Crítica das “visões” metalista e cartalista do dinheiro no capitalismo

Introdução 

Que provisoriamente seja aquilo que Keynes quis que fosse! Admita-se, pois, que a economia capitalista possa ser tomada, tal como enfatizam os keynesianos, como uma economia monetária de produção, ou seja, como um sistema que se volta – ou pode se voltar quando bem conduzido – à produção de bens que atendem os desejos dos consumidores, mas que não prescinde – ao contrário, exige a presença – da moeda[1] para funcionar.

Creia-se que a moeda – como dizem – é uma mera instituição social necessária ao dinamismo do sistema econômico moderno, e que, por isso mesmo, não atua de modo neutro, como mera intermediária das trocas. Admita-se também que ela é ‘criada a partir do nada’ por meio de operações de débito e crédito que têm por função intrínseca estimular o funcionamento do sistema econômico. “A moeda ou o crédito” – diz uma economista pós-keynesiana – “não existe como resultado da atividade econômica… a moeda [ou o crédito] cria a atividade econômica” (Pettifor, 2017, p. 6).

Por que essa autora pensa assim? É evidente que o Estado provê o dinheiro no capitalismo contemporâneo. O que ela não vê é que o dinheiro como dinheiro é intrínseco à economia mercantil e que o dinheiro como capital é intrínseco ao modo de produção capitalista. Eis que pensa o dinheiro como mera “coisa” que é produzida de modo ad hoc por um agente externo ao sistema econômico. Se o Estado, por qualquer razão, deixar de prover o dinheiro, o que ocorre no sistema econômico baseado na relação de capital? É evidente que haverá um enorme colapso da atividade econômica, mas esta não se extinguirá completamente; pois, em certo momento, a própria atividade econômica precária exigirá que exista, ainda que de modo incipiente, um novo dinheiro. E este surgirá espontaneamente, por meio de um poder central ou por uma combinação dessas duas formas – pouco importa.

Ora, ao invés de definir a moeda como algo que modifica crucialmente a produção humana em geral e que, assim, caracteriza aquela existente na época moderna, não seria mais adequado inquerir sobre as razões da inerência do dinheiro no sistema econômico atual? Apreendendo o dinheiro, por isso, como expressão das relações sociais de produção e circulação desse sistema?

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No primeiro caso, afigura-se necessário ou mesmo imperativo contar como a moeda surgiu e surge, ou seja, mostrar como foi e é introduzida historicamente para modificar daí em diante a natureza da produção de bens, de um modo até então inexistente. No segundo caso, seria preciso encontrar o modo adequado de apreender esse objeto que, no dizer de Marx, é por excelência o nervus rerum do sistema produtor de mercadorias, o qual se configura propriamente como modo de produção capitalista. Nessa segunda opção, então, seria necessário apresentar o sistema em si mesmo sem recorrer a relatos que nada dizem sobre ele enquanto um modo de produção plenamente constituído.

Ora, nem Keynes nem os keynesianos em geral escolheram a segunda alternativa acima delineada já que nunca quiseram mais do que apreender, ao fim e ao cabo, como o dinheiro atua no funcionamento do sistema econômico, tomando-o como criação ou provimento do Estado. Ou seja, para eles, a teoria econômica visa sobretudo a apreensão de regularidades empiricamente observáveis e, por isso, é um saber que se encontra fortemente associado à política econômica. Como tal, ela serve à manipulação das variáveis econômicas influenciáveis pelo Estado e, por isso, tem (ainda que não só) o caráter um de saber instrumental.

Em geral, é preciso registrar, os keynesianos não descuidam de afirmar que a teoria que professam deve ter um caráter explanatório do real funcionamento do sistema econômico. De qualquer modo, para justificar as suas proposições, os construtores de teorias econômicas dessa corrente não hesitam e não podem hesitar – como se mostrará – em recorrer à imaginação explanatória.

O objetivo deste artigo é fazer a crítica da “visão” cartalista – mas também da “visão” metalista – de dinheiro a partir da apresentação dialética que Marx desenvolveu em várias obras preparatórias, mas principalmente em O capital. Nessa perspectiva, veja-se logo, a economia capitalista não pode aparecer como uma “economia monetária de produção”, mas se configura melhor, usando aqui esses termos e sem ir à raiz do problema, como uma “economia de produção monetária”, isto é, como um sistema que produz (aparentemente) dinheiro a partir do dinheiro.

