Autora: Nancy Fraser [1] – Jacobina – 26/08/2024
Desenvolvi uma concepção expandida de capitalismo para fugir das versões base-superestrutura do marxismo, que enxergam os sistemas econômicos como o real alicerce da sociedade, enquanto tratam todo o resto como mera “superestrurura”. Nesse modelo, a causalidade flui apenas em uma direção, da base econômica à superestrutura político-legal.
E isso é profundamente inadequado. Minha alternativa foca em repensar a relação econômica entre o subsistema econômico da sociedade capitalista e o plano de fundo de suas necessárias condições que a tornam possível — processos, atividades e relações que são absolutamente essenciais para a economia capitalista, como a reprodução social, natureza não-humana e bens comuns.
Isso complica a clássica figura da base-superestrutura. Dizer que algo é uma condição de fundo necessária significa que o sistema econômico capitalista não pode funcionar sem ela: a capacidade do capitalismo de comprar força de trabalho e colocá-la em funcionamento, de acessar matérias-primas e energia, de produzir commodities e vendê-las com lucro, de acumular capital, nada disso acontece a não ser que essas condições “não-econômicas” estejam em seus lugares. Portanto, essas condições de fundo possuem seu próprio peso causal. Eles não são “epifenômenos”.
Tome o exemplo da reprodução social: as atividades, geralmente desempenhadas por mulheres fora da economia oficial, que sustentam os seres humanos que constituem o “trabalho”. Então, por exemplo, o parto, o cuidado, a socialização e a educação de novas gerações; mas também a restauração dos trabalhadores adultos, que têm de estar alimentados, limpos, vestidos e repousados para voltar ao trabalho no dia seguinte — tudo isso é necessário para o funcionamento da economia capitalista.
Exemplos
Esse argumento foi desenvolvido por feministas que estavam elaborando a teoria da reprodução social, que é uma variante do feminismo marxista. Ela indica que se a reprodução social sair dos eixos, haverá sérios problemas para a produção econômica. E isso significa que a acumulação de capital é restringida por relações de parentesco, taxas de natalidade e de mortalidade, etc. Portanto, complicamos um quadro de causalidade unidirecional.
Um caso paralelo pode ser estabelecido a respeito das condições naturais ou ecológicas subjacentes. A produção e a acumulação capitalistas pressupõem a disponibilidade das coisas materiais das quais a produção depende –– matéria-prima, fontes de energia, estações para despejo e tratamento de dejetos. E caso essas condições sejam comprometidas, isso também pode obstruir os trabalhos.
Temos um interessante exemplo nesse momento com a Covid-19, que é, em certo nível, uma desfunção ecológica. O vírus emergiu como ameaça para os seres humanos por um transbordamento zoonótico, uma transferência dos morcegos para nós por meio de espécies intermediárias, possivelmente pangolins, provavelmente resultado de uma migração induzida de espécies por causa do clima — ou do “desenvolvimento”.
O resultado tem sido uma enorme contração do sistema econômico como um todo. A Covid-19 é um ótimo exemplo de causalidade que se dá por outros meios.
O reverso
Contudo, definitivamente, existe algo especial sobre a economia capitalista que a dota de um imenso dinamismo causal: o imperativo de acumular capital e de expandir “valor” sem limites. Da forma que a conhecemos, uma economia capitalista não admite que você faça algum dinheiro e relaxe para curtir a vida em sua mansão, gastando tudo.
Em vez disso, há o imperativo de reinvestimento, voltado para gerar ainda maiores quantidades de valor excedente, lucros crescentes e mais capital. É uma força poderosa, que inclina os detentores de capital a forçar os limites, a tentar torcer as condições não-econômicas às suas vontades.
Entretanto, a capacidade deles de fazer isso não é absoluta. Está sujeita a resistências, inclusive da natureza, que procede em seu próprio ritmo, em sua própria programação. A temporalidade da reprodução ecológica não está, no fim das contas, dentro do controle capitalista. Dessa forma, é sensato falar de esferas “relativamente autônomas” que são postuladas como “não-econômicas”.
