Autor: Andrew Feenberg
A síntese de Herbert Marcuse de Marx e Freud é a versão mais famosa e influente do freudo-marxismo. Nesta palestra, discutirei principalmente seu livro de 1955, Eros e a civilização, mas também, brevemente, Um ensaio sobre a libertação, publicado em 1969. Esses textos apresentam uma teoria social e uma ontologia da metapsicologia freudiana. Para tanto, Marcuse foi levado a fazer algumas elaboradas reconstruções da teoria do instinto freudiano.
De alguma forma, ele teve de introduzir considerações históricas marxistas na relação entre o que Freud chama de “eterno Eros” e o “seu adversário igualmente imortal”, Tânatos. Ele também teve de elaborar uma ontologia, isto é, uma teoria do ser, a partir da psicologia freudiana. Esta última operação é complicada e obscura. Assim, postula as pulsões fundamentais como aspectos da realidade, não apenas da psique.
Marcuse não tenta chegar a isso com uma metafísica antiquada em que, por exemplo, o desejo de Deus moveria todas as coisas. Em vez disso, implicitamente, ele se baseia numa fenomenologia (que veio de sua formação) para evitar esse resultado embaraçoso. A fenomenologia permite-lhe tratar o que chama de “experiência não corrompida e não mutilada” como um domínio ontológico fundamental.
Dentro desse domínio, não é absurdo postular uma conexão essencial entre o desejo e seus objetos. Esse movimento elide os próprios pressupostos naturalistas de Freud, baseados em uma visão de mundo científica. Mas, por causa da ruptura de Marcuse com seu professor Martin Heidegger, ele não pode explicitar os pressupostos por trás dessa ontologia fenomenológica.
Como resultado, a maioria dos comentaristas ignora esse aspecto do freudo-marxismo de Marcuse. Transformam-no em psicólogo social quando, na verdade, sempre se identificou como filósofo. Tentarei respeitar seu próprio sentido do que estava produzindo, apesar dos obstáculos que encontrou para apresentar seu argumento.
Agora, deixe-me começar com alguns antecedentes essenciais para a improvável reconciliação de Freud e Marx.
Nós, no Ocidente, contamos para nós mesmos uma certa história desde o Iluminismo.
É a história do progresso. De acordo com essa história, os avanços da ciência e da tecnologia sustentam o progresso moral, o progresso da liberdade e da democracia; o progresso continua até hoje e promete continuar por um futuro indefinido. Essa história circulou no final do século XVIII, mas só pegou de fato no final do século XIX, quando o liberalismo se tornou uma espécie de ortodoxia entre as pessoas cultas.
É claro que nem todos acreditaram na história. Os dois maiores dissidentes foram Marx e Freud. Eles contaram histórias diferentes, diferentes tanto do conto liberal quanto um do outro. Nesta palestra, vou explicar como Marcuse conciliou as diferenças entre eles. Seu freudo-marxismo exigiu grandes ajustes nas histórias contadas por esses dois autores. O resultado é uma síntese surpreendente.
Então, quais são as histórias de Freud e Marx?
Freud propôs que a raça humana era originalmente organizada em pequenos grupos familiares dominados por um pai que monopolizava as mulheres para seu próprio prazer. Eventualmente, os irmãos privados se rebelaram, mataram o pai e tiveram acesso aos prazeres formalmente negados a eles. Mas experimentaram a culpa e internalizaram a repressão que lhes fora imposta pelo pai. Essa culpa internalizada tornou-se a base sobre a qual se construiu a vida civilizada, culminando nos seres humanos cada vez mais reprimidos e neuróticos da época de Freud.
Em última análise, era isso que Freud esperava explicar: o retorno do reprimido na forma de miséria psicológica e violência em escala civilizacional.
Um fundamento estrutural subjaz à história de Freud. Ele argumentou que existem duas unidades básicas, Eros e Tânatos. Eros aspira criar unidades maiores a partir dos fragmentos do mundo social. Tânatos visa retornar à matéria inorgânica e é, portanto, um instinto destrutivo. A sexualidade é um aspecto de Eros, mas Eros inclui muito mais; inclui, essencialmente, todos os impulsos afirmativos da vida do ser humano.
