A interpretação lacaniana do freudismo

Autor: Pierre Fougeyrollas[1]

É preciso questionar a interpretação que Lacan nos oferece da obra de Freud e da psicanálise. Essa interpretação, considerada historicamente, vem a ser uma reação contra o que aconteceu no movimento psicanalítico após a morte de Freud. Ademais, ela se põe contra as ideias que hoje reinam no movimento psicanalítico internacional dominado por profissionais dos Estados Unidos.

Na verdade, após a morte do mestre, os dirigentes do mundo da psicanálise colocaram no centro de suas preocupações o tratamento do eu, que aqui deveria ser chamado antes de ego. Para eles, trata-se de fortalecer esse ego contra os impulsos do id e as pressões do superego, de tal forma que escape à neurose, ajustando-se e reajustando-se à vida social existente. E a prática analítica nos Estados Unidos apenas antecipará ou caricaturará o desenvolvimento que também está a ocorrer na Europa. Enquanto Freud apresentava terreamente – e com que angústia! – a questão da relação entre o indivíduo e a sociedade, a terceira geração de psicanalistas e os seus seguidores voaram para o sucesso social e econômico. Lacan denunciou precisamente esta degeneração.

Segundo ele, o movimento psicanalítico americano fora dominado pelo behaviorismo, que – diríamos nós – é uma peça da ideologia burguesa que muito prosperou nos Estados Unidos. Segundo ele, o desejo de adaptar o indivíduo ao seu entorno social levou os freudianos do outro lado do Atlântico às práticas de “relações humanas” e, em última instância, de “engenharia humana”.

Contra este “aburguesamento” da psicanálise – ou melhor, contra o processo geral de decomposição e degeneração da burguesia e da sua cultura no qual a herança freudiana foi capturada, comprometida e arrastada –, tornou-se necessário, é verdade, reagir. Foi o que fizeram Reich e Marcuse, aos quais Lacan, por sua vez, apenas se refere de forma rara e hipercrítica.

É verdade que Reich e Marcuse acabaram por chegar a impasses. Reich tentou, por volta de 1923, vincular o destino de uma nova psicanálise à experiência do movimento revolucionário dos trabalhadores; entretanto, depois, confiou na prática do coito para libertar a humanidade de todas as suas servidões; o que, para dizer o mínimo, é bem insuficiente.

Quanto a Marcuse, é certo que ele compreendeu as inibições culturais burguesas, as quais, de alguma forma, bloqueou o desenvolvimento de um pensamento potencialmente revolucionário a partir de Freud; contudo, ele chegou apenas a uma teoria da revolução em que o papel principal estava com o marginalizado, o que cortou o seu esforço intelectual de encontrar qualquer ligação com o processo real da atual luta de classes.

Em suma, não é o freudo-marxismo – ou o que dele resta – que poderá articular a psicanálise com o materialismo histórico, embora tenha sido Freud aquele que colocou esse problema.

Longe desses tumultos políticos, o psiquiatra Lacan, que se tornou analista, reagiu à sua maneira. Contra o declínio áureo da psicanálise, defendeu um “retorno a Freud”. Ora, será que se trata realmente disso? Nada se afigura mais suspeito do que a abordagem que consiste em peregrinar às fontes. No final do século passado, o conjunto dos seguidores zurück zu [ou seja, que voltaram] a Kant produziu bem mais do que um renascimento do kantismo e, hoje, o “retorno a Marx” dos althusserianos é, na verdade, uma descarada traição escolástica ao marxismo.

O “retorno a Freud” de Lacan consiste em afirmar que “o inconsciente se estrutura como uma linguagem”. No entanto, Freud desconhecia esta verdade completamente fundamental para Lacan; eis que, em sua época, ainda supostamente lhe faltava a linguística estrutural de Saussure e a antropologia estrutural de Lévi-Strauss. Sim!