No entanto, não vem propriamente ao caso polemizar aqui sobre supostas visões do mundo que se apresentam imediatamente como antípodas; eis que, para uma, a meta do sistema é – ou deve ser – a produção de valor de uso[2] e, para a outra, é inexoravelmente a geração de valor, ou melhor, a valorização infindável do valor. Trata-se, isto sim, de se situar no campo da lógica para fazer uma crítica dialética de uma construção do entendimento.

O ponto de partida dessa crítica é evidente; eis que se encontra na contraposição feita por Marx entre economia política clássica e economia vulgar[3], entre o produto de uma reflexão científica sobre o sistema econômico e o produto do pragmatismo burguês que visa apenas manipulá-lo: a primeira, “investiga o nexo interno das condições de produção burguesas”, a segunda, “apenas se move dentro do nexo aparente (…) oferecendo um entendimento plausível dos fenômenos” (Marx, 1983, p. 76). Ora, atualmente, uma época confusa em que quase ninguém parece objetar ao modo de produção capitalista enquanto tal – eis que se contesta apenas a política econômica que o orienta –, é preciso enfatizar ao máximo essa distinção. Mas ela fornece apenas um ponto de partida para compreender plenamente o estado atual do conhecimento econômico.

É preciso ver que, no curso da história, distinguiram-se dois modos radicalmente distintos de apreender o sistema econômico. Um deles foi desenvolvido pelo próprio Marx e o outro evolveu pelo concurso de diversas orientações, todas elas, no entanto, voltadas para a preservação do existente. A esfera da teoria econômica propriamente dita passou a conter diversas escolas e estas lutam entre si “para oferecer um entendimento plausível dos fenômenos”. Ainda que difiram no que tange à imaginação explanatória[4], todas elas buscam de algum modo, centralmente, apreender funcionalmente os nexos aparentes do movimento do sistema econômico. O outro, mesmo se permanece quase soterrado por uma enorme profusão de teorias econômicas que se afirmam como ortodoxas ou como heterodoxas, esforça-se fundamentalmente em compreender a lógica interna por meio da qual esse sistema de relações sociais se reproduz, se desenvolve ou deixa de se desenvolver.

Lembra-se aqui, portanto, que há dois modos bem distintos de apreender as determinações constitutivas do “processo social da vida”, isto é, do processo de reprodução da sociedade tal como veio a ser historicamente e se apresenta aí como realidade objetiva, ilusoriamente indiferente, à compreensão humana. Pois, essas determinações dizem respeito ao conteúdo das formas sociais e não apenas à maneira como elas aparecem ao senso comum – isto é, como formas reificadas, fenômenos econômicos, meras “sombras” das formas sociais enquanto tais (Badeen e Murray, 2016).

Um deles foi apenas introduzido pela economia política clássica já que, bem desenvolvido, consiste em apreender sistematicamente essas determinações de conteúdo e de forma de modo imanente por meio de uma lógica que acolhe as contradições.[5] O outro, que também se deriva por degeneração pragmática da economia política clássica, consiste em fixar apenas as relações aparentes que se originam dessas determinações por meio de construções lógico-formais, pseudo-histórias ou modelos matemáticos, as quais, por isso mesmo, permanecem mais ou menos alienadas e transcendentes aos conteúdos reais da sociabilidade capitalista.[6]

Duas visões transistóricas do dinheiro

Segundo Randall Wray (1998, p. 18), duas visões possíveis e diversas entre si costumam orientar a compreensão da moeda na teoria econômica. Elas nascem de algum modo da observação empírica, mas crescem daí para dar origem a duas distintas teorias: numa delas, a moeda emerge como criatura dos mercados, na outra, surge como criatura do Estado. Uma dessas teorias costuma ser chamada de metalista e a outra recebe o nome de cartalista.

Na “visão” metalista, segundo ele, a moeda nasce espontaneamente nos mercados como um meio para facilitar as trocas. Criada por necessidade do próprio desenvolvimento da economia mercantil, surge aí normalmente como uma mercadoria especial, ouro por exemplo, que passa pouco a pouco a intermediar todas as trocas.  Nesse caso, admite-se que o seu valor seja supostamente dado pelo valor do metal precioso que lhe dá suporte. Porém, quando a mercadoria especial passa a ser substituída por moeda fiduciária, crê-se que o seu valor venha da quantidade de mercadorias que pode comprar.

Ora, a outra considerada por Wray diz que essa compreensão é errônea. Segundo a “visão” cartalista que ele, aliás, abraça, a moeda é definida pelo Estado como aquilo que ele próprio aceita em pagamento dos impostos, pouco importa se ela assume a forma de uma mercadoria ou a forma de papel moeda. Ora, segundo ele ainda, esta última “visão” é a que se encontra em Keynes e que foi adotada também pelos economistas pós-keynesianos.