A repressão cada vez mais intensa associada ao progresso da civilização sublima a energia erótica e a expressa em domínios como a arte, a religião e o amor familiar. Enquanto isso, Eros alista Tânatos em seu serviço e direciona suas energias destrutivas para a natureza. Esta é a base do progresso técnico. Mas a tecnologia torna a competição entre Eros e Tânatos pelo controle da psique cada vez mais perigosa. A conclusão de Freud era, portanto, bastante pessimista em contraste com o otimismo liberal.
A história de Marx não poderia ser mais diferente. No início, os seres humanos viviam em sociedades tribais caracterizadas pela cooperação e partilha entre os seus membros. Não havia propriedade privada nem competição por recursos escassos. Mas com o advento da agricultura e a organização de sociedades de grande escala surgiu um padrão de exploração em que uma classe dominante monopolizava os frutos do trabalho da grande maioria. Isso possibilitou o progresso social e técnico, culminando no capitalismo moderno. À medida que a cooperação declinava, a individualidade se desenvolvia, culminando no indivíduo moderno, livre de superstições e consciente de interesses reais.
Com a revolução industrial, o capitalismo produziu tais indivíduos na forma de um proletariado engajado no trabalho cooperativo. Esta é a primeira classe trabalhadora capaz de compreender e resistir à sua exploração. O capitalismo é, portanto, a última das sociedades de classes; ela será logo substituída por uma nova forma de organização social baseada novamente na cooperação e não na competição, mas com um alto nível de desenvolvimento individual.
A condição para esse desenvolvimento é o enriquecimento da sociedade pelo próprio capitalismo. O padrão de progresso em Marx é dialético: a cooperação sem individualidade é sucedida pela individualidade sem cooperação e, finalmente, o comunismo combina as virtudes de ambas as formas anteriores de vida; eis que ele é uma sociedade baseada na cooperação mas que promove a individualidade.
A história de Freud culmina no presente, em um mundo que caminha rapidamente para a violência extrema da Segunda Guerra Mundial. A história de Marx termina em um futuro comunista distante em que o conflito social e nacional terá sido resolvido. A história de Freud é baseada na psicologia, a de Marx na economia. Ambos contestam a ideia liberal de progresso contínuo sob o regime capitalista democrático, mas divergem de maneira fundamental. Como reconciliá-los e por que alguém tentaria conciliar visões de mundo tão diferentes?
A resposta a essas perguntas encontra-se na situação peculiar da teoria marxista após a Primeira Guerra Mundial. Os grandes partidos socialistas da Primeira Internacional apoiaram a mobilização para a guerra, exceto na Rússia. Isso era uma indicação perturbadora de que o nacionalismo era uma força mais poderosa na classe trabalhadora do que a consciência de classe proletária.
A revolução que Marx previra não ocorreu no rico Ocidente capitalista e, em vez disso, ocorreu no país mais atrasado da Europa. Os marxistas buscavam uma explicação. Eles não podiam mais negar a lacuna existente entre o proletariado real e o ideal, ou seja, o proletariado revolucionário. O que poderia explicar essa lacuna?
Marx supunha que a condição da classe operária lhe permitiria compreender racionalmente sua situação e responder em conformidade. Essa suposição era claramente derivada da velha história liberal do progresso, adaptada apenas ligeiramente na versão de Marx pela introdução de uma ruptura revolucionária.
Mas, na realidade, a crescente racionalidade da classe trabalhadora que Marx previra foi superada por um entusiasmo irracional pela violência contra inimigos imaginários. Claramente, como Freud argumentou, uma explicação psicológica seria necessária. Mas a própria explicação de Freud previa o futuro e deixava poucos motivos para esperança. Adaptar a explicação de Freud ao marxismo exigiria uma grande cirurgia.
Houve várias tentativas de realizar essa operação. Os mais famosos foram devidos a Wilhelm Reich, Erich Fromm e Herbert Marcuse. Slavoj Žižek pode ser mencionado como um sucessor contemporâneo. Como mencionei anteriormente, vou me concentrar na tentativa de Marcuse no restante desta palestra.