Isso significa que o inconsciente, concebido por Freud como o conjunto de impulsos reprimidos em razão da interação que ocorre entre os impulsos naturais e a sociedade humana, agora deve ser considerado como um conjunto de significantes. Eis, pois, em sequência, o teor de sua tese; leiamos o que diz:

A maior parte desta assembleia tem noções sobre o que apresentei aqui, ou seja, em resumo, que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. Pois, essa afirmação está fundada num campo que, hoje, nos é muito mais acessível do que na época de Freud. E essa declaração se materializa como algo que está, certamente, em um nível bem científico, aquele em que Lévi-Strauss explora, estrutura e elabora, ao qual deu o título de “pensamento selvagem”.

Antes de qualquer experiência, antes de qualquer dedução individual, antes mesmo de se inscreverem em experiências coletivas relacionadas às necessidades sociais, algo organiza este campo, matriculando-se em certas linhas de força que se deve tomar como iniciais. Esta é a função que Claude Lévi-Strauss nos mostra como a verdade da função totêmica; ela reduz a aparência ao ser, por meio dessa função classificatória primária.

Antes mesmo de se estabelecerem as relações propriamente humanas, certas formas de relações já estão determinadas. E elas estão aprisionadas àquilo que a natureza pode oferecer como suportes. E esses suportes estão dispostos em termos de oposição, ou seja, formam uma estrutura. A natureza fornece, para ser franco, significantes e esses significantes organizam as relações humanas de uma forma inaugural, fornecem suas estruturas e as modelam.

Chamamos aqui a atenção do leitor para as implicações deste texto porque ele contém todo o lacanismo. O inconsciente, que Lacan ainda ousa qualificar como freudiano, funciona – segundo ele – como uma linguagem porque consiste, em si e por si, numa forma de linguagem, um conjunto estruturado de significantes.

Para Lévi-Strauss – já o sabemos –, a natureza da mente humana, por meio da permanência das suas atividades combinatórias [transcendentais], é o que explica a existência dos sistemas de parentesco, dos sistemas econômicos e dos sistemas linguísticos. Ora, é preciso zombar dessa “explicação” idealista que não explica nada. O que dizer de Lacan, que se sentiu obrigado a recorrer ao amigo Lévi-Strauss, para fundamentar a redução do inconsciente freudiano à função simbólica? E essa última, diz ele, está enterrada na mente, ou seja, nas entranhas de sua natureza! Estamos, pois, de fato, no ar ou no éter da especulação lacaniana.

Consideremos o modo como Lacan multiplica as expressões temporais da anterioridade que provam tudo por não provarem nada: “antes de qualquer experiência, antes de qualquer dedução individual, antes mesmo de se inscreverem em experiências coletivas relacionadas às necessidades sociais”. Ora, é assim que Lacan, a despeito de si mesmo – e virando as costas à dialética da natureza e da sociedade que gera e nutre o inconsciente no processo de repressão –, apresenta uma visão idealista injustificável da função formação simbólica; essa visão nasce do nada, mas engendra tudo, pelo menos tudo no que diz respeito aos processos psíquicos.

 O bispo Berkeley era na verdade um simples coroinha em termos de especulação idealista quando comparado ao atual mestre do Seminário de Psicanálise.

Portanto, o homem não é obrigado, por meio de sua própria experiência prática em todas as suas formas, a sair de sua natureza animal; não, não é pela mediação da prática produtiva do trabalho social que o ser humano se fez e continua sempre a se fazer a si mesmo, tonando-se, assim, ser humano como tal. Não, segundo Lacan, é a palavra que é primeira: assim, a inversão de Goethe, segundo a qual “no princípio era a ação”, é que deve ser agora invertida: eis no princípio está o verbo; é ele que nos cria porque sempre esteve no início; vivemos, pois, de sua criação; ademais, é ainda a ação do espírito que continua esta criação, renovando-a sempre.

