Cuéllar no divã da Dra. Lógica

Autor: Eleutério F. S. Prado [1]

Após citar por extenso a introdução de um artigo de David Pavón Cuéllar, o qual recebeu, dele próprio, o título Marx, Lacan et la condition prolétarienne du sujet comme force de travail de l’inconscient, serão apresentados alguns comentários críticos. Estes não serão terminantes, mas se esforçarão para dar forma a uma reflexão sobre um tema que se julga bem importante: a questão do sujeito na crítica da economia política e, a fortiori, na psicanálise. Eis o texto de Cuéllar:

Há uma profunda afinidade entre o sujeito em Marx e em Lacan. Ambos são frustrados, explorados, alienados, separados de seu ser e despojados de seu saber. Ambos se encontram no lugar de uma verdade do saber que irrompe como sintoma no saber. Ambos são reduzidos a força de trabalho pura e simples para fazer um trabalho que não lhes pertence.

Um [sujeito] se torna força mental e corporal que faz o trabalho no sistema capitalista, enquanto o outro [sujeito] se torna uma força enunciadora que faz o trabalho num sistema simbólico do qual o sistema capitalista é apenas uma variante histórica. Em ambos os casos, a força de trabalho é explorada pelo mesmo sistema em que está alienada.

Seja no sistema capitalista ou no sistema simbólico, a força de trabalho do sujeito intervém como uma força vital que contradiz a pulsão de morte de um sistema que absorve toda a força vital para seu uso. Esse uso da força de trabalho possibilita a produção de um excedente tanto na teoria marxiana quanto na lacaniana.

Na teoria marxiana, trata-se de um mais-valor computável, trocável, entendido como um excedente de valor simbólico. Na teoria lacaniana, trata-se de um mais-de-gozar incalculável, imutável, entendido como excedente de gozo real. Em ambas as teorias, o excedente só é produzido ao ser perdido pelo sujeito que torna possível produzi-lo.

O sujeito de Marx e Lacan não produz logicamente senão o que não consome. Produz apenas um excedente de valor o qual não usufrui. O mais-de-gozar de Lacan é apenas o inverso do mais-valor de Marx. Nenhum mais-valor pode ser produzido sem também que se produza uma perda adicional de gozo. A renúncia ao gozo é inseparável do trabalho produtivo do sistema.

Esse trabalho no sistema também é inseparável do trabalho no inconsciente. Na verdade, é o mesmo trabalho. O sujeito que faz esse trabalho é sempre o mesmo. Seja proletário ou neurótico, é sempre o mesmo sujeito do inconsciente considerado por Lacan e pressentido por Marx.

Comentários

  1. É falta de rigor falar em sujeito em Marx para se referir ao que ele denomina de indivíduo social. Como se sabe, para ele, no modo de produção capitalista, o capital é que é sujeito; mais precisamente, trata-se de um sujeito automático. Os indivíduos sociais são apenas suportes de relações sociais. A contrapartida do capital é a classe trabalhadora – não, porém, como sujeito posto, mas como sujeito pressuposto. A revolução, contudo, não põe apenas a classe trabalhadora como sujeito, mas, de modo maior, realiza a sua universalidade. Tem-se, então, supostamente, coletivos de trabalhadores livremente organizados.  

2. Se por indivíduo social se entende um membro da classe dos trabalhadores proletários, sim, se pode dizer que ele é explorado, alienado etc. Mas, o conceito de alienação em Marx não só não coincide com o conceito de alienação em Lacan, mas dele muito se distancia.

 3. Veja-se como Juan Dal Maso, numa resenha sobre o livro Karl Marx’s writings on alienation de Marcello Musto, explica o conceito de alienação em Marx: “Nos Manuscritos, Marx definia a alienação em termos de um processo pelo qual o produto do trabalho se tornava um objeto externo para o trabalhador, mas também com um poder que se voltava contra ele como algo estranho e hostil, e assinalava quatro aspectos da alienação do trabalhador na sociedade burguesa: 1) em relação ao produto de seu trabalho; 2) em relação à sua atividade laboral, que percebe como algo direcionado contra ele; 3) em relação a seu ser genérico (de seu próprio corpo e faculdades físicas e espirituais); 4) em relação aos demais seres humanos”. Portanto, a alienação tal como concebida pelo jovem Marx é superável.