A visão racionalista do proletariado de Marx depende de sua noção de que as pessoas são, em última instância, movidas por necessidades materiais. As necessidades do proletariado não podem ser satisfeitas no âmbito do capitalismo; é, portanto, a realização desse fato que deveria motivar a revolução.
Mas, como aponta Douglas Kellner, Marcuse tinha consciência de que o ser humano vive não só pela necessidade, mas também pelo desejo. A estrutura do desejo é mais complexa e menos suscetível a uma explicação racionalista. O relato de Freud serve a Marcuse como ponto de partida, mas a ele acrescenta uma perspectiva histórica derivada de Marx.
Lembre-se que em Freud a busca do prazer pelos bebês é modificada pelo encontro com uma realidade inflexível. A energia libidinal dedicada à busca do prazer é inibida e um ego vem a ser construído como capaz de se adaptar à realidade. O princípio do prazer está subordinado ao princípio da realidade. Esta é a condição da possibilidade de civilização.
Daí decorre muitas consequências. A sexualidade genital prevalece à medida que o corpo é dessexualizado e adequado para tarefas produtivas e sociais. As limitações morais na busca do prazer sublimam a energia libidinal e constroem unidades sociais e conquistas culturais maiores. Isso é o que significa para a psique humana adaptar-se à realidade.
Mas Marcuse pergunta: o que é a realidade? É essencialmente o mesmo para todos os tempos? Não de acordo com a teoria marxista. Marcuse argumenta que a realidade à qual o ego deve se adaptar é radicalmente diferente em diferentes épocas históricas. O real é muito diferente para a sociedade de classes em comparação com o comunismo primitivo da tribo e o comunismo futuro da sociedade rica construída com base nas conquistas do capitalismo. A historicização do princípio de realidade freudiano é a chave da síntese de Marcuse.
Marcuse concorda com Freud que a civilização requer repressão. A questão que põe é: quanto?. A resposta depende do grau de escassez. Nas sociedades de classes pobres, os indivíduos devem restringir seus desejos, porque os meios de satisfação geralmente faltam. O grau de repressão, tanto interna quanto externa, necessário para manter a ordem civil é, portanto, alto.
O capitalismo avançado produziu uma infinidade de bens de tal modo que a escassez não é mais a principal razão da repressão. Marcuse distingue, portanto, o que chama de princípio do desempenho do princípio de realidade de Freud. O princípio do desempenho ajusta os indivíduos às formas de escassez artificiais criadas pelo capitalismo avançado. Correspondente à diferença entre a renúncia mínima ao desejo exigida pelo princípio de realidade e o excesso imposto pelo princípio do desempenho, Marcuse distingue entre repressão necessária e repressão excedente.
O excesso representado pelo excesso de repressão pode ser dispensado sem ameaçar a sobrevivência da civilização. Agora, a revolução pode ser conceituada de novo em termos freudianos como o fim da repressão excedente e do princípio do desempenho.
Marcuse argumenta que o grau de repressão diminui em certa medida conforme as sociedades ficaram mais ricas. O período pós-Segunda Guerra Mundial foi caracterizado por uma mudança de uma sociedade que valorizava o trabalho para uma sociedade de consumo que se deleitava com os gastos e até mesmo liberava a sexualidade em alguma medida dos laços da moral tradicional. No entanto, o rebaixamento da barra repressiva foi bloqueado pelo foco no consumo individual e na sexualidade genital.
A liberação parcial da energia libidinal permitiu ao capitalismo alistar a população em uma luta competitiva pela existência muito depois de ter sido tornada obsoleta pela extraordinária produtividade do trabalho em uma economia tecnologicamente avançada. Marcuse chamou esse ajuste de “dessublimação repressiva”, o retorno das energias libidinais aos seus canais normais de satisfação em condições que ligam os indivíduos cada vez mais firmemente a uma sociedade injusta.
Assim, ao contrário da piada desinformada de Foucault, Marcuse sempre esteve bem ciente de que o sexo é favorecido pela sociedade capitalista adiantada, ou seja, nos últimos tempos. Essa qualificação da teoria requeria uma investigação mais profunda da psique sob o capitalismo e seu possível futuro sob o socialismo. Era, pois, preciso voltar à questão da natureza da realidade à qual o ego deve se ajustar. Essa pergunta não é tão simples quanto parece.
