Publica-se aqui uma resenha irônica e desdenhosa de quatro livros abaixo mencionados que analisaram criticamente o capitalismo após a crise econômica de 2008-09 e a pandemia de 2020-21 para anunciar que ele já foi superado – mesmo estando aí produzindo mercadorias, explorando trabalhadores e estraçalhando vidas.
Apesar do viés social-democrata pós-moderno do autor, apesar de falta de qualidade crítiica, ele fornece algumas informações que ajudam a fazer uma eventual avaliação desses folhosos. Segundo ele, esses livros surgiram porque essas duas crises ‘desferiram golpes devastadores em uma sociedade de mercado que já estava cambaleante – esvaziada que fora pela “financeirização” ou pela “desmaterialização” dos ativos”. Veja-se, pois, o que disseram em resumo.
O que foi o capitalismo?
Autor: James Livingston[1] – Project Syndicate – 16/02/2023
O que não acaba hoje em dia? O que não está à beira da extinção? A lista de isenções não é longa e, nós – seres humanos –, não estamos certamente nela.
Não subsistirão abelhas, borboletas, litoral, infância, civilidade, recifes de corais, democracia, elefantes, fatos, famílias, sapos, gênero, geleiras, Deus, humanidades, amor, moralidade, classes médias, minibares, fronteiras nacionais, objetividade, sistemas partidários, patriarcado, religião, ciência, branquitude, trabalho e muito mais. De acordo com ativistas, jornalistas e escritores de todas as tendências políticas, tudo isso está ameaçado.
E agora, se formos acreditar em Quinn Slobodian, Clara E. Mattei, McKenzie Wark e Yanis Varoufakis, o capitalismo também já passou de sua data de validade. Era uma vez, como diz todo o começo de estória… Há pouco tempo, era mais fácil imaginar o fim do mundo do que imaginar o fim do capitalismo. Agora, já não.
Karl Marx gostava de dizer que o efeito de um choque externo em qualquer organismo depende tanto da condição do organismo quanto da natureza do choque. Esses autores concordam no sentido de que consideram a crise econômica de 2008-09 e a pandemia de 2020-21 como golpes em uma sociedade de mercado que já estava cambaleante. Eis que ela fora esvaziada pela “financeirização” ou “desmaterialização” de ativos e pelo desenvolvimento simultâneo de meios algorítmicos capazes de prever, até mesmo de produzir, o comportamento dos consumidores; capazes até mesmo de moldar, até mesmo de controlar, os mercados.
Talvez, sugerem, a decadência intelectual – as deficiências grosseiras de lógica, evidência, simpatia e gosto inscritas nas complacências do monetarismo, neoliberalismo, populismo e/ou radicalismo de livre mercado – tenha alimentado a decomposição ideológica, tornando a justificativa para a existência do capitalismo mais difícil para qualquer pessoa inclinada ou empregada a fazê-lo.
Ilhas fantasia
Esta última possibilidade é a explorada por Quinn Slobodian em Crack-Up Capitalism. Eis que esse livro se lê como a publicação revisada por pares de um recém-formado doutor em antropologia que testemunhou as cerimônias sanguinárias de uma tribo perdida em um continente escuro. E que dela voltou, meio vivo e meio morto, para contar a história. Que tal dar uma olhada em suas anotações de campo, onde, à luz de uma lanterna de querosene, ele expressou sua crua admiração – e horror – quando se deparou com esses rituais horríveis.
Agora, o ambiente é do tipo de Hong Kong (antes de a China acabar com sua autonomia). Percebida como um arquipélago global de “zonas” despolitizadas e isentas de impostos que, de acordo com o projeto original de Milton Friedman, são Estados-nação em miniatura que funcionam como pastagens em que os capitalistas vagam ao ar livre. A tribo é a comunidade imaginada conhecida como “tech bros”: homens meninos, boorish, unidos por sua crença de que teriam sobrevivido a todo enxame de moscas. E as cerimônias e rituais incluem aqueles conduzidos por xamãs como Peter Thiel e Marc Andreessen, cujas declarações são um encantamento destinado a instigar certos seres menores à ação sanguinária.
