tal como aparece na economia convencional. Todos eles afirmam que o capital é historicamente específico, que ele define de modo particular o capitalismo. Contudo, essa definição difere entre as três abordagens. Embora as ideias sobre poder sejam um aspecto importante da economia política, definir o capital como o próprio poder permanece falho. O exercício humano e a acumulação de poder podem figurar em todas as sociedades como uma parte inevitável de seu funcionamento, e certamente não se limitam apenas ao capitalismo.

Os significados fluidos de Marx são uma parte importante e distinta de sua análise, demonstrando a natureza fluida do próprio capitalismo, embora possam tornar seu trabalho difícil de entender. Hodgson talvez seja mais claro e rigoroso ao limitar o significado de capital ao de finança colateralizável que é usada na produção. Mais adiante, no mesmo livro, ele argumenta que a propriedade concentrada do capital, assim definido, continua sendo uma importante fonte de desigualdade, uma vez que pode ser usado para se expandir, como capital autoexpansível, abrindo caminho para uma polarização arraigada da riqueza.

O trabalho não pode ser usado dessa maneira; ele não pode ser usado como garantia para obter financiamento a fim de investir na expansão da produção. Uma maneira de reduzir os níveis atuais de desigualdade pode, portanto, ser implementar impostos progressivos sobre a riqueza que redistribuam uma certa quantia aos indivíduos quando atingem a idade de trabalhar, que eles são livres para investir no aumento de suas habilidades ou na produção de algum tipo.

Hierarquia nas sociedades humanas

Seja o capital concebido como finanças, poder ou uma relação social, ele parecer ser a fonte de um certo grau de desigualdade e, portanto, de hierarquia social. A existência de hierarquias nas sociedades humanas, mesmo que não sejam rígidas, mas sujeitas a mudanças, pode ser intrínseca ao seu funcionamento. Afinal, não importa o quão sofisticados possamos ser, os humanos continuam sendo uma espécie de primata, para o qual a obediência à autoridade é uma resposta funcional fundamental ao poder de indivíduos e grupos dominantes e dominantes.

A verdadeira igualdade de resultados econômicos e sociais, portanto, parece inatingível. Mas a desigualdade e a injustiça certamente podem ser excessivas e prejudiciais e, portanto, exigem mudanças sociais e econômicas para mitigar seus aspectos disfuncionais, o que pode alterar a estrutura das hierarquias existentes e das classes dominantes no poder. Para Hodgson, tudo isso deve envolver a compreensão e a instigação de mudanças institucionais, particularmente em sociedades modernas e complexas como as que encontramos sob o capitalismo.

O capitalismo se espalhou pelo mundo, mas não em todos os lugares, e nem sempre com sucesso. Períodos de crescimento econômico foram seguidos por episódios de estagnação ou mesmo retrocesso. A convergência nos padrões de vida entre os países permanece ilusória, a possibilidade de que haja “recuperação do atraso” não é onipresente. Para melhorar as coisas para aqueles que ainda labutam na pobreza e desejam algo melhor, precisamos aprender com os sucessos e fracassos históricos.

Nem todos os capitalismos são iguais; ademais, o progresso econômico envolve mudanças institucionais que podem ser motivadas tanto de dentro quanto de fora das sociedades. Sabe-se mesmo que elas podem ser as consequências não intencionais de fatores como guerra, conquista e imperialismo. Mas ainda existem semelhanças necessárias entre os capitalismos, incluindo a natureza do próprio capital. A busca por mudanças sociais e econômicas progressivas precisa de uma análise clara, o que, por sua vez, requer definições claras.

Nota crítica do tradutor

O artigo de Nick Johnston está escrito na perspectiva de um entendimento que teoriza sobre o mundo tal como aparece – em oposição a uma dialética que apresenta o mundo como aparência e essência, que o expõe como processo de devir – não como concreto aparente, mas como concreto pensado. 

Nick Johnston toma, por isso, os conceitos como ideias que se formam na cabeça dos economistas à medida que eles procuram apreender os fenômenos. Daí que que ele, junto com Geoffrey Hodgson, veja o conceito de capital em Marx como fluído, pois, ele estaria sendo aplicado às coisas diferentes entre si, ou seja, às máquinas, dinheiro, força de trabalho comprada e mercadorias acabadas.

Ora, Marx toma as categorias como formas de ser, determinações da existência. Assim, capital para Marx é forma de uma relação social de produção que só existe em processo de devir – assim, ele não é uma coisa ou certas coisas. Contudo, para que o capital prospere é preciso que certas coisas lhe sirvam de suporte materiais. Nesse sentido, pode-se dizer que capital é maquina, é dinheiro, é mercadoria etc., mas não se pode apontar uma máquina, dinheiro e mercadoria etc. para dizer que eles são capital.

Assim como a linguagem comum dá forma às relações sociais diretas, permitindo que as interações humanas no mundo da vida ocorram, a linguagem das mercadorias dá forma – uma forma objetivada e fetichista – às relações sociais indiretas características do modo de produção capitalista. Eis que essas últimas são indiretas justamente porque requerem a mediação de certas coisas para que ocorram. E elas ocorrem não mais no mundo da vida, mas numa derivação dele que foi reificada como sistema de produção. Como se sabe, esse sistema é governado pelo movimento tendente ao infinito do capital, o qual Marx denomina também de “sujeito automático”.