Por realidade Freud entende, inicialmente, o mundo tal como ele se apresenta aos indivíduos. Preocupou-se, por isso, apenas com a quantidade de bens disponíveis nesse mundo. A insuficiência de meios de satisfação exige repressão. Mas a dessublimação repressiva mostra que, para além de uma certa quantidade de bens, diferenças qualitativas aparecem no que se apresenta como mundo. Dito de outro modo, é preciso ver a relação do princípio do prazer com o princípio de realidade. Essas diferenças se correlacionam com diferentes estruturas do psiquismo, não apenas com diferentes graus de repressão.
Aqui Marcuse dá vários saltos ousados para além de Freud, inspirado por sua própria concepção de sexualidade e por sua formação filosófica em Hegel e em fenomenologia. O ponto central da divergência tem a ver com a natureza da fantasia ou imaginação – tal como é chamada na Filosofia. Na sociedade de classes, a fantasia está associada à sexualidade perversa e à arte. Essas associações não são estranhas ao ponto de vista freudiano, uma vez que ambas são expressões de Eros. Eis que estão fora da “realidade” enquanto objetivo de ajuste. O ego deve disciplinar a fantasia para permanecer em contato com as condições de sobrevivência no mundo real.
Mas Marcuse afirma que, com a abolição da escassez, a realidade se abre para integrar esses aspectos excluídos. É importante evitar uma redução simplista dessa projeção a algum tipo de profusão orgástica. Este é o erro de muitos críticos que veem apenas regressão na teoria de Marcuse. Mas, na verdade, ele está repetindo o padrão dialético de desenvolvimento que Marx introduziu em sua filosofia da história, desta vez no domínio das estruturas da personalidade. Não há retorno às estruturas infantis, mas sim uma recapitulação de certos aspectos positivos do estágio inicial do desenvolvimento no nível da personalidade adulta civilizada.
Há quatro formulações diferentes dessa notável hipótese nos escritos de Marcuse.
- Primeiro, ele argumenta que a revolução libertará o corpo de sua dedicação dessexualizada ao trabalho. Toda a superfície do corpo será erotizada e as formas perversas de comportamento sexual atualmente condenadas na sociedade de classes deixarão de ser estigmatizadas.
- Um novo conceito de razão incorporando a imaginação acompanhará as mudanças sociais e econômicas trazidas pela revolução. Esse novo conceito de razão reconhecerá as potencialidades das coisas como “reais”.
- A exclusão da arte e, portanto, da imaginação da relação técnica com a realidade também será superada em uma sociedade socialista.
- Finalmente, vem talvez o mais estranho: o próprio ser será transformado. Ora, esse ponto é por vários motivos uma tese muito estranha. O mundo, a “realidade”, estará presente como objeto estético para uma percepção erotizada.
A seguir, abordarei essas quatro consequências utópicas do conceito de revolução de Marcuse.
Sexualidade. A sexualidade no bebê não é especializada, mas envolve todo o corpo. Essa sexualidade polimorfa entra em conflito com o princípio de realidade. A sexualidade genital emerge no adulto como um canal aceitável para o desejo. A especialização do corpo para o trabalho acompanha o privilégio da sexualidade genital e da família monogâmica sob a autoridade paterna.
Essas estruturas são historicamente contingentes, dependentes do ajuste do psiquismo e da sociedade às condições de escassez e domínio de classe. Uma vez eliminadas essas condições, as suas consequências também podem ser superadas. Assim, a revolução afetará não apenas a vida social e econômica, mas também a maneira como os indivíduos compreendem e vivem sua existência corporal.
Marcuse interpreta essa mudança no que só pode ser descrito como uma provocação para a época em que estava escrevendo. Eros e a Civilização contém uma reavaliação positiva da perversão sexual. Pois, para Freud, na sociedade atual, as perversões devem estar, em grande parte, confinadas à fantasia. As manifestações perversas da sexualidade sem ligação com a reprodução e desconectadas das exigências da vida familiar e do trabalho são incompatíveis com a vida civilizada. Mas Marcuse argumenta que, com a transformação do princípio de realidade, a sexualidade polimorfa original pode retornar de tal modo que as fantasias possam ser realizadas.