4. Veja-se, agora, como Mateus Flisfeder apresenta esse conceito em Lacan: “A alienação, para Lacan, assim como Hegel, é consubstancial à subjetivação. O sujeito não está alienado da ordem simbólica; está, antes, alienado na ordem simbólica. O sujeito é alienado no sentido de que, na formação da subjetividade, o momento positivo da subjetivação coincide com certa perda, a qual depende da relação do sujeito com o significante. Como diz Lacan, o significante “é aquilo que representa um sujeito para outro significante”. O sujeito, segundo Lacan, nasce, portanto, “na medida em que o significante emerge no campo do Outro“. Em consequência, a alienação tal como concebida por Lacan não é superável. Como diz Flisfeder, ela é constitutiva do ser humano enquanto um ser social.

5. O autor do trecho traduzido supõe que o trabalho concreto, ou seja, enquanto força mental e corporal, derivado da atuação do trabalhador no sistema capitalista, e o trabalho como força enunciadora, que se manifesta na esfera da linguagem, são homólogos. É duvidoso; mas mesmo se for plausível, de modo algum se trata de algo trivial como parece supor esse psicanalista marxista.

6. Cuellar parece pensar que o trabalho concreto cria valor – e mais-valor –, algo que tem uma natureza meramente simbólica, o que significa dizer que ele é em si mesmo imaginário, que ele se torna abstrato no imaginário, mas que está expresso por meio da materialidade do significante “valor de troca”. Para Marx, no entanto, o trabalho que cria valor é “materialmente’ trabalho abstrato, pois resulta de uma redução processual e sistêmica de trabalhos concretos. Essa redução cria uma medida de trabalho que, segundo Marx, existe “materialmente” – ou seja, na forma de uma materialidade que é puramente social. Essa redução, essa abstração objetiva formadora (que não é da ordem da formação do gênero), é possível porque todos os trabalhos são objetivamente gastos de força humana de trabalho.

7. A frase “O sujeito de Marx (…) não produz logicamente senão o que não consome” está evidentemente errada. O trabalhador assalariado, que não é sujeito, produz o que o trabalhador e o capitalista consomem, tanto material quanto em termos de valor. Ele produz também aquilo que o capitalista investe e que forma o capital industrial.

8. O que significa dizer que “o mais-de-gozar de Lacan é apenas o inverso do mais-valor de Marx”?  Porventura, significa que “mais-de-gozar = 1/mais-valor”? Ora, isso se afigura uma afirmação do tipo “uma banana = 1/uma laranja”. Tratar-se-ia, então, de um absurdo; ora, ele mesmo não diz que um é calculável e outro, incalculável.

9. Cuéllar diz que o trabalho no sistema do capital é o mesmo que o trabalho no inconsciente?! Isso significa, então, que a produção de sonhos – algo que acontece como todos os indivíduos sociais, de todas as idades aliás – é o mesmo que lavrar a terra, operar máquinas, produzir programas de computador etc.  

10. Donde advém essa falta de rigor no tratamento dos conceitos? Ora, ela advém do próprio Lacan que, em seu seminário XVI, falou numa homologia entre o mais-valor de Marx e o seu mais-de-gozar sem esclarecer minimamente os referentes a que esses conceitos aludem, ou seja, dizendo de outro modo, sem especificar aos pressupostos ônticos desses dois conceitos. Ora, sempre foi inerente aos propósitos inconscientes e conscientes desse autor, a criação de confusão conceitual, já que ela funcionava sempre a seu favor; assim, diante de seu auditório, ele aparecia como alguém que se equipava a Kant, Hegel, Marx etc. Nesse sentido, por exemplo, ele aparecia como alguém que finalmente esclarecia certos enigmas que estavam ocultos nos textos do próprio Marx.

11. No divã da Dra. Lógica, quando nele se sentam Cuéllar/Lacan, quem sofre é a própria Dra. Lógica. Sobre as diferenças entre certos pressupostos ônticos de Marx e Lacan ver: Uma crítica do materialismo simbólico de Jacques Lacan.


[1] Professor aposentado da USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blogue na internet: https://eleuterioprado.blog