Como essas visões se sustentam na aparência do sistema econômico atualmente existente, como recortam arbitrariamente uma fração de uma realidade complexa para se erigir como teorias a partir dela, costumam ser justificadas também por meio de pseudo-histórias criadas pela imaginação explanatória. Essas histórias põem a origem da moeda num passado distante, de tal modo que, daí em diante, depois de ter nascido, ela pode ser considerada como uma instituição permanente, isto é, transistórica. Podem parecer esdrúxulas, mas essas histórias não têm a estrutura dos mitos, não recorrem ao embate de forças polares para fazer nascer aquilo que ainda não existe. De fato, elas, assim como os chamados modelos, esmeram-se em obedecer com a máxima exatidão possível as regras da lógica formal.

Fazendo uso de um autor crítico do metalismo, Mitchell Innes, Wray apresenta deste modo o advento da moeda segundo a “visão” que considera tradicional:

Sob condições primitivas, os homens viveram e viviam fazendo uso da troca direta. Conforme a vida foi ficando mais complexa, a troca direta se tornou insuficiente como método de troca de mercadorias; então, por meio do consentimento comum, fixou-se uma mercadoria como aceitável em geral e, assim, todos passavam a recebê-la nas trocas. Essa mercadoria tornou-se, então, meio de troca e medida do valor. (…) Pouco a pouco, os metais, ouro ou prata (…) se tornaram, por consentimento comum, os únicos meios de troca. Então, um certo peso fixado de um desses metais de conhecida finura foi tomado como padrão de valor; tornou-se, então, incumbência dos governos garantir o peso e a qualidade das peças de metal emitidas com a sua estampa peculiar. (…) Para economizar no uso do metal e para eliminar a necessidade de seu transporte, um instrumento chamado ‘crédito’ desenvolveu-se nos tempos modernos. Por meio dele, ao invés de entregar um certo peso de metal em cada transação, é oferecida uma promessa de fazê-lo, a qual, sob determinadas condições favoráveis, terá o mesmo valor do próprio metal. Assim, o crédito tornou-se o substituto da prata e do ouro. (Wray, 1998, p. 39-40).

Nessa pseudo-história, a moeda aparece para resolver o problema da ‘dupla coincidência dos desejos” que um suposto autodesenvolvimento da própria economia de troca direta necessariamente cria. Ao ser instituída, passa então a figurar especialmente como meio de troca. As trocas diretas são, então, substituídas por trocas mediadas por moeda. Argumentando que essa narrativa não tem base real na história do dinheiro, Wray considera, no entanto, que essa mesma história autoriza uma outra narrativa não menos imaginária (como ele mesmo reconhece, aliás).

Ao invés de partir de um fictício mercado primitivo baseado na troca direta, ele igualmente decola por meio da suposição de que, em certa pequena ilha, há uma colônia cuja economia está funcionando bem sem moeda, preços e mercados, mas que, em certo momento, ganha uma “governadora”. Esta, como boa inglesa e súdita fiel da linhagem da Rainha Vitória, quer introduzir eficiência na economia tradicional fazendo como que os habitantes da ilha adotem novas relações econômicas, agora mediadas por moeda.

Ademais, ela quer também construir uma mansão, refazer uma estrada, obter bens e serviços dos nativos e, para tanto, passa a oferecer dinheiro em troca de trabalho. Segundo Wray, pouco importa se propõem salários altos ou baixos, ela necessariamente vê os seus planos fracassarem porque nenhum nativo se apresenta, mesmo sob a ameaça de violência, para preencher as vagas de emprego que cria. Segundo Wray ainda, o seu fracasso se explica porque empregara um método incorreto de monetizar a economia primitiva tão carente de boa produtividade. Para fazê-lo adequadamente, convém, era preciso ter introduzido a necessidade imperiosa de pagar impostos.