Os membros da tribo, cada um deles “soberano” por direito próprio adoram várias divindades, algumas delas com meros meses de vida útil. Mas a figura que preside seu panteão é um deus chamado por nomes aparentemente intercambiáveis: tecnologia ou mercado. De Hong Kong a Dubai, Honduras à Somália, de Madagascar à África do Sul, os membros da tribo buscam lugares onde possam pensar – erroneamente, é claro – que o capitalismo pode ainda prosperar. Julgam que é assim porque a tecnologia ou o mercado são aí irrestritos, não regulamentados e não tributados. Para prevalecer, é preciso apenas ser invulnerável aos governos, ou, mais precisamente, aos governos concebidos como um empreendimento que requer o consentimento dos governados.
Em outras palavras, esses lugares devem estar livres de democracia. Na medida em que exigem governo ou política pública, os habitantes devem ser tratados como acionistas, não como cidadãos. Esses lugares nem precisam ser “lugares” reais. O desejo uniforme da tribo é construir refúgios seguros, criar espaços vazios, encontrar “terras virgens”, virtuais ou não: o metaverso ou o universo digital das “sedes” corporativas isentas de impostos servirão tão bem quanto uma plantação de tijolo e argamassa como, por exemplo, a cidade-estado de Cingapura.
A questão é escapar ou separar-se do estado fracassado da modernidade pós-industrial, quase democrática, em vez de repará-lo. Aplicando a estrutura clássica de “saída, voz e lealdade” de Albert Hirschman, “saída” é a única opção para “indivíduos soberanos” como Thiel e Andreessen, ou Elon Musk e Balaji Srinivasan. Eis que a sua “voz” não pode ser ouvida pelas massas com os ouvidos tapados; a sua “lealdade”, por sua vez, não pode ser comprada ou anexada a nada além de si mesma. O significado duradouro da fronteira na história americana nunca pareceu tão óbvio e tão pungente.
Se os projetos e manifestos desses “radicais de mercado”, como Slobodian os chama, parecem comicamente inane e lamentavelmente ineptos (ver: Twitter/X), é porque provêm de uma resoluta ignorância e desprezo dos companheiros sapiens de seus criadores. E, no entanto, estes são os “líderes de pensamento” do nosso tempo, e o seu “estilo de liderança” é consistente com o de Donald Trump e dos seus heróis autoritários.
Se eles representam uma nova classe dominante, como sugerem Varoufakis e Wark, já perderam, ou nunca adquiriram, o que entendo ser o traço essencial de qualquer classe – pelo menos em suas versões modernas: uma profunda crença em sua capacidade de governar, não por direito de nascença ou pela força, mas criando opinião pública e restringindo a volição, ou a “fabricação de consentimento”.
Essa crença pressupõe, e eventualmente exige, o controle (e não a propriedade, tal como na compra do Twitter por Musk) dos meios de comunicação, o que o sociólogo C. Wright Mills e seus professores da Escola de Frankfurt chamaram de “aparato cultural”. Sem esse controle, uma classe dominante é uma casca vazia. Tem poder, mas não tem nem legitimidade nem autoridade. Está, portanto, propensa a invocar ideias fastuosas em defesa de sua posição privilegiada e convocar as forças armadas para impor a lei e “restaurar” a ordem social. Dá-se exemplos: na Inglaterra, no início do século XVII, na América do Norte e na França, no final do século XVIII e na Rússia, México e China no início do século XX.
Nestes tempos farsescos, o grande líder convida meliantes e descontentes a invadir a cidadela de uma república constitucional. Tudo em nome de um bufão palhaço disposto a alfinetar até mesmo as filhas dos seguidores. É assim que o fim de algo está próximo. De qualquer forma, está mais perto do que aparece no espelho retrovisor.
O progresso da decadência
Se Slobodian é o antropólogo castigado que registra fielmente os resquícios de uma civilização à beira da extinção, Mattei é a médica clínica cuja abordagem das evidências disponíveis em A Ordem Capital é mais epidemiológica. Eis que produziu um estudo longitudinal com o diagnóstico da mesma decadência e da mesma doença subjacente.
