Autor: Branko Milanovic [1] – Social Europe – 10/05/2022
Novos dados sobre desigualdade mostram provavelmente que ocorreu a maior reorganização da renda mundial desde a revolução industrial.
A ascensão da China pode deixar países africanos populosos, como a Nigéria, ainda mais para trás.
A distribuição global de renda vem mudando sem que isso seja percebido.
O que ocorreu no período da chamada “alta globalização”, ocorrido entre o fim do comunismo no final dos anos 1980 e a crise de 2008, também conhecida como a Crise Financeira Global, talvez seja melhor descrito pelo chamado gráfico do elefante (a curva azul na figura abaixo), produzido por Christoph Lakner e por mim.
Esse gráfico mostra que, ao longo dessas duas décadas, ocorrera um aumento muito alto nas rendas em torno do meio da distribuição global, produzindo o ponto A por meio do efeito China; ocorrera, também, um crescimento muito modesto ou próximo de zero em torno do 80º percentil da distribuição, ponto B (onde estão as classes médias baixas dos países ricos); e, finalmente, um aumento acentuado entre o 1% do topo global, ponto C.
Taxa de crescimento da renda per capita.
A popularidade do “gráfico do elefante” deveu-se à sua confirmação empírica do que muitos pensavam. O rápido aumento da renda asiática coincidiu com — e talvez estivesse causalmente relacionado a — o declínio das classes médias ocidentais, bem como a ascensão do 1% global.
No entanto, esse padrão de crescimento da renda não permaneceu inalterado durante a década entre 2008 e 2018, ou seja, um ano antes da pandemia. Os novos dados mostram que as mudanças continuaram acontecendo (o gráfico laranja). A continuidade é representada pelo crescimento elevado e até acelerado da renda real na Ásia; a mudança é representada por uma desaceleração significativa no crescimento da renda no topo global da distribuição.
Desaceleração ocidental
Para entender ambos os gráficos, temos que voltar aos efeitos da crise de 2008. Na realidade, foi uma crise da região norte banhada pelo Atlântico. Enquanto o crescimento dos países ricos da Europa e da América do Norte desacelerou ou mesmo se tornou negativo, o crescimento na Ásia, e especialmente na China, praticamente não foi afetado. Na verdade, o crescimento nos estados membros da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico como um todo foi negativo tanto em 2008 quanto em 2009.
A desaceleração ocidental, devido à natureza financeira da crise, prejudicou os grupos de renda mais ricos. O que aconteceu nos Estados Unidos é o mais instrutivo, bem como o mais importante, porque os cidadãos americanos representam quase metade do 1% do topo global.
De acordo com as pesquisas de renda feitas nos EUA (harmonizadas pelo Luxemburg Income Study), os 5% mais ricos da população dos EUA perderam cerca de 10% em termos reais entre 2008 e 2010, com o 1% mais rico vendo suas rendas caírem quase um quinto. Nos anos seguintes, eles se recuperaram, mas atingiram o nível de 2007 apenas em 2015. Para os mais ricos dos EUA e, por extensão, para os ricos globalmente, quase uma década inteira foi “perdida”. Isso explica por que a “tromba do elefante” (representante do crescimento da renda dos mais ricos globalmente) foi reduzida em comparação com o período de alta globalização.
Aliás, indo além do limite temporal de nossa análise (2008-18), os anos mais recentes mostram uma continuação dessa tendência para os EUA. O grande programa de apoio na Lei de Auxílio, Alívio e Segurança Econômica (CARES) do Coronavírus, promulgada em 2020, resultou em uma diminuição substancial na desigualdade de renda pós-transferências e pós-impostos. O coeficiente de Gini – que varia de zero (igualdade completa) a 100 (desigualdade infinita) – para os EUA diminuiu mais de um ponto, a maior queda em meio século. Uma das ironias é que esse grande declínio ocorreu durante o último ano da presidência de Donald Trump.
Crescimento contínuo na Ásia
Voltando ao que aconteceu entre 2008 e 2018, nota-se a continuação do rápido crescimento chinês e indiano. Em termos de produto interno bruto per capita, a China cresceu 7,5% ao ano e a Índia 6%. Esse crescimento aparece também em suas pesquisas domiciliares. Por exemplo, tanto para a China urbana quanto para a rural, as pesquisas indicam uma média de crescimento anual per capita de cerca de 10%, para a Índia urbana de 8% e para a Índia rural um pouco abaixo de 5%.
Esse crescimento contínuo na Ásia transformou fundamentalmente a distribuição de renda global de duas maneiras. Aumentou o tamanho da classe “mediana” global e produziu uma reorganização das posições na hierarquia das rendas globalmente. O primeiro significa que a “espessura” da parte intermediária da distribuição global é maior agora. O último significa que, à medida que a renda asiática cresceu, as pessoas da Ásia deslocaram muitas pessoas das partes mais baixas da distribuição dos países ricos no ranking global
Esse efeito pode ser melhor ilustrado pela Itália, que não cresce há mais de duas décadas. O decil mais baixo de italianos estava em 1988 no 73º percentil global; 20 anos depois, à medida que a renda asiática crescia e grandes grupos da China urbana alcançavam rendas mais altas do que os italianos, esses italianos de baixa renda caíram na hierarquia global para o 56º percentil global. Um movimento descendente semelhante, mas menos dramático, afetou o terço inferior das populações alemã e americana.
Esse movimento descendente é “posicional”: não implica necessariamente um declínio nas rendas reais e, em muitos casos, as rendas reais não diminuíram. O que isso implica, porém, é um crescimento mais lento da renda entre os decis dos países ricos “dentro da faixa” de aumento da renda chinesa.
Nova dinâmica global
A reorganização que ocorre atualmente representa provavelmente a maior desde a revolução industrial. Ela introduz uma dinâmica global inteiramente nova, porque durante os últimos dois séculos as pessoas dos países ocidentais e do Japão estavam quase totalmente “no controle” do quintil superior global. (É claro que muitas pessoas de outros países também estavam no quintil superior, mas não estavam lá na forma de milhões.) Esse “controle” foi já enfraquecido com a entrada da China nesse círculo. Ora, se os diferenciais nas taxas de crescimento entre a Ásia emergente e o Ocidente continuarem, esse “controle” se enfraquecerá ainda mais.
A reorganização de posições por si só não implica em uma redução da desigualdade global. Desde o início da atual era da globalização, a desigualdade foi reduzida quase inteiramente devido ao rápido crescimento chinês. Mas agora, como a China é um país de renda média alta, matematicamente seu crescimento não reduz mais a desigualdade global. Na verdade, isso pode começar a aumentar a desigualdade global, à medida que aumenta a distância de renda entre a China e os países africanos muito populosos.
Assim, enquanto no próximo estágio da globalização podemos esperar um maior fortalecimento da “média” ou da classe média global, o que acontecerá com a desigualdade global dependerá crucialmente do crescimento da Índia e dos populosos países africanos: Nigéria, Egito, Etiópia, Tanzânia, Congo. Logo, nossa atenção agora deve estar voltada para a África.
[1] Branko Milanovic é um economista sérvio-americano. Especialista em desenvolvimento e desigualdade, ele é professor visitante no Centro de Pós-Graduação da City University de Nova York e pesquisador sênior afiliado no Luxembourg Income Study. Anteriormente, ele foi economista-chefe do departamento de pesquisa do Banco Mundial.
Você precisa fazer login para comentar.