Notavelmente para 1955, Marcuse oferece uma defesa fundamentada do sadomasoquismo. Eis a passagem em questão:
“O termo perversões abrange fenômenos sexuais de origens essencialmente diferentes. O mesmo tabu é colocado sobre as manifestações instintivas incompatíveis com a civilização e sobre aquelas incompatíveis com a civilização repressiva, especialmente com a supremacia genital monogâmica.
Uma diferença semelhante prevalece dentro de uma mesma perversão: a função do sadismo não é a mesma em uma relação libidinal livre e nas atividades das tropas das SS. As formas desumanas, compulsivas, coercitivas e destrutivas dessas perversões parecem estar ligadas à perversão geral da existência humana em uma cultura repressiva, mas as perversões têm uma substância instintiva distinta dessas formas; e essa substância pode muito bem se expressar de outras formas compatíveis com a normalidade na alta civilização”.
Hoje, faz-se facilmente a distinção contida nessa passagem da argumentação de Marcuse. O estigma associado ao comportamento sexual não convencional recuou a tal ponto que as propagandas agora exibem rotineiramente referências sutis ou não tão sutis a atividades que não eram mencionáveis em 1955.
O espírito de São Francisco se espalhou amplamente nos últimos anos. Mas o argumento de Marcuse não é sobre direitos civis ou tolerância, o que deve ter parecido fora de questão na época. Ele aborda uma questão filosófica fundamental, a saber, o modo de existência implícito em várias formas de expressão sexual: o que é ser humano e ter um corpo?
Racionalidade. A defesa de Marcuse da perversão e da arte não é uma rejeição da racionalidade, mas sim a projeção de uma nova forma de “racionalidade libidinal” não mais vinculada ao princípio do desempenho. Marcuse sugere uma ampliação do conceito de razão para além da observação e análise dos fatos empíricos. O novo conceito de razão teria um aspecto imaginativo que identificaria o que Marcuse chama de “segunda dimensão”.
Essa segunda dimensão são as potencialidades inerentes às coisas. “Eros desperta e liberta potencialidades que são reais nas coisas animadas e inanimadas, na natureza orgânica e inorgânica-real, mas na realidade não erótica suprimida.” A apreensão imaginativa das potencialidades não é arbitrária, mas responde a uma concepção de crescimento modelada na vida. A vida tem uma direção de desenvolvimento e floresce onde pode realizar seus potenciais. A razão constrói imaginativamente uma ideia de potencial a partir de exemplos e indicações que encontra em meio aos fatos. Ao fazê-lo, não abandona a racionalidade, mas a valoriza e enriquece.
Aristóteles e Hegel estão no pano de fundo dessa concepção enriquecida de racionalidade.
A ideia de potencialidade entra na filosofia através do conceito de essência de Aristóteles. Segundo Aristóteles, a essência das coisas é aquela que persiste através de mudanças em sua aparência. Ao mesmo tempo, a essência consiste em seu maior potencial. Aristóteles postulou suas essências como atributos reais das coisas. Trata-se de uma concepção teleológica de incompatibilidade com a visão científica moderna.
Marcuse baseia-se na revisão de Hegel do conceito de essência que visava construir uma alternativa moderna à metafísica de Aristóteles. Hegel argumentava que a essência das coisas é constituída pelas relações entre suas aparências e seu contexto. Assim, a potencialidade essencial não é uma entidade metafísica misteriosa, mas um aspecto explicável dos fenômenos. Como Hegel Marcuse manteve o ponto essencial de Aristóteles, a saber, que a existência empírica das coisas não é toda a sua realidade porque elas contêm um potencial de desenvolvimento que “nega” ou vai além de seu estado atual.
Marcuse valeu-se dessa reconstrução hegeliana da ideia de essência ao argumentar que a projeção das potencialidades depende da imaginação. Assim, na medida em que a essência é um objeto de consideração racional, a própria razão deve incorporar a faculdade imaginativa.