Não podia ser dessa maneira. Como os governadores das colônias reais descobriram por si mesmos, o modo correto de introduzir moeda na economia (para gerar, em especial, um fluxo de oferta de trabalho em troca de salários monetários) tem de ser por meio da introdução de impostos. Em certos casos, a população indígena já está familiarizada com o pagamento de taxas e tributos sob formas não monetárias. Assim que os pagamentos obrigatórios são introduzidos, o governador colonial precisa apenas definir o que precisa ser feito para obter ‘aquilo que é necessário para pagar os impostos’. Anuncia, então, que um certo montante de “tíquetes” pode ser obtido trabalhando na construção da mansão, que outro tanto de “tíquetes” pode ser ganho oferecendo comida para a família do mandatário, que outro tanto ainda pode ser recebido trabalhando na reconstrução de certa estrada, e assim por diante. Note-se que ele não precisaria trazer sacos de papel moeda da metrópole (…). Por exemplo, o governador poderia fotocopiar um retrato de si mesmo para usá-lo como dinheiro-papel, um “tíquete” que simplesmente poderia chamar de “gov”. (Wray, 1998, p. 54)

Wray explica, então, que o “gov” é apenas uma unidade de conta. O que importa, segundo ele, é a relação entre o montante de imposto a ser pago em “govs” e a taxa de remuneração do trabalho comprado em “govs”, porque ela define quanto do trabalho dos nativos o governador vai poder se apropriar. Nessa perspectiva, a moeda adquire o caráter de uma mera convenção e o seu valor (isto é, o quantum de trabalho que ela representa) parece fixado pelo poder governamental, ao seu talante. Curiosamente, o “trabalhador” aqui parece receber exatamente o valor de seu trabalho, ainda que ele o esteja entregando gratuitamente ao expropriador.

Ele sugere, também, que essa forma de monetização da economia tradicional basta para transformá-la numa economia monetária de produção. Tão logo os nativos se acostumam com o uso da moeda, eles passam eventualmente a acumular poupanças. E o governador, muito esperto, pode então estimulá-los nessa prática (que implica no fundo em fazê-los trabalhar mais), criando um título e prometendo uma taxa de juros àqueles que se dispõem a usar essa forma de poupança. Ademais, segundo ele, a introdução de moeda basta para criar o assalariamento.

Obviamente, os govs podem agora ser usados nas trocas privadas ou no que Knapp chamou de “comunidade de pagamentos privados”. Um indivíduo com impostos a pagar pode concordar em fazer serviços para um vizinho com o fim de obter os govs que ele acumulara no passado. Os mercados privados podem se desenvolver para permitir que os possuidores de bens e serviços possam obter os govs de que necessitam para o pagamento dos impostos. Uma grande proporção do dia de cada indivíduo passa, então, a ser devotado às atividades mercantis na busca de govs, não apenas agora para pagar os impostos, mas também para comprar bens e serviços nos mercados, o que eleva o seu padrão de vida. (Wray, 1998, p. 56)

Não se pode acusar, no entanto, Wray de completa ingenuidade. Após desenvolver essas ideias, ele acrescenta que, na verdade, “pode ser necessária uma forma mais forte de indução para que as economias tradicionais reais passem a produzir para o mercado”. Ele sugere, então, que, segundo a história registrada, os governadores reais também empregaram a força para atingir os seus objetivos. “Mesmo se a taxação gerava a oferta de trabalho, o desenvolvimento dos mercados privados requereu a destruição da economia tradicional” (Wray, 1998, p. 56-57).

Ora, é difícil não ver que, assim, Wray se desmente, pois, a taxação e, portanto, a introdução de moeda como instrumento que ajudou a viabilizar a exploração da população nativa apenas complementou uma ação mais decisiva. Pois, o que realmente criou o trabalho assalariado em tais colônias reais – colônias em que não foi possível implantar a escravidão –, foi a instituição pela força da propriedade privada e a concomitante destruição da propriedade comunal. Sem outra alternativa, os nativos – ele poderia convir – passaram então a “aceitar” a relação de assalariamento. Após tê-lo feito, eles podem começar, voluntariamente, a lutar para a “elevação do seu padrão de vida”, contribuindo assim para a prosperidade da colonização capitalista!

A pseudo-história acima contada, assim como as observações de cunho histórico real que a complementa, apresenta uma dicotomia: há uma situação prévia em que não há dinheiro, há uma situação posterior em que ele passa a existir. Porém, afigura-se correto afirmar que ela não apresenta uma situação em que há verdadeiramente a emergência do dinheiro. Pois, ao contrário do que parece, a introdução empírica do dinheiro se materializa porque o dinheiro, como forma social possível, está pressuposto como portador de uma sociabilidade que não existe na colônia e que deve ser aí introduzida para que ela pare de produzir para si mesma e passe a produzir para a metrópole, assim como para os colonizadores.

