Socialização do capital I

Autor: Eleutério F. S. Prado[1]

É bem sabido que Marx, já em meados do século XIX, contemplou o processo de socialização do capital, ou seja, a superação da forma pela qual as empresas figuram como “capital privado” de certas pessoas pela forma em que se apresentam como “capital social” detido coletivamente por conjuntos de pessoas, pelo Estado e mesmo por outras empresas (mas não necessariamente por todos).

A compreensão do surgimento dessa última forma começa pelo entendimento de que a emissão e a venda de ações para o público – signos que representam uma parte alíquota do capital próprio de uma ou mais empresas – constitui-se numa forma especial de obter crédito e, assim, recursos extras para o funcionamento e para a expansão das operações que lhes dão vida econômica. Eis como apresentou esse desenvolvimento:

O capital que, como tal, tem como base um modo social de produção e pressupõe uma concentração social de meios de produção e forças de trabalho, adquire, assim, diretamente a forma de capital social (capital de indivíduos diretamente associados) em oposição ao capital privado, e suas empresas se apresentam como empresas sociais em oposição a empresas privadas. É a suprassunção [Aufhebung] do capital como propriedade privada dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista. (Marx, 2017, p. 494)

É preciso ver aqui que não se trata da supressão da propriedade privada, mas da sua subordinação por meio de uma forma coletiva de propriedade que não pode ser totalmente inclusiva enquanto o modo de produção continua sendo capitalista. É por isso que Marx diz:

Nas sociedades por ações, a função aparece separada da propriedade de capital, e o trabalho também aparece, portanto, completamente separado da propriedade dos meios de produção e do mais-trabalho. Esse resultado do máximo desenvolvimento da produção capitalista é uma fase de transição necessária até a reconversão do capital em propriedade dos produtores, mas não como propriedade privada de produtores isolados, e sim como propriedade dos produtores associados, como propriedade diretamente social. (Marx, 2017, p. 495).

Eis que essa forma coletiva de propriedade, ainda capitalista, só pode abranger uma fração da população economicamente ativa, ou seja, aquele que atuam e podem atuar como contratante; ademais, dentro dessa fração, tem de predominar e dominar os indivíduos de uma classe social, a burguesia – aliás, não de modo isonômico. Mesmo se essa forma de propriedade dos meios de produção pode chegar a incluir inclui uma parte expressiva da população, ela exclui necessariamente grande parte dos que atuam como proprietários de força de trabalho, ou seja, os trabalhadores subsumidos ao capital por assalariamento ou parceria assimétrica. Concretamente, se apresentam como proprietários das ações das corporações conjuntos menores ou maiores de acionistas individuais, mas também, às vezes, o capitalista coletivo universal (ou seja, o Estado). Contudo, os acionistas individuais podem estar reunidos por meio de capitalistas coletivos particulares, ou seja, em empresas gestoras de ativos.

Não se deve esperar do processo de socialização do capital uma distensão da contradição entre o caráter social da produção e o caráter privado da apropriação; ao contrário, deve-se esperar uma tensão maior que vem se manifestar por meio da concentração da riqueza, da renda e do poder social. Contudo, essa tendência apenas se manifesta na história de um modo complexo que precisa ser investigado minuciosa e extensamente, com o rigor que a matéria exige. Com esse espírito – e de maneira introdutória – apresenta-se em sequência a primeira parte de um artigo de Braun e Christophers (2024) que merece ser lido por inteiro.  

Referências: (1) Marx, Karl – O capital. Crítica da Economia Política, Tomo III. São Paulo: Boitempo, 2017. (2) Braun, Benjamin e Christophers, Brett – Asset manager capitalism: an introduction to its political economy and economic geography, in Economy and Space, 2024, vol. 56(2), p. 546-557. 

Introdução à economia política e geografia econômica da gestão de ativos

Benjamin Braun [2] e Brett Christophers [3]

As empresas de gestão de ativos são uma espécie particular de instituição de investimento. Fornecem veículos de investimento coletivo para seus clientes, nomeadamente investidores não profissionais, mas também para investidores institucionais. As taxas pagas (fees) por esses clientes são a principal fonte de receita dos gestores de ativos. Antes da década de 1980, a gestão de ativos era um componente modesto e periférico nas finanças capitalistas.

Hoje, em contraste, os gestores de ativos são as instituições financeiras privadas centrais e, sem dúvida, até dominantes. O termo “capitalismo de gestão de ativos” foi cunhado para denotar essa centralidade da gestão de ativos não apenas para as finanças capitalistas contemporâneas, mas para o capitalismo contemporâneo de forma mais ampla.

Como surgiu essa mudança tectônica nas finanças? Historicamente, as finanças foram dominadas pelos bancos, aos quais a partir do século XVII se juntaram as seguradoras. Embora ambos os tipos de instituições sempre tenham desempenhado funções de gestão de ativos, essas nunca foram o ponto principal do setor bancário ou de seguros, nem sua principal fonte de receita. O primeiro obtém-na por meio de empréstimos e o segundo por meio do fornecimento de seguros.

A primeira – e até hoje dominante – instituição de gestão de ativos “pura” é o fundo mútuo, cuja história remonta ao final do século XVII, em Amsterdã. Os britânicos também canalizaram a poupança metropolitana para lugares distantes do império por meio de fundos mútuos sediados em Londres, tal. como o Foreign and Colonial Investment Trust.