Compulsão
Todavia, o impulso expansionista do capital é uma compulsão cega, brutal e está entranhado no sistema. É muito mais poderoso do que a vontade de seres humanos individuais que possuem o seu próprio capital e são incentivados a expandir seu valor — como se estivessem realizando “suas vontades”.
Esse impulso é tão poderoso que tem sido bem-sucedido em rearranjar suas próprias condições de fundo (família, natureza, formas de Estado e daí por diante), não obstante dentro de alguns limites, como disse antes. O que estou tentando sugerir é que os marxistas estão totalmente certos em insistir no poder e na força modeladora da dinâmica de acumulação.
Mas é um erro traduzir essa ideia em um quadro de causalidade do tipo base-superestrutura. Há muitos reveses, pois essas condições de fundo têm suas próprias gramáticas e temporalidades de reprodução e porque elas abrigam valores “não-econômicos” aos quais as pessoas dão importância e que influenciam suas ações.
Crise terminal
Agora, eu gostaria de sublinhar vários pontos que já estão implícitos na “tese segundo a qual, pelo menos desde 2008, o atual estágio do capitalismo neoliberal financeirizado atravessa uma crise — talvez terminal — que pode eventualmente significar uma mudança histórica rumo a uma forma de acumulação capitalista diferente”.
Um deles é que devemos distinguir entre crises setoriais e crises generalizadas. Uma crise setorial significa que existe uma área significativa em dado regime de acumulação capitalista ou uma fase do desenvolvimento capitalista que é notoriamente disfuncional, ao passo que outras parecem mais ou menos bem. Geralmente, tendemos a pensar sobre crises econômicas como crises setoriais exatamente dessa forma. Historiadores poderiam indicar vários exemplos de tais crises setoriais que pertencem a apenas um reino da sociedade. Mas isso é diferente de uma crise generalizada na ordem social como um todo.
O conceito de crise generalizada sugere uma convergência ou sobredeterminação de diversos e importantes impasses e disfunções. Não apenas um setor, mas todos ou praticamente todos os principais setores da sociedade estão em crise e agravam a situação um dos outros. Esse foi o caso dos anos 1930, por exemplo.
Crise generalizada
Suspeito que estamos atravessando uma crise geral desse modelo agora. Certamente, temos visto severas formas de crises econômicas, como a dissolução financeira de 2007-8. E embora possa parecer que nossos governantes encontraram soluções, aquela crise ainda não foi realmente resolvida. A financeirização pervasiva segue sendo uma bomba relógio.
Porém, segundo mostra relatório do Painel Intergovernamental sobre a Mudança Climática (IPCC), nossos infortúnios convergiram com outra crise muito grave, ainda mais catastrófica: o aquecimento global. Essa crise ecológica vem sendo fermentada há muito tempo e agora se torna palpável. Mais e mais segmentos da população global, incluindo segmentos que tinham se mantido relativamente a salvo dos seus piores efeitos, estão despertando para o problema.
Há também, como disse antes, uma crise na reprodução social, que coloca uma pressão ou acaba esgotando nossas capacidades de criação, cuidado e sustento de seres humanos: assistência às crianças e aos idosos, cuidados voltados para a saúde e para a educação. Na medida em que o Estado desinveste no orçamento público e os rebaixados níveis salariais nos forçam a devotar mais horas ao trabalho pago, o sistema devora o tempo e a energia necessários para o trabalho relacionado ao cuidado.
Portanto, esse setor está em crise também, especialmente em condições pandêmicas. Alguém poderia dizer que a Covid-19 exacerbou agudamente as crises pré-existentes na reprodução social. Mas também poderia ser dito de forma igualmente acertada que as crises pré-existentes na reprodução social (incluindo o desinvestimento público em infraestrutura de saúde e em serviços sociais) exacerbaram agudamente os efeitos da Covid-19.
Crise política
Finalmente, também enfrentamos uma grande crise política. Ela é, em certo nível, uma crise de governança, pois mesmo Estados poderosos como os Estados Unidos não possuem a capacidade de resolver os problemas que o sistema produz. Eles estão esgotados, paralisados por congestão e desarmados por megacorporações, as quais são responsáveis por capturar virtualmente todas as agências regulatórias e arquitetar enormes isenções fiscais para si mesmas e para os mais ricos.