Sabemos bem que qualquer modismo idealista e mesmo qualquer especulação ideológica parte de um aspecto real da experiência para distorcê-la, invertê-la ou extrapolá-la. No caso de Lacan, isso se apresenta do seguinte modo: quer pretenda ser um agente de cura, de formação ou de sondagem, a psicanálise tem apenas um meio: as palavras do paciente. Ora, isso é indiscutível. E esse autor tem razão em tirar todas as consequências dessa constatação. Mas essa observação não é razão suficiente e justificante de uma ideologia parasitária que está sendo enxertada no freudismo e que, por isso mesmo, serve de refúgio a um certo número de psicanalistas e outros intelectuais vítimas da ansiedade face aos processos sociais e aos processos psíquicos do nosso tempo.

Assim como Lacan isola os fenômenos da linguagem do conjunto de práticas humanas produtivas e autoprodutivas das quais esses fenômenos são apenas a expressão, ele dá um lugar privilegiado ao que chama de “estágio do espelho”.

Eis o seu ponto de partida: a criança humana, numa idade em que se encontra por algum tempo, mas por pouco tempo, superada que está em inteligência instrumental pelo chimpanzé, já reconhece a sua imagem no espelho como tal. Há aqui um primeiro problema! Os espelhos são produtos do trabalho social humano; não provém da atividade produtiva dos chipanzés. Além disso, as sociedades humanas nem sempre produziram espelhos. E para que um espelho seja apresentado a um chimpanzé, este deve ter sido domesticado; só assim ele pode ser posto na frente desse artefato. Mas há um segundo problema.

Na verdade, a relação da criança com a sua imagem não precede às suas relações práticas com os outros seres humanos e, por isso, não pode antecipá-las, como imagina Lacan. Nada o autoriza a assegurar que a função de apreender o próprio imago no espelho consista em “estabelecer uma relação do organismo com a sua realidade ou, como dizem, do Innenwelt ao Umwelt”. A interação dos seres vivos em geral com o seu ambiente, tal como como acontece com a interação animal, precede qualquer aparecimento de símbolos. Mas, na formação do indivíduo humano, ele se encontra já, desde o início, controlada por toda uma série de práticas geradoras da vida social e pelos símbolos que a acompanham e garantem a sua regulação.

Tendo reduzido o inconsciente à função simbólica misteriosamente presente no início de todas as coisas, particularmente da existência humana, Lacan elaborou outra fórmula que não deixa de repetir diante dos seus ouvintes: “o inconsciente é o discurso do outro”. Mas, o que isso significa, afinal?

Se o psiquismo consciente posto como tal se apresenta como um encadeamento de símbolos – isto é, de representações que são apenas o que são em virtude do que designam – ele próprio contém o outro; logo, o inconsciente surge nessa perspectiva como um outro discurso.

Aceitemos, por um momento, esta redução da atividade psíquica ao jogo da função simbólica. Ao fazê-lo, encontrar-nos-emos diante da seguinte alternativa: ou bem, este “discurso” do inconsciente é outro em relação ao discurso da consciência, o que resulta numa contradição interna ao próprio indivíduo, entre as pulsões naturais e as pressões sociais introjetadas e repressoras, algo que a consciência não pode compreender  imediatamente; ou bem, este “discurso” do inconsciente não está relacionado com esta interação dialética e, nesse caso, resta, de fato, supor que este “discurso” outro é, na verdade, o “discurso do outro”; ora, nesse segundo caso, tudo depende então da  definição deste último termo.