Esses foram meros prelúdios, no entanto, para a ascensão do setor moderno de fundos mútuos no último meio século. Embora as bases legislativas tenham sido estabelecidas anteriormente, o crescimento dos fundos mútuos ganhou força apenas quando o crescimento dos ativos de poupança para aposentadoria decolou na década de 1990.

Especificamente, os administradores dos fundos de pensão que detêm esses ativos de aposentadoria terceirizaram ampla e cada vez mais a atividade de investir essas economias para gestores de ativos especializados (e seus fundos mútuos), em vez de realizarem diretamente esse investimento. Daí decorre, em grande parte, o aumento pós-1980 nos ativos sob gestão dos fundos mútuos.

Embora esse padrão de crescimento dos gestores de ativos alimentado pelo crescimento dos fundos de pensão seja um fenômeno global, ele está altamente concentrado em relativamente poucas economias avançadas. Os países com ativos de aposentadoria substantivos incluem a Austrália, o Canadá, o Japão, a Holanda, a Suíça, o Reino Unido e os EUA. Juntos, esses sete países respondem por 92% do total de ativos de pensão dos 22 países com os maiores ativos.

Os EUA dominam o quadro. Os fundos de pensão dos EUA respondem por notáveis 62% do total de ativos de aposentadoria dos 22 principais países. Desde 1990, o total de ativos de aposentadoria dos EUA, incluindo planos coletivos de benefício definido e individuais de contribuição definida, aumentou de US$ 5 trilhões para US$ 35 trilhões. Enquanto isso, os ativos de fundos mútuos dos EUA aumentaram de US$ 2,5 trilhões para US$ 25 trilhões. Hoje, os ativos de aposentadoria representam quase metade dos ativos sob gestão do setor de fundos mútuos dos EUA.

A ascensão dos gestores de ativos tem profundas implicações para a economia política e a geografia econômica do capitalismo contemporâneo. Esse capitalismo emergente em que predominam os gestores de ativos mostra algumas semelhanças impressionantes com a configuração do “capital financeiro” do início do século XX estudada por Rudolf Hilferding.

No entanto, as instituições financeiras dominantes eram então bancos (privados), enquanto hoje são gestores de ativos. Estes prestam serviços não apenas para investidores de varejo, mas também para grandes – e, muitas vezes, profundamente enraizados politicamente – somas de capital institucional, como fundos soberanos e fundações, bem como os fundos de pensão acima mencionados. Assim, embora uma perspectiva de longo prazo e a consciência da ciclicidade do poder do setor financeiro sejam indispensáveis, tal como mostrou Arrighi, a nova posição dominante dos gestores de ativos, no entanto, deve ser analisada como um fenômeno historicamente distinto.

Este ensaio introdutório limita-se a apresentar três perspectivas analíticas abrangentes e relativamente amplas sobre o capitalismo de gestão de ativos. Ele faz isso na esperança de fornecer aos estudiosos desse fenômeno uma estrutura compartilhada significativa para estudá-lo e conceituá-lo.

Em primeiro lugar, enfatiza-se a importância óbvia de considerar os principais atores do capitalismo de gestão de ativos – ou seja, os gestores de ativos – como empresas com fins lucrativos. Pois a gestão de ativos tornou-se um setor cada vez mais importante da acumulação de capital, com configurações geográficas próprias e distintas. Explorar essa dimensão do capitalismo de gestores de ativos é focar na questão de saber como os gestores de ativos geram receitas e lucros, onde e em que escala; ademais, é preciso investigar como essas atividades variam entre gestores de ativos de um tipo ou de outro.

Em segundo lugar, consideramos brevemente como os gestores de ativos influenciam diretamente as atividades de outras empresas capitalistas específicas. Tomemos, a título de exemplo, a gestão de ativos de “private equity”. Neste segmento de mercado, os gestores de ativos e os seus fundos de investimento assumem o controle das empresas precisamente para influenciar a forma como são geridas e com vista a aumentar a rentabilidade e o valor de mercado dessas empresas. Embora a influência direta dos gestores de ativos em outras empresas seja especialmente clara no caso da gestão do tipo “private equity”, ela se estende muito além dele.

Em terceiro e último lugar, sugerimos que a ascensão das empresas de gestão de ativos muda o funcionamento do capitalismo em geral. Na verdade, esse talvez seja o aspecto específico em que o conceito de “capitalismo de gestor de ativos” é mais importante. Os gestores de ativos não mudam apenas a forma como as empresas individuais são administradas: eles influenciam como indústrias inteiras são organizadas e como os países se inserem no sistema monetário e financeiro global. Eles pressionam os governos a implementarem políticas regulatórias e macroeconômicas que atendem às suas preferências e aos seus interesses. Por meio desses canais, o negócio de gestão de ativos molda os contornos político-econômicos e econômico-geográficos mais amplos do capitalismo contemporâneo.


[1] Professor aposentado da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blogue na internet: https:eleuterioprado. blog

[2] Instituto para o Estudo das Sociedades, Max-Planck-Gesellschaft, Alemanha.

[3] Instituto de Habitação e Pesquisa Urbana, Universidade de Uppsala, Uppsala, Suécia