De qualquer modo, é preciso ter claro que tais pseudo-histórias não se constituem como meras lendas ou mesmo como meros recursos didáticos. Elas têm uma função explanatória no âmbito da ciência positiva; constituem-se, ao contrário do que pode parecer ao leitor ingênuo, em relatos apropriados (modelos não estáticos postos na forma de narrativas, poder-se-ia dizer) que portam em si mesmo certas conclusões teóricas que soam como definitivas. Assim, a “visão” metalista quer mostrar que a moeda é, sobretudo, meio de troca e a “visão” cartalista que provar, contra a primeira, que a moeda é sobretudo meio de pagamento. Num caso, ela provém espontaneamente das trocas, no outro, ela provém intencionalmente da geração de meios para pagamento de dívidas. Ambas buscam fixar uma determinada noção de moeda, ou melhor, buscam fundar uma noção fixa de moeda no campo teórico.

Note-se nesse momento que não é crucial saber se a história real da moeda autoriza de alguma forma ou não tais pseudo-histórias que transcorrem em contextos coloniais ou mesmo pré-capitalistas.[7] Pois, aqui se vai contestar precisamente esse modo de explanar já que ele ignora as rupturas estruturais no curso da história, as quais demarcam a existência nele de diferentes modos de produção. É certo que a história real do dinheiro pode ter importância para o conhecimento das sociedades conquistadas pelo capitalismo ou das sociedades que o precederam na ordem do tempo. Porém, não propriamente como mero registro do passado ou como relato que ilumina as épocas posteriores, mas como conhecimento que revela as formas sociais que imperaram nessas próprias sociedades, como meio para compreender a estrutura e as mudanças estruturais dessas sociedades.

A história do dinheiro, ademais, não é nem central e nem primeira na compreensão do modo como ele atua na sociedade burguesa propriamente dita. Pois, o que realmente importa em primeiro lugar é chegar às suas determinações estruturais, isto é, apreendê-lo como uma forma social inerente – e crucial – do modo de produção capitalista. Dizendo de outro modo, é preciso compreendê-lo como forma de existência de determinadas relações sociais, relações estas que não unem as pessoas diretamente, mas indiretamente, isto é, que se dão precisamente por meio da forma de dinheiro.

Ao contrário do que convém mesmo à melhor economia política, passando certamente por Smith e por Keynes, é um erro pensar o sistema econômico atualmente existe como se ele fosse um representante avançado, certamente mais complexo e mais eficiente, da produção econômica em geral. O dinheiro não é apenas uma mera forma de interação social que foi introduzida em certo momento da história como pensam os economistas, mas uma forma de relação social que tem de ser apreendida agora, sobretudo, como forma constitutiva do modo de produção capitalista.

Apresentação do dinheiro no capitalismo

Do ponto de vista da crítica que vem de Marx, o problema dessas visões é justamente serem visões. São teorias que partem de certas relações externas entre os fenômenos e que se levantam como tais, a partir delas e para elas poder depois voltar, por meio da imaginação explanatória. Como se sabe, esse tipo de teoria, ainda que também possa ser formulado discursivamente, atinge o seu máximo grau de excelência quando se apresenta por meio de modelos matemáticos, estáticos e dinâmicos.

A exposição dialética, ao contrário, pauta-se por outro critério: ela não se vale de qualquer recurso transcendente na apreensão do real pelo pensamento, mas, com esse mesmo desiderato, esforça-se para apreender as determinações que lhe são imanentes. Para tanto, concebe o real como um devir que resulta do evolver de suas próprias contradições. E este é um critério que tem um fundamento lógico: se busca apreender o real sem fundá-lo em noções fixas, aritmomórficas, sem construir teorias lógico-dedutivas, apelando sempre à imaginação explanatória, é porque não quer cair involuntariamente em contradições.

É exatamente isto o que se encontra em O capital de Karl Marx.  Pois, nessa obra, ele desenvolveu a “apresentação” do capital como “conceito” com o fim de compreender o modo de produção capitalista como “totalidade concreta”. E por “apresentação” não se entenda um mero encadear metódico de proposições, mas a “a explicitação racional imanente do próprio objeto, sob a exigência de só nela incluir aquilo que foi adequadamente compreendido” (Müller, 1982).

Por “conceito”, por outro lado, entenda-se com o próprio Hegel, “o si mesmo do objeto, representado em seu devir, não como algo quieto que dá suporte imóvel aos acidentes, mas sim como o que se move e o que repõe por si mesmo as suas determinações” (Hegel, 1983, p. 40).