Ela argumenta que “austeridade” é o nome do regime ideológico que a manutenção da ordem social sob o capitalismo corporativo exige, e por capitalismo ela quer dizer algo maior do que a soma de suas partes econômicas: um sistema social em que a alocação de recursos é determinada mais ou menos anonimamente, de acordo com critérios fornecidos pelos mercados. É um sistema que, necessariamente, inclui leis, regras, regulamentos, teorias e normas culturais ou expectativas políticas que são poderosas forças de produção, não filigranas superestruturais efêmeras.
A austeridade organiza esses elementos em um composto coerente, impondo uma escassez de imaginação, bem como das exigências materiais da vida cotidiana – novamente, restringindo a volição e estabelecendo os limites da opinião pública. Como programa de “restauração”, a austeridade é uma ideia antiga. Foi a resposta reflexiva dos governos ameaçados durante a Grande Guerra pela revolta das massas contra a sabedoria comum. O “business as usual” comanda tendo em vista o bom planejamento bélico e a autogestão dos trabalhadores mobilizados para que possam realizar uma abundância material sob a social-democracia corrupta.
A resposta foi aperfeiçoada no rescaldo da guerra em conferências convocadas pela Liga das Nações. Elas acolheram uma reserva de professores de economia que ensinariam às massas que os orçamentos do governo inchados pelos gastos de guerra (incluindo pensões) precisavam de equilíbrio. Ensinariam, também, que as expectativas aumentadas pelo empoderamento dos trabalhadores em tempos de guerra precisavam ser reduzidas. Como intelectuais orgânicos de um bloco político transnacional, agora nascente, eles convocariam uma ordem mundial “ultra imperialista”. Eis que esses “tecnocratas”, como Mattei os chama, entendiam que seu mandato de representantes das finanças e da indústria tinha um certo conteúdo ideológico.
A declaração sumária da conferência de Bruxelas de 1920 reconheceu que o “primeiro passo” para restaurar a ordem social foi “levar a opinião pública de todos os países a perceber os fatos essenciais da situação e, particularmente, a necessidade de restabelecer as finanças públicas em uma base sólida”. Caso contrário, como assinalou um banqueiro presente na conferência, mesmo os “trabalhadores manuais” continuariam a assumir que a socialização da iniciativa privada era um meio para chegar a um modo de vida melhor, e não apenas uma medida na ocasião da guerra:
“A guerra levou a uma demanda quase universal pela extensão das funções do governo” – explica. “Todos se acostumaram com a assistência do Estado e a atividade do Estado. O socialismo e o nacionalismo passaram a ordem do dia. Os trabalhadores manuais… foram encorajados a esperar… e esperar, algum novo modo de vida, alguma grande melhoria de sua sorte. Essas mudanças, acreditam, podem ser alcançadas se o sistema da indústria privada for substituído por uma espécie de governo ou propriedade comum. Eles não percebem a dura verdade de que… uma vida melhor pode, devido às perdas da guerra, ser agora alcançada apenas através do trabalho e do sofrimento”.
O restante do livro de Mattei é uma leitura raivosa do curso da austeridade na Grã-Bretanha e na Itália durante um período que os americanos conhecem como os anos vinte. Nos três países, o retorno ao “capitalismo puro” foi efetuado pela rápida reprivatização da indústria, por campanhas de fechamentos dos sindicatos e pelo curioso tipo de “disciplina fiscal” que combina reduções severas nos gastos públicos com enormes cortes de impostos.
A Grande Depressão estava a esperar do outro lado dessa transferência generalizada de renda do trabalho para o capital. Nos Estados Unidos e, em menor medida, no Reino Unido, essa transferência foi mitigada por políticas que, como os gastos públicos durante a Grande Guerra, redistribuíram a renda nacional. Desse modo, trabalhadores, mais empoderados, puderam reabastecer os seus orçamentos domésticos às custas dos lucros das empresas. Na Itália, como na Alemanha, a força da depressão seria mitigada pela mobilização permanente de guerra sob os auspícios fascistas e pelos gastos públicos que se seguiram.
