Política existêncial: Eros em Marcuse

Autor: Ian Angus [1]

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Vou discordar um pouco de Andrew Feenberg no escrito O conceito de Eros em Marcuse. Ele discorre sobre o uso que Marcuse fez de Freud para desenvolver um conceito de razão erótica. Fez, assim, uma excelente apresentação do projeto de Marcuse. Não se poderia esperar menos de Andrew, especialmente em assuntos marcuseanos.

Talvez eu possa começar sublinhando um aspecto revelador da tentativa de síntese entre Marx e Freud feita por Marcuse. A maioria das discussões sobre Freud feita pelos marxistas foi inspirada na tentativa de explicar o fracasso da classe trabalhadora em cumprir a tarefa revolucionária a ela atribuída, em especial diante do fascismo. Freud foi invocado como um suplemento, no sentido derridiano, para explicar a irracionalidade da atração da classe trabalhadora pelo fascismo. Tal suplemento poderia deixar intocado o conceito de razão operante no marxismo – e mesmo a dicotomia razão/irracional em geral.

Eros e civilização, por outro lado, só apareceu em 1955 – após o recuo do fascismo e na época do surgimento da sociedade de consumo de massas. A sua tarefa, como Andrew delineou, era revisar o conceito de razão – fazer assim uma revisão do conceito de razão instrumental ou tecnológica – para desenvolver uma concepção mais sensual, corporal 1e mundana. As pulsões libidinais e de morte em Freud tornam-se nas mãos de Marcuse forças ontológicas e, talvez, até mesmo cósmicas.

 Uma interpretação tão radical de Freud só pode ser comparada à obra igualmente ontológica e cósmica de Wilhelm Reich. Foi essa ideia de razão erótica que permitiu a Marcuse apreciar os aspectos mais utópicos da Nova Esquerda: ela trazia a esperança de uma síntese de razão, felicidade e Eros. Trata-se de uma bela visão.

Ao reconsiderar essa bela visão hoje, é preciso perguntar, penso eu, se ela é utópica ou se, como o próprio Marcuse pensava, ela se tornou realista ou mesmo necessária, diante de um capitalismo cada vez mais destrutivo. É com singular pesar, recordando a minha própria paixão juvenil pela visão de Marcuse, que devo dizer que penso que ela é de fato utópica.

Farei duas considerações nesse sentido. E, só para ficar claro, não creio que esse julgamento implique algo menos severo sobre a natureza destrutiva do capitalismo contemporâneo. Discutirei primeiro o princípio do desempenho e depois a pulsão de morte ou a força ontológica de Tânatos.

Toda civilização, segundo Freud, deriva da repressão da energia erótica. Além disso, qualquer grau maior de civilização requer um grau maior de repressão. O ressentimento contra a civilização cresce assim à medida que a civilização se desenvolve. Ora, isso significa que o perigo de uma liberação de tal energia destrutiva está sempre presente.

Marcuse introduziu a ideia do princípio do desempenho para marcar a diferença entre a quantidade de repressão exigida pelo grau de civilização e um excesso de repressão efetivamente implantada pela sociedade contemporânea devido ao seu caráter desigual sistêmico. Trata-se, portanto, de uma intervenção plenamente dentro da tradição da Escola de Frankfurt que visa demarcar o excesso de repressão operante na sociedade de classes e que poderia ser reduzido por uma organização mais igualitária e racional da sociedade.

Em determinado momento de sua palestra, Andrew explica essa intervenção dizendo que “a própria explicação de Freud previa tal futuro, mas deixava poucos motivos para esperança”. Contudo, acho que não é bem assim.