Por “totalidade concreta” compreenda-se, finalmente, “um todo estruturado em curso de desenvolvimento e de autocriação” (Kosik, 1969, p. 35). A apresentação visa apreender a totalidade concreta por meio de uma grande síntese que se desenvolve aos poucos e que só chega ao seu destino após um exaustivo percurso expositivo. De modo estritamente imanente, a dialética materialista busca reconstruir o concreto efetivo como concreto pensado. Pois o concreto, como diz Marx, é “síntese de múltiplas determinações” (Marx, 2011, p. 54).

O ponto de partida de Marx em O capital é, como se sabe, a mercadoria porque a mercadoria é a forma elementar da riqueza no modo de produção capitalista. Ao analisá-la, ele decifra um enigma: se a mercadoria aparece como um mero valor de uso (ou bem) que tem valor de troca, ela, na verdade, é unidade contraditória de valor e valor de uso. Pois, como o valor de troca é uma relação quantitativa entre dois valores de uso, ele “só pode ser o modo de expressão (…) de um conteúdo dele distinguível”, ou seja, algo igual presente implicitamente nas mercadorias (Marx, 1983, p. 46).

Convém, então, que o valor – que se manifesta como valor de troca – não pode ser explicado pela utilidade porque esta é simplesmente um gênero e não uma medida. Pois, como soe acontecer em geral, apenas uma singularidade pertencente às coisas de um determinado gênero pode fundar uma medida que lhes é própria. No caso do gênero mercadoria, essa singularidade – Marx demostra isso como uma lógica impecável – só pode provir do trabalho enquanto gasto de energia humana. Mas o trabalho que funda o valor não é diretamente o trabalho fisiológico, mas, sob esse suporte, o trabalho abstrato, o qual é posto pelo processo social, ou seja, em última análise, pelo processo da concorrência capitalista. O trabalho abstrato, trabalho qualitativamente igual, é, portanto, a base substantiva do valor que se mede quantitativamente, como bem se sabe, como quantum de trabalho socialmente necessário.[8]

A polaridade interna à mercadoria entre valor e valor de uso tem necessariamente de se manifestar – e isto Marx também demonstra no primeiro capítulo de O Capital com lógica rigorosa – como polaridade externa entre mercadoria e dinheiro. Nessa relação, o valor da mercadoria assume a forma relativa e o valor do dinheiro assume a forma de equivalente geral. O dinheiro, portanto, sobressai então como a forma social geral de representação do valor no modo de produção capitalista. Por meio dele, todas as outras mercadorias podem ter um preço. O fato de que o dinheiro se apresente como ouro nesse momento não implica de modo algum que o suporte dessa forma seja necessariamente uma mercadoria real.

É por isso que um autor como Murray diz, explicando Marx, que o dinheiro é uma forma social destacada do mundo das mercadorias para funcionar como forma equivalente geral, representante geral do valor. “O valor” – diz – “é uma substância social, uma objetividade fantasmagórica (…) que aparece necessariamente como dinheiro” (Murray, 2016, p. 277). O primeiro suporte da forma dinheiro, em consequência, na ordem de exposição, tem de ser uma mercadoria particular, por exemplo, o ouro.[9] Mas outros suportes são possíveis, papel, cartão de plástico, registro digital etc.

Mas, não se faça aqui confusão imaginando que o ouro é dinheiro por uma vocação do próprio ouro ou porque ele é suficientemente escasso. Pois, ao fazê-lo, identifica-se a forma dinheiro com o suporte dessa forma e se atribui valor ao próprio ouro enquanto tal. O ouro não é em si mesmo dinheiro mesmo se este, de fato, encontra-se estampado em ouro.  Pensar ao contrário é cair no fetiche do dinheiro, um tombo lógico que caracteriza sobretudo a “visão” metalista antes mencionada.

Em sequência, Marx explica que a função primeira do dinheiro como ouro é medir, por meio dos preços em ouro, os valores das outras mercadorias. Entretanto, como tais preços são ideais, essa função pode ser recalcada no funcionamento do sistema econômico (desaparece da cena, mas não deixa de existir). Os preços podem ser expressos em padrões monetários que se descolam gradativamente do peso em ouro.

O próprio ouro pode ser substituído na circulação mercantil por outros metais ou até por signos de papel que o representam e mesmo que deixam de representá-lo oficialmente. O ouro se desvanece quando o dinheiro funciona como meio de circulação e o seu lugar é preenchido pelo dinheiro-papel. A medida dos valores, entretanto, não desaparece porque mesmo os preços em dinheiro puramente fiduciário podem, em princípio, ser traduzidos em ouro com base nas cotações do ouro nos mercados específicos. Nessa última forma, ao contrário, o dinheiro se torna uma medida indireta – e volúvel – de valor.