Mas em sua concepção freudiana da psique, a imaginação está enraizada em Eros. Daí sua noção de “racionalidade libidinal”. Esse novo conceito de razão abordaria os arranjos sociais e o controle técnico da natureza a partir da compreensão das potencialidades dos seres humanos e das coisas naturais. Esta seria uma forma menos agressiva e destrutiva de racionalidade, mas uma forma de racionalidade, no entanto.
Estética. Marcuse observa que o conceito de estética é ambíguo, cruzando a linha entre percepção e expressão artística. A arte apresenta objetos sensuais em sua forma ideal, despidos de traços contingentes que contradizem sua essência. Nesse sentido, a estética é uma faculdade cognitiva. Ele oferece “uma síntese, remontando os pedaços e fragmentos que podem ser encontrados na humanidade e na natureza distorcidas. Esse material recolhido tornou-se domínio da imaginação, foi sancionado pelas sociedades repressivas na esfera da arte.”
Marcuse argumenta que, em uma sociedade não repressiva, uma racionalidade não mais confinada ao ajustamento e à sobrevivência pode realizar a estética na realidade. Este torna-se um tema central em sua projeção de uma reconstrução da ciência e da tecnologia sob o socialismo.
Em 1968, Marcuse retornou a essa ontologia em suas considerações sobre a nova esquerda. Ele argumentou que a nova esquerda não estava simplesmente defendendo políticas alternativas com base em opiniões políticas radicais, mas prefigurava uma relação existencial diferente com o mundo que privilegiava Eros.
Em suas ações prevalecia um mundo da vida (Lebenswelt) estético que se apresentava como uma alternativa crítica à uma realidade violenta. Marcuse não esperava que a nova esquerda fizesse a revolução, mas a via como a prova viva da possibilidade de um mundo diferente. Uma racionalidade libidinal combinando imaginação e razão revelará uma realidade erótica, uma realidade que se apresenta nas formas de beleza e como contendo potenciais à espera de realização.
Ser. Nosso senso comum nos diz que o ser consiste simplesmente nos fatos, nas coisas que percebemos no mundo. Não costumamos levar em conta nossa atitude em relação a essas coisas como um aspecto de seu ser. Nossa atitude consiste apenas ao estado de nossa psique. O ser, assim, seria independente da subjetividade. Essa visão de senso comum é compatível com a atitude científica, mas deixa muita coisa de fora. A experiência é muito mais complexa do que os fatos nus. Marcuse contesta a visão do senso comum e argumenta que as categorias freudianas de Eros e Tânatos não são meramente pulsões subjetivas, mas refletem a natureza do próprio ser.
A ontologia de Marcuse baseia-se na teoria freudiana do narcisismo primário; no entanto, ele vai além de Freud ao implicar o próprio ser no funcionamento das pulsões instintivas. Marcuse encontra indícios disso na teoria freudiana. A experiência da criança, a princípio, “engole o ‘ambiente’, integrando o ego narcísico com o mundo objetivo”. Essa noção, que em Freud descreve um estado psicológico primitivo, torna-se a pista para Marcuse de que a metapsicologia esconde uma ontologia à espera de ser desenvolvida. Eis o que escreve Marcuse:
“O narcisismo pode conter o germe de um princípio de realidade diferente: a catexia libidinal do ego… pode tornar-se a fonte e o reservatório de uma nova catexia libidinal do mundo objetivo – transformando este mundo em um novo modo de ser.” “Uma nova experiência básica do ser mudaria a existência humana em sua totalidade.” “O ser é vivido como gratificação, que une o homem e a natureza para que a realização do homem seja ao mesmo tempo a realização, sem violência, da natureza.” Essa experiência revelaria o mundo em sua beleza e como essencialmente correlacionado com o desejo humano.
Não se trata aqui de simplesmente reduzir a gratificação a atos sexuais. Marcuse reconhece que a vida civilizada envolve muita coisa. O triunfo de Eros não apenas ativaria as perversões, mas iria além da sexualidade para afetar o trabalho, a tecnologia, a atividade criativa e as relações humanas. Eros teria o poder de almejar fins culturais mais elevados em condições não repressivas.