Devemos lembrar: Freud, ao se deparar com a questão de saber se certas formas de repressão – psíquica ou social – poderiam ser diminuídas, julgou que isso deveria ser realizado, sempre que possível. Ele também deixou muito claro que uma das principais fontes de repressão psíquica e social consiste na desigualdade econômica.[2]

Contudo, Freud pensava que a repressão fundamental exigida pela civilização não poderia ser completamente desmantelada. Achava, também, que era perigoso tentar fazê-lo porque isso desencadearia forças destrutivas, as quais precisam ser mantidas sob controle. Ele não se opunha de forma alguma à melhoria, mas apenas se precavia contra uma expectativa utópica autodestrutiva. A causa justificada do socialismo havia sido minada pelo que ele chamou de “concepção idealista da natureza humana”. [3]

O que pensou Marcuse a respeito disso? Parece-me que ele oscilou entre dois pontos de vista: na introdução de Eros e civilização, ele introduziu a ideia de uma “civilização não repressiva”; sugeriu, ademais,  que a própria teoria de Freud contradizia a noção de que a civilização precisa ser inerentemente repressiva, argumentando que “as próprias conquistas da civilização repressiva parecem criar as pré-condições para a abolição gradual da repressão”.[4]

De fato, ele falou da “possibilidade real da eliminação gradual da repressão excedente. Assim, uma porção em expansão de destrutividade poderia ser absorvida ou neutralizada pela libido fortalecida”.[5] Esse gradualismo me parece uma emenda válida à teoria freudiana, que se afigura compatível com ela. Eis que permite teorizar um ponto insuficientemente tratado por Freud, qual seja ele, precisamente aquele da diminuição da repressão desnecessária, com o qual ele concorda.

Mas para justificar um conceito de civilização não repressiva não basta, apenas, prever uma civilização que se regula para manter a repressão no mínimo necessário. Por outro lado, Marcuse definitivamente fala de civilização não repressiva, mesmo em um contexto gradualista. Em Eros e2 Civilização, ele celebrou a ideia de Fourier da transformação do trabalho em jogo, para que a sublimação possa se tornar inteiramente não repressiva.[6]

Em Um Ensaio sobre a Libertação, ele relacionou essa tendência utópica à automação e à substituição do trabalho físico pelo mental.[7] E, pouco depois, afirmou que “o conflito entre o princípio de prazer e o princípio de realidade não seria biologicamente necessário, nem insolúvel, nem solúvel apenas por meio de uma transformação repressiva dos instintos”.[8]

O conceito mínimo, gradualista – que me parece compatível com Freud – e o conceito máximo, agora utópico – que certamente não é compatível com as suas teses – coexistem no texto. Marcuse procura superar esse impasse tentando passar da concepção gradualista para um conceito de civilização não repressiva.

Ora, estou sugerindo aqui que essas duas concepções não apenas não são ajustáveis entre si, como são totalmente incompatíveis.[9] O gradualismo é cuidadoso porque assume que a ausência possível de não-repressão está limitada não apenas pelo nível predominante de repressão necessária, mas também pela eclosão de impulsos destrutivos. A concepção utópica pode prescindir de tal cautela porque a suposta possibilidade real de uma civilização não repressiva suprime a acumulação de repressão destrutiva que motivou a preocupação de Freud.

E isso me leva ao meu segundo ponto: a interpretação ontológica de Eros e Tânatos que é proposta em Eros e Civilização não se realiza plenamente. Não é dada à morte um papel ontológico e formativo comparável ao que dado à Eros. De fato, quero sugerir, o apagamento de Tânatos é o que permite articular a ideia utópica de Marcuse de uma civilização não repressiva.

Freud introduziu a pulsão de morte para dar conta dos traumas ligados aos desastres, em particular a destruição da Primeira Guerra Mundial.[10] O trauma induz uma repetição-compulsão que Freud interpretou como um desejo de retornar à nossa origem na matéria inorgânica.[11]

Uma vez que o material do trauma é completamente histórico e, portanto, aparentemente contingente, pode parecer estranho que Freud tenha dado à pulsão de morte um status equivalente ao de Eros. No entanto, embora tal trauma seja muitas vezes historicamente específico, ele é, no entanto, onipresente na condição humana, especialmente por meio do trauma de nascimento.

Marcuse aceitou apenas parcialmente o princípio da morte e acabou por apagá-lo enquanto uma existência ontológica independente. Em Eros e a civilização, ele parafraseou Freud corretamente para dizer que o prazer é atemporal, de modo que “a mera antecipação do fim inevitável, presente em cada instante, introduz um elemento repressivo em todas as relações libidinais e torna o próprio prazer doloroso”.[12]

Para conter esse poder da morte, Marcuse lembrou a função libertadora da lembrança na filosofia e o eterno retorno do mesmo em Nietzsche.[13] Ele apontou que “Nietzsche prevê o eterno retorno do finito exatamente como ele é – em sua plena concretude” para afirmar que “esta é a afirmação total dos instintos de vida, repelindo toda fuga e negação”.[14] Assim, finalmente, em Marcuse o instinto de vida triunfou sobre o instinto de morte. O movimento da vida em direção às unidades maiores subsumiu o movimento inverso da morte em direção à dissolução e à origem inorgânica. Esta é a base de sua bela visão.