É importante notar aqui que a existência do dinheiro permite separar as vendas de mercadorias da realização dos seus preços por meio da criação de dívidas que serão, em princípio, liquidadas por meio de dinheiro futuro. A relação social credor/devedor requer assim que o dinheiro funcione como meio de pagamento. Marx argumenta, então, que assim surge também o dinheiro de crédito. Eis que ele nasce porque os próprios certificados de dívida passam a funcionar como dinheiro. Ora, uma inversão ocorre e tende a ocorrer no desenvolvimento do sistema de crédito. As operações de crédito das grandes empresas e mormente dos bancos, tendo em vista as necessidades da produção e da circulação de mercadorias em geral, passam a criar sistematicamente dinheiro de crédito. Eis que, assim, o crédito parece ser a única fonte geradora do dinheiro. Marx menciona mesmo que o dinheiro assim posto vai mais longe e se torna a mercadoria geral dos contratos, passando a servir assim para pagar renda e impostos, por exemplo.

Ademais, sabe-se que o dinheiro de crédito estatal ou bancário no curso do desenvolvimento do capitalismo conquista o lugar do dinheiro-ouro na representação do valor seja na circulação mercantil em geral seja na operação dos contratos. O dinheiro de curso forçado, garantido pelo Estado – isto é certo – não contém mais valor próprio, pois, enquanto forma social, ele perdeu já o suporte de uma mercadoria real. Entretanto, mesmo sendo fictício (apenas um signo do valor), mesmo sendo gerado por operações de crédito bancárias e estatais, não deixa de representar valor possível, promessa de valor que apenas a produção e a circulação mercantil – e não o Estado – podem garantir. É, pois, uma ilusão atribuir um caráter puramente convencional ao dinheiro como faz a “visão” cartalista. O governo fixa o padrão monetário, cria o dinheiro fiduciário, regula a emissão do dinheiro de crédito, mas não determina nem a sua demanda nem o seu valor.

O dinheiro para Marx, o que atua na economia capitalista real e não nos mundos imaginários criados pelos economistas, é um objeto extremamente contraditório. Como toda mercadoria, tem valor de uso, mas recebe também a forma de valor; aparece assim como equivalente geral, um modo de atuar que tende, como foi visto, a “sumir” no curso do desenvolvimento capitalista. E, enquanto valor de uso, é tanto meio quanto fim em si mesmo. É meio enquanto mercadoria universal (medida de valores e meio de circulação) e fim em si mesmo enquanto propriamente dinheiro, dinheiro como dinheiro como diz o próprio Marx (objeto de entesouramento e meio de pagamento). Dado que representa o valor, tem um valor de uso duplicado (ou mesmo multiplicado) na economia mercantil generalizada: tanto serve à circulação mercantil quanto se serve da circulação mercantil; nesse segundo caso, ele também atua como forma transitória do capital, apresentando-se, assim, como objeto privilegiado do processo de acumulação. “Dinheiro como dinheiro e dinheiro como capital diferenciam-se primeiro por sua forma diferente de circulação…” (Marx, 1983, p. 125).

De qualquer modo, como foi visto nesse texto, a explanação científica grosso modo positiva navega, sim, por mares imaginários, mas ela também paga um pesado preço por utilizar embarcações idealistas. A “visão” metalista nasce de um foco empírico no equivalente geral quanto este aparece como dinheiro-mercadoria (dinheiro-ouro por exemplo).  Ela cai no fetiche porque naturaliza e coisifica o valor ao se recusar a decifrar “o caráter enigmático do produto do trabalho tão logo ele assume a forma mercadoria” (Marx, 1983, p. 71).  A “visão” cartalista origina-se de um foco empírico na forma relativa do valor, isto é, no valor de troca, porque este é tomado como se fosse puramente relativo e não implicasse a existência de algo intrínseco às mercadorias. Ela tomba no convencionalismo porque suprime formalmente esse caráter enigmático, ou seja, ignora que “a igualdade dos trabalhos humanos assume a forma material de igual objetividade de valor dos produtos de trabalho” (Marx, 1983, p. 71).[10]

Apresentando o argumento de modo sintético: a “visão” metalista confunde a forma do valor com a coisa natural que funciona como suporte da forma; a “visão” cartalista assimila a forma do valor à coisa social que funciona supostamente como unidade de conta e que, como tal, é vista como algo criado de modo ad hoc pelo Estado.[11] Uma cai no fetiche do dinheiro, a outra cai em sua negação abstrata. Logo, para concluir, é preciso dizer que a economia capitalista – e, assim, o dinheiro – não é aquilo que Keynes quis que fosse!