Mattei nunca chega a explicar esses resultados muito diferentes entre si na década de 1930, época em que a austeridade presumivelmente se tornou uma sabedoria ancestral. Isso parece ser uma omissão gritante, exceto que, por sua conta, a Revolução Keynesiana consistiu num avanço teórico que não fez muita diferença. O próprio John Maynard Keynes, argumenta Mattei, compartilhava o medo “tecnocrático” de qualquer alternativa ao capitalismo. Assim, ele insistiu, já na Teoria Geral do Emprego, Juros e Dinheiro (1936) e mesmo depois, que o investimento dos empresários era a chave para o crescimento econômico e, portanto, para a estabilidade social.
Não vejo como conciliar esse argumento com o segundo volume do Tratado da Moeda (1930), onde Keynes usa evidências de fontes americanas para documentar um crescimento econômico extraordinário na ausência de aumento do investimento privado. Em seus ensaios do início dos anos 30 em The Nation, Ateneu e New Republic, afirma que as condições materiais para a “sociedade ideal” – isto é, o socialismo – já estão reunidas. Também não consigo conciliar o argumento de Mattei com A Revolução Keynesiana (1944), de Lawrence R. Klein; tem-se aí um ensino destinado a eventuais educadores. Aí se instrui os “tecnocratas” de que eles ficarão desacreditados sem as novas ferramentas teóricas. Essa educação ensina aos empresários que “gastos deficitários e bem-estar social” podem prevenir o fascismo, assim como melhorar os lucros.
Ainda assim, tendo em vista o argumento de Mattei, eu perguntaria, no espírito do crítico literário Fredric Jameson, se o fascismo é o inconsciente político da teoria econômica, aqui entendida como a poesia da corte que vive no castelo do capitalismo corporativo. Mattei enfatiza que a austeridade funcionava então como funciona agora, por meio da exclusão ideológica, da repressão e da dominação, não da persuasão; é tanto um programa político quanto uma agenda econômica, porque exige a subserviência, e não a cooperação voluntária, da população trabalhadora.
“A subordinação da maioria era um pré-requisito essencial para salvaguardar o bom funcionamento da acumulação de capital” – escreve. A lição aprendida na década de 1920 seria usada para efeito mundial semelhante na década de 1970 e depois – inclusive após a Grande Recessão pós-2008. Portanto, ainda estamos à beira do mesmo precipício, olhando para o abismo do fascismo. Não há ainda, ademais, uma narrativa contra hegemônica a não ser que Occupy Wall Street, Bernie, #MeToo e Black Lives Matter qualifiquem melhor os seus componentes.
Verdadeiros detetives
Eu retratei Mattei como uma funcionária diligente da saúde pública que explica pacientemente as origens da imbecilidade epidêmica que Slobodian captura em sua descrição densa do que acontece quando os radicais de mercado começam a “pensar”. Como, então, escalar Wark e Varoufakis? Como profetas que anunciam que, porque o futuro já chegou. Mas é preciso um nome e, além disso, de uma caracterização realista que renuncie a qualquer esperança de um sucessor social-democrata?
Como futuristas que, como o físico Herman Kahn ou como o sábio do marketing, têm perspicácia teórica e inteligência suficientes para prever, com precisão estranha, o que está vindo em nossa direção? Ou, como eu preferiria, como detetives melancólicos que chegam à cena do crime e, com base em seu profundo conhecimento de cenas semelhantes, encontram a arma do crime, identificam o autor e contam a história do que aconteceu antes que a equipe forense apareça?
Seja como for que os chamemos, estamos em dívida, simplesmente porque eles reabriram a questão da periodização que a maioria dos acadêmicos estado-unidenses evita, conscientemente ou não. Há algum tempo, antropólogos, historiadores, economistas, sociólogos, teóricos sociais e críticos literários deixaram de se considerarem capazes ou deixaram de querem definir o capitalismo e as suas consequências.