Quem é, pois, o outro? É de se temer que todas as subtilezas da retórica lacaniana permaneçam impotentes para fornecer uma resposta relevante à questão. O outro, de fato, é antes de tudo um outro [indivíduo], ou seja, aquele a quem a criança se dirige imediatamente; vem a ser, então, a imagem que a criança tem desse outro. Assim, por meio dessa reflexão, o outro se torna outro em relação ao outro. Finalmente, esse outro aparece como a função simbólica enquanto envolvente de todo o processo de comunicação; eis ele se afigura, assim, como sendo o seu meio único. Assim, o outro (com letra minúscula) revelou a onipresença do Outro (com letra maiúscula). Ora, a tradição popular quer que esse Outro seja o outro de Deus, ou seja, o diabo. É, pois, aos limites desta demonologia que a interpretação lacaniana do freudismo nos leva.

Assim fica mostrado que opera aqui a lógica implacável do idealismo; uma vez que postulamos a função simbólica como anterior à autogeração do ser humano, como ser social, como ser que se forma por meio e na prática produtiva, as contradições, antagonismos e conflitos encontrados na experiência analítica só podem advir enigmaticamente, misteriosamente, da função simbólica. Esta é muitas vezes comparada pelo próprio Lacan com uma banda de Moebius, ou seja, de modo mais vulgar, como uma cobra que procura em vão morder o rabo.

Como já admitimos prontamente, é claro que todas as atividades humanas se desenvolvem no interior do mundo dos símbolos que as expressam. Mas tendo sido reconhecido o simbolismo como um fato geral, sobressaem formas e meios diversos de considerá-lo. Podemos considerar, tal como o fazem os novos seguidores de Berkeley, Lévi-Strauss e Lacan, todos os fatos humanos como fatos de linguagem; nesse caso, não precisa haver qualquer preocupação com os processos complexos e multiformes, os quais são denominados de práticos, que a linguagem apenas exprime. Assim, Lacan se recusará a admitir que a experiência analítica ocorra entre dois indivíduos, o analista e seu paciente, para introduzir a função simbólica como uma terceira pessoa. Em nosso opinião, podemos e, na verdade, devemos ir além da dicotomia entre significante e significado para descobrir a práxis humana que gera os significados e os significantes, mas não se reduz a eles.

O que Lacan, seguindo Lévi-Strauss, chama de “lei do significante” se resume, em última análise, à axiomatização da combinatória fonológica. E os nossos linguistas contemporâneos, suficientemente satisfeitos no campo específico da sua investigação, não têm necessidade de tais extrapolações estruturais que pouco acrescentam à sua importância específica, mas que parasitam ideologicamente as suas descobertas.

Para retornar à experiência analítica, devemos concordar que o analista e seu paciente não estão sozinhos ali, nem mesmo verdadeiramente isolados; por mais particular que possa ser, essa experiência é um fenômeno social dentro da qual os processos da vida coletiva constituem uma conexão específica. Não há necessidade de personificar a linguagem para elucidar tal experiência; o importante seria antes discernir o modo como as relações de produção inerentes à sociedade são refratadas por meio das condições, situações e comportamentos reais do analista e do analisado. O jogo de símbolos permanece opaco ou se torna ainda mais opaco se tal referência não for deliberadamente apoiada por ambos os parceiros.

Lacan profere: é o mundo das palavras que cria o mundo das coisas… Não! São, de fato, as práticas humanas, o trabalho social, as atividades que criam tanto as relações entre os homens com a natureza como as relações dos homens entre si; é daí que provêm as coisas e, em última análise, as palavras que as designam. E se nos enredamos, se nos atolamos, se nos alienamos nas palavras até o ponto em que nossas relações com as coisas e entre nós mesmos se tornam opacas , isso não se deve a uma insuficiência de discernimento da rede simbólica; deve-se, isto sim, às práticas sociais de apropriação, exclusão, opressão e repressão das quais a opacidade ideológica é produto e pseudojustificação.