Referências

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Wray, L. Randall – Understanding modern money – the key to full employment and price stability. Cheltenham, UK/Northampton, MA, USA: Edward Elgar, 1998.

Notas:

[1] É costume na tradição pós-keynesiana traduzir a palavra “money” do inglês por moeda. Aqui se seguirá essa prática na exposição dos argumentos que dizem respeito à formulação dessa teoria. Porém, se empregará preferencialmente o termo dinheiro no contexto da apresentação de Marx do modo de produção capitalista. Pois, como se sabe, no contexto de O capital, moeda é o dinheiro como meio de circulação.

[2] Segundo Keynes, “toda produção se destina, em última análise, a satisfazer o consumidor” (1983, p. 43). É claro que ele sabe que a meta imediata dos capitalistas é o lucro monetário. Mas pensa, também, que a meta mediata – isto é, a meta do sistema – vem a ser o valor de uso. É certo, também, que ele admite a possibilidade da distorção e é justamente por isso que recomenda, por exemplo, a “eutanásia do rentista”. Mas admite sempre que essa distorção possa ser corrigida. E isto está implícito, também, no discurso pós-keynesiano, pois esses autores acreditam que uma boa repartição da renda e da riqueza, a estabilidade financeira e o pleno-emprego são sempre objetivos viáveis da política econômica (Lavoie, 2014, p. 581).

[3] O termo usado por Marx é claramente derrisório e, por isso mesmo, pode impedir atualmente que se veja bem do que se trata. Note-se, porém, que a distinção por ele apontada configurou-se claramente quando a própria teoria econômica pretendeu abandonar o terreno da “Economia Política” para se tornar “Economia” (Economics), um ramo da “ciência positiva”.

[4] Um conhecido compêndio de teoria pós-keynesiana, por exemplo, indica que esta difere fortemente da teoria neoclássica porque se recusa pensar com base na concorrência perfeita: “a teoria pós-keynesiana visa explicar o mundo real tal como observado empiricamente e não demonstrar o ótimo social caso o mundo real se comportasse do modo prescrito pelo modelo” (Lavoie, 2014, p. 32).

[5] Sobre a diferença crucial entre a imanência e a transcendência no modo de abordar a realidade na tradição filosófica e, por extensão, na ciência contemporânea, veja-se o artigo de Martins (2016).

[6] Segundo Badeen e Murray, as ‘formas sombras’ de que se utilizam as teorias econômicas “são pseudo-noções que se originam de más abstrações; elas provêm da ‘ilusão do econômico’, da noção de que existe uma economia em geral”. Pois, “a riqueza na forma mercadoria, vinda da produção de mercadorias, aparece naturalmente como riqueza ‘pura e simples’, vinda da produção ‘como tal’ ” (Badeen e Murray, 2016, p. 11). Assume-se aqui que esse modo de fixar teoricamente o sistema da relação de capital é mais patente na teoria neoclássica, mas, na verdade, com certas nuances, frutifica nas teorias econômicas em geral, mesmo naquelas que querem se afigurar como divergentes da primeira que se orgulha, obviamente, de ser a corrente principal.

[7] Veja-se, por exemplo, Graeber (2011).

[8] Sobre as categorias de base e suporte, as quais são necessárias para explicar o valor, assim como toda emergência em geral, ver Prado (2014).

[9] O autor do presente artigo publicou já outros artigos em que procurou discutir o dinheiro em Marx (Prado, 2013, 2016 e 2017).

[10] Segundo Fausto, “é preciso pensar o fetichismo e o convencionalismo como duas ilusões simetricamente opostas. De resto, a dialética se apresenta sempre como a crítica de suas ilusões extremas e unilaterais. (…) Das duas formas, a relativa e a equivalente, é a segunda que induz a ilusão fetichista. (…) Mas é também ilusório – aí está a ilusão contrária – supor que esta matéria é qualquer” (Fausto, 1997, p. 76). Porque, assim, se perde de vista o valor e se passa a enxergar a forma relativa como nexo externo que decorre de mera convenção.

[11] O autor do presente artigo apresentou esse argumento por correio eletrônico a André Lara Rezende; apesar de querer figurar como alguém que luta por “uma economia não dogmática”, ele não respondeu.