Para alguns, parece ser um fenômeno transistórico enraizado na natureza humana e, portanto, impermeável à crítica e ao controle político. Nessa perspectiva, há David Graeber e os novos historiadores do “capitalismo racializado”; eis que é preciso agradecer essa ressurreição do espírito alegre de Werner Sombart. Para outros, o capitalismo parece já ter sido suplantado por forças de produção demasiado dinâmicas, até explosivas, para serem contidas pela forma mercadoria e pela relação capital-trabalho na esfera da produção. Graças a Jeremy Rifkin e a certos tecnófilos do Vale do Silício, entre outros, temos agora essa visão ensolarada dos piores tempos.
Wark e Varoufakis adiam a inércia intelectual que vem com essa proposição, declarando que o capitalismo está morto. Depois de pôr a lápide, eles enumeram todas as energias imateriais que levaram a sua superação. De fato, Varoufakis cita o livro de Wark, que é mais uma viagem teórica do que uma investigação empírica, como sua principal inspiração. Mostra que ficou convencido de que Shoshana Zuboff e Cédric Durand não haviam ido longe o suficiente para identificar as Big Tech como apenas mais uma etapa na evolução do capitalismo monopolista. Pela sua contabilidade, Alphabet, Amazon, Meta e o resto não operam apenas plataformas digitais que funcionam como serviços públicos. Por isso, mesmo elas devem estar sujeitas, como argumentou Lina Khan na Comissão Federal de Comércio dos EUA, às leis e regulamentos antitruste relevantes.
Para Varoufakis, essas plataformas são, ao contrário, feudos cuja renda deve ser chamada de aluguel, e não de lucro, porque é um excedente gerado após o expediente pelo trabalho de consumo, por usuários – “proles e servos da nuvem” (ou “hackers”, no léxico de Wark) – que produzem informações comercializáveis gratuitamente, a serem colhidas pelo “capital da nuvem” toda vez que clicam em uma janela piscando ou em um ícone de espera. Eles também podem ser camponeses sem noção produzindo colheitas para seus suseranos. Daí o termo anacrônico “tecno-feudalismo”: “para usar a linguagem dos primeiros economistas como Adam Smith, é um caso clássico de renda feudal derrotando o lucro capitalista, de extração de riqueza por aqueles que já a têm e que triunfam sobre a criação de novas riquezas pelos empresários”. Pois bem!
Varoufakis parece afirmar que os defensores do capitalismo podem reivindicar o alto nível moral para si mesmos. Eis a razão:
“O capitalismo prevaleceu quando o lucro sobrecarregou a renda, um triunfo histórico que coincidiu com a transformação do trabalho produtivo e dos direitos de propriedade em mercadorias a serem vendidas via mercado de trabalho e de ações, respectivamente. Não foi apenas uma vitória econômica. Enquanto o aluguel cheirava a exploração vulgar, o lucro reivindicava a superioridade moral como uma justa recompensa aos bravos empresários que arriscavam tudo para navegar nas correntes traiçoeiras dos mercados tempestuosos.”
Mas o que há neste novo nome? Que recursos intelectuais e vontade política são convocados ao dizer que estamos num estágio de desenvolvimento pós-capitalista? Varoufakis dedica um capítulo inteiro a uma resposta, que se resume a isto: “As palavras que usamos para descrever o sistema econômico atual podem influenciar profundamente se temos mais probabilidade de perpetuá-lo e de reproduzi-lo ou se podemos desafiá-lo ou mesmo derrubá-lo”.
Estou plenamente de acordo, porque as palavras – pelo menos quando unidas para compor frases – tornam-se algo mais do que meros rótulos para coisas que já existem. Tornam-se modos de ver o mundo – ou melhor, de estar nele –,que, orientando-nos para um determinado passado e, assim, situando-nos no presente, preparam-nos para um futuro particular, não para o futuro enquanto tal. O que se ganha, então, ao afirmar que o capitalismo está cedendo lugar, não aos sinais pouco legíveis da social-democracia – uma impossibilidade para Varoufakis, porque a esquerda esqueceu a luta de classes, abjurou a verdade objetiva e abraçou as políticas identitárias – mas a volta, com os seus traços inconfundíveis, do feudalismo?