Marx também deixou de lado o significado da morte. Ele afirmou a unidade do indivíduo e da espécie e, em seguida, disse o seguinte: como o indivíduo é um ser determinado da espécie, “como tal, ele é mortal”.[15] Ora, tal desinteresse pelo significado da morte individual, ao fim, também afasta o significado da morte para a espécie. Espinosa também, porque cada coisa individual procura persistir em seu ser, pensava que “nenhuma coisa pode ser destruída senão por um poder externo”.[16]

Mas o significado da pulsão de morte para Freud é que a morte é uma necessidade interna, não apenas um fim, mas uma dissolução, um movimento inverso à vida.[17] Pode-se muito bem querer negar o caráter interior da morte na vida, mas é improvável que se possa fazê-lo confiando em Freud. De fato, é nesse ponto que Marcuse se desviou de Freud em direção a Nietzsche.

Estas são duas das minhas razões para negar a validade da bela visão de Marcuse. É bela de fato! E a beleza pode muito bem ser uma imagem do Verdadeiro e do Bem. Mas a beleza também pode ser enganosa e o engano aqui é confundir o desejo com a realidade. Freud, assim como também Marx – eu diria – são pensadores da realidade.

Não tenho tempo para esclarecer que minha discordância teórica com a ideia de uma civilização não repressiva não implica um desacordo com Herbert Marcuse, nem Andrew Feenberg, sobre uma série de outras questões e análises políticas. Rejeita, no entanto, uma dissolução da diferença entre razão e Eros, assim como, também, o apagamento de Tânatos da interioridade da psique, ontologia e cosmos.


[1] Professor Emérito Simon Fraser University. Título do artigo em inglês: Response to Andrew Feenberg’s “Existential Politics: Marcuse’s Concept of Eros”.

[2] Sigmund Freud, Civilization and its Discontents, trad. James Strachey (Nova York: Norton, 1962) p. 90.

[3] Ibid.

[4] Herbert Marcuse, Eros e a civilização: uma investigação filosófica sobre Freud (Nova York: Vintage Books, 1962) p. 5. O sublinhado é meu.

[5] Ibidem, p. 119.

[6] Ibidem, p. 199.

[7] Herbert Marcuse, Um ensaio sobre a libertação (Boston: Beacon Press, 1969) p. 49.

[8] Herbert Marcuse, “Freedom and Freud’s Theory of the Instincts” in Five Lectures: Psychoanalysis, Politics, and Utopia (Boston: Beacon Press, 1970) p. 20.

[9] Curiosamente, tanto Freud quanto Marcuse observam que as revoluções trazem à tona desejos utópicos que superam seus objetivos limitados. Mas Freud pensava que esse elemento utópico era a queda do socialismo, enquanto Marcuse o tomava como uma indicação de que todas as revoluções históricas foram traídas. Sigmund Freud, A civilização e seus descontentes, p. 90; Herbert Marcuse, Eros e Civilização, p. 82-3.

[10] Sigmund Freud, Além do Princípio do Prazer, trad. James Strachey (Nova York: Bantam, 1959) pp. 28-31.

[11] Ibidem, pp. 61, 65, 67, 98.

[12] Herbert Marcuse, Eros e Civilização, p. 211.

[13] Ibidem, pp. 211, 111.

[14] Ibidem, pág. 111.

[15] Karl Marx, “Economic and Philosophical Manuscripts” in Early Writings, trad. e ed. T.B. Bottomore (Toronto: McGraw-Hill, 1963) p. 159.

[16] Baruch Spinoza, Ética, tradução de Samuel Shirley (Indianápolis: Hackett, 1992) p. 108. Parte III, proposição 4.

[17] Sigmund Freud, Além do Princípio do Prazer, pp. 70-2, 79, 87.