Sem dúvida, Lacan está certo ao não considerar o inconsciente como uma coisa, como um conglomerado de pulsões naturais, em suma, como algo mera físico e, assim, localizável. Porque, como afirma pertinentemente Freud, o inconsciente é essencialmente uma qualidade específica de certos processos psíquicos que também se revelam fatores importantes para a formação e o desenvolvimento da personalidade. Porém, do fato de que o inconsciente, no interior psiquismo humano, expressa efetivamente as contradições da vida social ou, pode-se preferir, da dialética entre a natureza e a cultura, não se segue que ele seja uma linguagem, nem mesmo que funcione como uma linguagem, isto é, como a posição socializada e até mesmo institucionalizada do pensamento.

Além disso, a concepção estrutural-linguística do inconsciente de Lacan só pode ser compreendida a partir deste primeiro motor ao qual ele é obrigado a recorrer e que ele mesmo chama de desejo. Porque este corruptor da afetividade é forçado a encontrar um clique, tal como o fizera Descartes, para pôr em movimento o discurso e os discursos: e este clique é o desejo.

Então, o que é desejo? Voltemos primeiro a Freud que nos diz: para explicar as necessidades sexuais do homem e dos animais, utilizamos, em biologia, a hipótese de que existe uma “pulsão sexual”; assim como fazemos a conjectura de que há uma pulsão de nutrição para explicar a fome. Contudo, a linguagem popular não conhece um termo relativo à necessidade sexual e que corresponda à palavra fome; a linguagem científica, por isso, passou a usar termo libido. Freud nos diz, então, que os seres vivos, em sua relação com o meio ambiente, experimentam necessidades que estão de fato ligadas à perturbação, interna ou externa, do seu equilíbrio homeostático.

Sem dúvida, a “teoria da libido ou doutrina dos instintos” não é satisfatória para Freud, que observa: a doutrina do instinto é, por assim dizer, a nossa mitologia.  Porque o progresso insuficiente na bioquímica não nos permite elucidar hoje, completamente, esses fenômenos aos quais nos referimos como como instinto, pulsão, necessidade nutricional ou necessidade sexual.

Contudo, é fora de dúvida que, para Freud, a base dessas necessidades deve ser procurada na vida do organismo. Deste ponto de vista, o desejo, no sentido sexual – ou seja, ao mesmo tempo, no sentido forte do termo –, designa a experiência, pelo indivíduo humano, da necessidade sexual. O materialismo freudiano, consciente do estado da ciência nesta área, indica inequivocamente a natureza do problema e a direção da investigação.

Lacan, decididamente revisionista, declara: “a libido é a presença, efetiva, como tal, do desejo”. Ora, o que isso significa? O desejo, em vez de ser uma expressão vivida da libido presente no animal humano, constitui – segundo ele – um dado original cuja presença a libido vem atestar. A operação consiste em isolar o desejo dos processos fisiológicos dos quais ele é, de fato, a manifestação, para transformá-lo em um poder obscuro que põe em movimento a combinatória linguística do psiquismo, particularmente aquele que acontece no inconsciente.

Lacan especifica que existe um ponto nodal por meio do qual a pulsão do inconsciente está ligada à realidade sexual. Esse ponto nodal chama-se desejo, e todo o desenvolvimento teórico que venho perseguindo nos últimos anos nos mostra, passo a passo na clínica, como o desejo se situa na dependência da demanda – a qual, ao ser articulada em significantes, deixa um resto metonímico que corre abaixo dela, um elemento que não é indeterminado, que é uma condição ao mesmo tempo absoluta e evasiva, um elemento que se chama desejo. É isso o que faz a ligação com o campo definido por Freud como o da instância sexual no nível do processo primário.

A função do desejo – completa – é o resíduo final do efeito do significante no sujeito. O desejo é o cogito freudiano.

O caminho dessa redução ideológica feita por Lacan é fácil de discernir: por um passe de mágica, ele substitui o desejo pela libido, depois reduz o desejo à demanda, ou seja, a uma figura do jogo de significantes; assim, finalmente, deixamos de ver por que haveria uma demanda e precisamente porque se trata de uma demanda; assim, ele nos abandona diante do “indescritível”, isto é, diante do desejo como resíduo último. E quem não vê esse caminho, dá as costas a Freud.