Na ausência do argumento de Mattei, a resposta aqui oferecida não é a que se esperaria de um keynesiano de esquerda com o tipo de credenciais políticas que Varoufakis adquiriu quando, como ministro das Finanças da Grécia, combateu o programa de austeridade que a Comissão Europeia, o Banco Central Europeu e o Fundo Monetário Internacional vinham tentando impor ao seu país desde 2010.
A coisa agora funciona assim: enquanto o feudalismo oblitera os mercados competitivos, o capitalismo os sustenta (ou já os sustentou), e com eles a possibilidade de uma democracia animada por compromissos com a liberdade e a igualdade, que exigem acesso aberto a recursos, liberdade para inovar, barganha, sufrágio universal e assim por diante. Mas como o “capital em nuvem” é, por definição, um monopólio, os mercados só se tornarão competitivos e propícios à democracia por meio de arranjos cooperativos no nível da empresa, ou seja, apenas na medida em que cada trabalhador tenha uma participação votante na empresa que o emprega.
Essa resposta é preocupante, pelo menos para mim, porque soa muito parecida com a oferecida por aqueles “indivíduos soberanos” que tratam o livre mercado ou a governança das partes interessadas como a resposta apropriada para qualquer pergunta, seja social, política ou pessoal. Não tenho dúvidas de que as preferências dos consumidores, tal como possibilitadas e registadas nos mercados e nos sistemas de preços, são a condição necessária da democracia, social ou não. Também não duvido que a autogestão dos trabalhadores será um elemento crucial na democratização da vida quotidiana, onde o trabalho é a preocupação central de quase todos, ou que a socialização do investimento se completará em pouco tempo, porque o sistema bancário já é propriedade comum dos contribuintes que continuam a socorrê-lo.
Mas duvido que uma abordagem sindicalista para a restauração de mercados competitivos e da democracia política – em que minha posição como cidadão igual a todos os outros seja reduzida à minha função econômica como empregado de uma empresa – seja uma maneira promissora de ultrapassar o estágio atual do desenvolvimento capitalista. A social-democracia ainda está ao alcance. E ela está a nossa espera pelos meios políticos tradicionais de organizar, angariar, votar, agitar, manifestar, ocupar cargos, ensinar, aprender e reorganizar, o que quer que a esquerda esteja pensando ou fazendo sobre relativismo cultural e políticas identitárias.
Dito isso, Wark e Varoufakis escreveram livros indispensáveis que mapeiam a infraestrutura imperial invisível de nosso tempo. Eles nos ajudaram a decifrar a estranha língua falada pela tribo da qual Slobodian fala com merecido espanto; eles ajudaram a analisar a gramática generativa inventada pelos “tecnocratas” a quem Mattei responde com justa raiva.
Referências
Quinn Slobodian, Crack-Up Capitalism: Market Radicals and the Dream of a World Without Democracy, Allen Lane, 2023.
Clara E. Mattei, A Ordem do Capital: Como Economistas Inventaram a Austeridade e Abriram Caminho Para o Fascismo. Boitempo Editorial; 2023.
McKenzie Wark, Capital Is Dead: Is This Something Worse? Verso, 2019.
Yanis Varoufakis, Techno-feudalism: What Killed Capitalism, Melville House, 2024.
[1] James Livingston, professor emérito de História da Universidade Rutgers, é autor de seis livros, incluindo Origins of the Federal Reserve System: Money, Class, and Corporate Capitalism, 1890-1913 (Cornell University Press, 1986 ), e o vindouro The Intellectual Earthquake: How Pragmatism Changed the World, 1898-2008 (University of Chicago Press).

Professor, acompanho algumas das suas postagens e no geral, seus conteúdos fazem mto sentido pra mim. Mas não sou um acadêmico e não tenho às vezes a bagagem necessária para entender certos conteúdos escritos ou indicados por voce. O senhor conseguiria me indicar alguma leitura ou algo que me ajudasse a me aprofundar no tema, na condição de um iniciante?
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A literatura, contra e a favor, é imensa. Talvez algum livro do Prof. Jorge Grespan possa fonecer um ponto de partida. Especialmente o seu livro introdutório: Marx, uma introdução.
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