Destituídos de renda há décadas, os Estados permitiram que suas infraestruturas desmoronassem e drenassem seus estoques de bens públicos essenciais, tais como equipamentos de proteção individual (EPI). Eles são, por definição, impotentes para lidar com questões como crise climática, algo que não está abarcado dentro de nenhuma fronteira jurídica.
O resultado é uma aguda crise de governança no nível estrutural. Mas há também uma crise política em outro nível, uma crise de hegemonia no sentido gramsciano: a vasta deserção da política segundo parâmetros usuais, a partir de partidos políticos e elites que se contaminaram por associações com o neoliberalismo, e a aparição de outrora impensáveis populismos — alguns potencialmente emancipatórios, outros decididamente não.
Crise sem fim
A consequência é que agora nós encaramos um emaranhado de múltiplas crises: econômica, da reprodução social, ecológica e uma crise política de duas faces. Me parece que isso se soma à crise geral da sociedade capitalista. Seus efeitos borbulham por todo lugar, aqui e ali, como um câncer em metástase.
Todos os esforços para remediar um surto leva a outros, afligindo novos setores, regiões, populações, até que todo o corpo social esteja em farrapos. A experiência da crise generalizada vem se tornando palpável para muitas pessoas, embora isso não signifique que elas irão se insurgir ou que teremos um clímax revolucionário a qualquer momento.
As crises capitalistas podem se prolongar por décadas, infelizmente. Alguém poderia afirmar que toda a primeira metade do século XX até a derrota do fascismo no fim da Segunda Guerra foi apenas uma longa e turbulenta crise do capitalismo liberal-colonial. Portanto, pode ser que tenhamos muito trabalho duro pela frente.
Prado: A tese de Fraser é nova?
Veja-se em sequência como György Lukács explica os momentos “base e estrutura” da totalidade histórica constituída pelo capitalismo em seu Livro Para uma ontologia do ser social. Se se atenta bem ao que o próprio Marx diz no prefácio a Sobre a crítica da economia política – diz ele – vê que ele trata essa dualidade como momentos de uma totalidade e não como uma mera arquitetônica:
Lucákcs [2]: base e supestrutura
É sobretudo importante o fato de ele considerar “o conjunto das relações de produção” a “base real” a partir da qual se explicita o conjunto das formas de consciência; e que estas, por seu turno, são condicionadas pelo processo social, político e espiritual da vida.
Ele sintetiza isso assim: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o seu ser social que determina sua consciência”.
Desse modo, o mundo das formas de consciência e seus conteúdos não é visto como produto imediato da estrutura econômica, mas da totalidade do ser social. A determinação da consciência pelo ser social, portanto, é entendida em seu sentido mais geral. Só o marxismo vulgar (desde a época da Segunda Internacional até o período stalinista e suas consequências) é que transformou essa determinação numa relação causal declarada e direta entre economia, ou mesmo entre alguns momentos desta, e ideologia.
No entanto, o próprio Marx, pouco antes do trecho ontologicamente decisivo que acabamos de citar, afirma, por um lado, que à superestrutura “correspondem formas determinadas de consciência social” e, por outro, que “o modo de produção da vida material condiciona, em geral, o processo social, político e espiritual da vida”.
Mais adiante, neste mesmo capítulo e nas exposições que constituem a segunda parte deste livro, tentaremos mostrar como é rico o campo de interações e de inter-relações – incluída a decisiva categoria marxiana do “momento predominante” – contido nessa determinação ontológica, propositadamente deixada em aberto e a um nível extremamente geral.
[1] Professora de filosofia e política na New School for Social Research. É coeditora do livro Feminismo para os 99%, Boitempo 2019, e autora do livro O velho está morrendo e o novo não pode nascer, Autonomia Literária 2020.
{2} Filósofo hungaro que escreveu Para uma ontologia do ser social, Boitempo Editorial, 2012, entre outras obras.

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