O cogito cartesiano expressou ideologicamente o advento da individualidade burguesa no interior do modo de produção capitalista em formação. Embora fosse de certo modo necessário observar que se “eu sou, logo penso”, o ideólogo inverteu essa relação, desvendando assim, de modo fantasmático, a realidade do pensamento. Nunca houve e não pode haver um “cogito freudiano”. Freud sabia que se desejamos, no sentido sexual, é porque existimos como animais humanos; ele teria considerado um traço paranoico manter essa concepção segundo a qual existimos porque desejamos.

O desejo lacaniano é definido de modo bem suficiente pela expressão “resto metonímico”. Pois a metonímia é uma figura de linguagem que designa um objeto por meio de um outro objeto que está, de alguma forma, relacionado com ele; em última análise, consiste em tomar a parte pelo todo. Vemos, portanto, o que está envolvido no desejo assim concebido. Em essência, o desejo lacaniano não visa aquilo que acredita visar; ora, ele não pode visar nada que não seja a totalidade do ser, na medida em que inevitavelmente lhe escapa. De Freud, somos sub-repticiamente levados de volta a Hegel, a Spinoza e, finalmente, aos padres da Igreja.

A determinação com que os lacanianos trabalham para distinguir o desejo da necessidade, para opor um ao outro, para reivindicá-los como incomensuráveis, é apenas a expressão do seu virulento antimaterialismo, do seu obscurantismo, de seu facciosismo, e, provavelmente, das suas aporias terapêuticas.

Ora, a dialética histórica das necessidades não revela que a satisfação de uma necessidade determina o aparecimento de uma necessidade nova? Não revela também, no contexto do capitalismo apodrecido de hoje, dentro do qual a burguesia procura de modo redutivo, por meio da publicidade, distorcer e artificializar as necessidades, ao mesmo tempo em que não consegue satisfazer aquelas que permanecem, para a maioria, essenciais?

O desejo, em geral, é apenas a experiência de uma necessidade, o desejo sexual é apenas a experiência de uma necessidade sexual. Todas as formas de hipostasiar, de levar o desejo ao absoluto, como se este fosse incomensurável com a necessidade, longe de iluminar o funcionamento da sexualidade, obscurecem-no. Remetem-nos, assim, aos lugares-comuns clericais relativos à criatura que suspira na sua finitude e no seu pecado por não ser o Criador.

Eis como Lacan, sim, vai além dessas supostas trivialidades do mero discurso quando escreve: de fato, a fenomenologia que emerge da experiência analítica demonstra o que há de paradoxal no desejo, o seu caráter desviante, errático, excêntrico e até escandaloso, caráter pelo qual, aliás, ele se distingue da necessidade. Será este um fato demasiado forte para não ter sido imposto desde sempre aos moralistas dignos desse nome?

Na verdade, as noções de necessidade e desejo são sociais e historicamente relativas. Em particular, nesse domínio, a necessidade é aquilo que a classe dominante de uma sociedade foi obrigada a reconhecer como tal sob a pressão da classe explorada em luta. O desejo é, em certo sentido, o que ainda não é reconhecido desse modo. Mas considerar o desejo, na sua própria essência, como errático, escandaloso etc. para assim referi-lo aos moralistas, não será isto bancar o pai chicoteador em vez de lidar com o problema?

Eis que o paradoxo, o desvio, a errância, a excentricidade e o escândalo são assuntos psicossociais. E a morbidade neurótica e psicótica, tal como se manifesta no comportamento daqueles que dela são vítimas, surge sobretudo de um condicionamento biográfico inseparável do condicionamento social total. Como pode haver cura se partirmos do princípio de que o desejo é consubstancialmente alienado e alienante?