Marcuse chamava isso de “autosublimação de Eros”. Ele acreditava que podia encontrar apoio para essa noção em uma breve observação na qual Freud sugeriu que a sublimação envolve um redirecionamento inicial da energia libidinal em direção ao ego antes que ele seja ligado ao novo objeto. Quer esta seja ou não uma interpretação correta de Freud, Marcuse precisa de tal conceito para argumentar por um “modo não repressivo de sublimação que resulta de uma extensão e não de uma deflexão constrangedora da libido”. Essa hipótese lhe permite reconstruir as condições da civilização sem excesso de repressão.
A conclusão de Marcuse é completamente contraintuitiva. Eros e a Civilização oferece notavelmente poucos argumentos para justificar essa transmutação da psicologia em ontologia. A certa altura, ele simplesmente afirma que, uma vez que os instintos primários pertencem tanto à matéria orgânica quanto à inorgânica, eles implicam uma ontologia. O non sequitur é óbvio demais para ser acidental. Marcuse deve ter decidido, em algum momento da composição de seu livro, simplesmente pular a objeção de que a psicologia não tem implicações ontológicas necessárias.
O salto tem suas fontes e sua justificativa na fenomenologia implícita de Marcuse.
O não reconhecimento dessa fonte filosófica faz parecer que a ontologia revolucionária é regressiva. Mas Marcuse não pede o retorno ao útero nem mesmo a condição do bebê unido à mãe. São argumentos frágeis contra Marcuse que não acertam o alvo. Mais relevante é a transcendência da cisão entre sujeito e objeto na tradição filosófica a que pertence a obra de Marcuse.
Nesse aspecto, Marcuse está sob a influência de seus primeiros professores, Husserl e Heidegger. É verdade que Marcuse rejeitou Heidegger em 1933 depois que ele declarou suas simpatias nazistas. Contudo, como veremos, uma corrente heideggeriana subterrânea subsiste no freudismo-marxismo de Marcuse. Isso exigirá alguma explicação do que Heidegger quis dizer com seus conceitos de “mundo” e “ser-no-mundo”.
O conceito fenomenológico de mundo é um contexto ou ambiente orientado por algum tipo de projeto fundamental. Por exemplo, poderíamos chamar a universidade de mundo nesse sentido. Todas as coisas e pessoas que encontramos no âmbito da universidade estão conectadas por uma missão ou projeto pretendido pelos participantes da instituição. Esses participantes encontram a universidade como um sistema de entidades significativas, não como fatos brutos no sentido científico do termo. É claro que os fatos existem e podem ser usados por especialistas para projetar edifícios ou contar alunos. Mas, obviamente, os aspectos mais importantes da universidade se perdem em tais atividades.
Considerada como um todo significativo, a universidade é o objeto essencial de uma compreensão interpretativa; não é indiferente à subjetividade, mas, pelo contrário, está essencialmente unida a ela. Heidegger argumenta que sujeito e objeto em geral pertencem a um “ser-no-mundo” unificado que inclui aspectos da realidade dos quais a ciência normalmente abstrai. Esses aspectos incluem significado, valor e humor.
Em termos heideggerianos, dir-se-ia que o mundo é revelado ou revelado ao sujeito sob esses aspectos, e não que o sujeito impõe seus significados, valores ou humores aos fatos. Talvez seja mais fácil entender essa ideia através da noção de perspectiva. Uma perspectiva não cria o que é revelado, ela possibilita que um aspecto da realidade seja percebido. Heidegger estendeu tal noção a todas as nossas relações com o mundo e negou a existência de um conhecimento capaz de explicar perspectivas de fora, a partir de um “olhar do nada”.
Em sua obra posterior, Heidegger descreve o modo de revelar nos tempos modernos como “tecnologia”. Com isso ele quer dizer que o mundo se apresenta como uma vasta soma de recursos técnicos para um sujeito que o entende como tal. A visão de Marcuse sobre o capitalismo avançado é bastante semelhante, mas ele vê nessa condição uma expressão da pulsão de morte.