Na verdade, o caminho de Lacan é o de uma regressão intelectual contínua: do inconsciente reduzido à função simbólica se chega ao desejo fadado à insatisfação eterna, terminando numa concepção da alienação como consubstancial à realidade humana.

Na verdade, usando o termo latino vel [passível de], Lacan apresenta a sua concepção de sujeito humano: o vel é a primeira operação essencial sobre a qual o sujeito se funda. Não é de todo sem interesse, creio eu, desenvolver isto aqui, perante um público bastante vasto, pois não é nada menos do que esta operação que podemos chamar de alienação. […] A alienação consiste neste vel – e se a palavra “condena” não suscita objeção, eu a repito aqui – pois, o vel condena o sujeito a aparecer apenas nesta divisão que acabo de fazer; parece-me, articulando suficientemente, que, se por um lado aparece como sentido, produzido pelo significante, por outro aparece como afânise.[2]

Indo além de Hegel e Feuerbach, Marx, em suas primeiras obras, deu ciência da alienação, ou seja, do fato de os seres humanos estarem estranhos a si mesmos por meio da ruptura ocorrida na história entre o trabalho social e a propriedade privada e pela ruptura sexual, social e divisão técnica do trabalho em sua relação com o surgimento e o desenvolvimento das sociedades de classes. Lacan, por seu turno, nos remete a uma alienação especulativa e, portanto, enigmática.

Seria, pois, um “ou”, um vel que gera a alienação constitutiva agora da condição humana. Ele esclarece sua visão assim: essa alienação não é uma invenção arbitrária e, como dizem, apenas uma visão da mente. Ela está na linguagem. É ou existe aí. Está de tal modo na linguagem que seria apropriado distingui-la também no campo da linguística. Vou dar um exemplo imediatamente: dinheiro ou a vida! Se eu escolher o mercado de ações, perco a ambos. Se eu escolher a vida, terei uma vida sem bolsa de valores, ou seja, uma vida prejudicada.

Insatisfeito, talvez, com a pobreza do exemplo, esse autor evoca imediatamente a dialética do senhor e do escravo de Hegel cujo pensamento é, neste caso, reduzido a um vel, uma escolha possível entre a liberdade e a vida.

Claramente, isso significa que o sujeito, no sentido de Lacan, no exato momento em que aparece com determinações que lhe dão sentido, está fadado ao desaparecimento, a um desaparecimento completo (afânise) como sujeito. Nada além, basicamente, do que o “eu” cartesiano, kantiano, husserliano, impotente para escapar da aporia que opõe o sujeito ao objeto. Pois, ao proceder assim, trata o conhecimento como se fosse fora de qualquer referência à prática da qual, aliás, ele é apenas um aspecto, da qual é apenas uma expressão. Para além da dialética histórica de Hegel e de seu idealismo, voltamos às delícias especulativas e aos venenos do subjetivismo filosófico.

Mas Lacan não quer ser remetido ao idealismo que está um tanto antiquado nos dias de hoje. Para o idealismo, o sujeito surge como tal; para Lacan, o sujeito surge desaparecendo e desaparece aparecendo: não há para ele sujeito sem, de algum modo, a afânise do sujeito; e é nesta alienação, nesta divisão fundamental, que se estabelece a dialética do sujeito. Frente a isso, deixamos ao leitor decidir se esses jogos especulativos, se essa dicotomia linguística entre o aparecimento e o desaparecimento conjuntos do sujeito enriquecem ou mesmo preservam a herança que Lacan afirma ter recebido de Freud.


[1] Professor emérito de sociologia da Universidade de Paris VII. Autor de L’obscurantisme contemporain – Lacan, Lévy-Strauss, Althusser. Spag-Papírus, 1980.

[2] N. T: O termo afânise se refere ao puro desaparecimento do desejo em face castração. Lacan, por meio desse termo, se refere ao desaparecimento do sujeito, pois este é agora um “sujeito” dividido e desejante.