Talvez uma simples obsessão pelo controle instrumental parecesse insuficiente para explicar um mundo em que a guerra acaba de matar 40 milhões e a paz é mantida por uma estratégia de destruição mutuamente assegurada. Marcuse convoca Freud para explicar o modo de existência dos sujeitos de um mundo de tão extrema agressão tecnológica e violência.
Isso faz algum sentido do ponto de vista marxista? Há uma maneira de elucidar um aspecto do pensamento marxista a partir de um ângulo original. Considere a seguinte passagem de Marx.
“O modo de produção não deve ser visto simplesmente como reprodução da existência física dos indivíduos. Pelo contrário, é uma forma definida de sua atividade, um modo definido de expressar sua vida, um modo de vida definido. Como os indivíduos expressam sua vida, assim eles são.”
Esta passagem é geralmente interpretada pelos marxistas por um viés determinista. Eles argumentam que Marx está dizendo aqui que o processo de produção é a base causal de uma forma de vida social.
Mas também poderíamos interpretar essa passagem fenomenologicamente como uma descrição de um mundo existencial. Nesse sentido, Marx estaria dizendo que o nível econômico, o modo de produção, é mais do que econômico porque é a expressão de um certo modo de estar no mundo.
Essa compreensão fenomenológica do conceito de Marx do modo de produção como mundo reaparece no livro O homem unidimensional de Marcuse. Nesse livro, ele descreve o capitalismo avançado como uma “forma específica de vida” baseada na tecnologia. Ele escreve: “Quando a técnica se torna a forma universal de produção material, ela circunscreve toda uma cultura; projeta uma totalidade histórica, um mundo.” Os capítulos finais do livro descrevem o socialismo como um mundo alternativo caracterizado por diferentes tecnologias e uma forma diferente de vida.
Em 1969, Marcuse publicou Um ensaio sobre a libertação. Este livro foi escrito à sombra dos acontecimentos de Maio de 1968 em França. Os protestos, então, defendiam “L’imagination au pouvoir”, um slogan que não poderia estar mais próximo das preocupações de Marcuse. Era como se os jovens do mundo tivessem se tornado discípulos de Marcuse, embora na realidade não houvesse tanto uma influência quanto uma coincidência de respostas ao capitalismo avançado.
Marcuse agora desenvolveu seus velhos argumentos para uma civilização menos repressiva e com maior especificidade. Ele argumentou que havia surgido uma “nova sensibilidade” relacionada ao mundo esteticamente e não instrumentalmente. Note-se que não se trata de uma simples questão de opinião, mas de uma estrutura de sentimentos e práticas, de uma política existencial. A generalização dessa política, se ocorresse, levaria a uma revolução mais profunda do que se imaginava até então.
No centro de sua posição está a ideia de uma transformação do modo de produção sob a influência de Eros. A ideia não é, claro, fazer um colóquio franciscano com os pássaros, como afirmava Habermas, mas buscar uma relação mais harmoniosa com as potencialidades da natureza que favorecem a vida humana. No final de sua vida, Marcuse reconheceu esse impulso no movimento ambientalista, que ele interpretou como um ressurgimento do instinto de vida contra o instinto destrutivo incorporado na tecnologia existente. A síntese de Marx e Freud culmina no foco no design tecnológico como expressão dos instintos.
Concluirei com uma passagem em que Marcuse explica sua visão mais utópica do socialismo. “Para que essa ideia de transformação radical seja mais do que especulação ociosa, ela deve ter uma base objetiva no processo produtivo da sociedade industrial avançada. Em suas capacidades técnicas e sua utilização. Pois a liberdade depende, de fato, em grande parte, do progresso técnico, do avanço da ciência.
Mas esse fato obscurece facilmente a pré-condição essencial: para se tornarem veículos de liberdade, a ciência e a tecnologia teriam que mudar sua direção e objetivos atuais, teriam que ser reconstruídas de acordo com uma nova sensibilidade – as exigências dos instintos de vida. Poder-se-ia então falar de uma tecnologia de libertação, produto de uma imaginação científica livre para projetar e projetar as formas de um universo humano sem exploração e labuta. Mas essa ciência gaya só é concebível após a ruptura histórica no continuum da dominação – como expressiva das necessidades de um novo tipo de homem.”

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