Aqui se apresenta a tradução de uma nota de Michael Roberts que tem esse título. Ela foi publicada em seu blog The next recession blog em 1º de agosto de 2020. Ela está em sequência.
No dia 27 de julho de 2020, uma quinta-feira, as gigantes globais de tecnologia, com sede nos EUA, apresentaram, simultaneamente, os seus ganhos trimestrais. No mesmo dia, foi registrado que a economia dos EUA passara por sua maior contração trimestral na produção nacional de todos os tempos (menos 9,5% no trimestre, o que equivale a uma taxa anual de menos 32,9%).
Em contraste, Alphabet (Google) – o maior mecanismo de busca do mundo; Amazon – maior distribuidor online do mundo; Apple – o maior fabricante de computadores e celulares do mundo; e o Facebook – o maior provedor de mídia social do mundo, que formam um “temível quarteto”, registrou um crescimento de receita de dois dígitos nos três meses encerrados em junho. Obtiveram, assim, um lucro combinado de US$ 33,9 bilhões apenas no segundo trimestre. Embora os EUA e a economia mundial tenham mergulhado numa enorme queda de atividade, mais profunda desde a década de 1930, em função dos bloqueios gerados pela pandemia COVID-19, as empresas de tecnologia mais proeminentes do mundo prosperaram.
Como as receitas haviam subido no conjunto dessas empresas de tecnologia, os preços de suas ações (capitalização de mercado) se elevaram para US$ 178 bilhões no dia seguinte. O valor de mercado dessas ações cresceu para US$ 5 trilhões, ou seja, 25% do PIB dos EUA. O CEO da Amazon, Jeff Bezos, recebeu assim o maior aumento de riqueza já registrado em um único dia, para qualquer indivíduo ao longo de toda história do homem na face da Terra. Em apenas um dia, sua fortuna aumentou em US$ 13 bilhões. Conforme a tendência atual, ele está a caminho de se tornar o primeiro homem a ter uma fortuna de um trilhão de dólares no mundo, o que deverá ocorrer até 2026.
No mesmo momento em que esses resultados foram publicados, o temível quarteto foi “questionado” por um Comitê do Congresso dos EUA sobre as suas práticas nefastas no trato com os concorrentes. Eis que possuem um crescente “poder de mercado”, assim como uma posição de monopólio cada vez maior no setor mais rentável da economia dos EUA. O Comitê publicou 1300 documentos que mostravam supostamente as tentativas dessas quatro empresas de esmagar os seus concorrentes, comprá-los ou excluí-los do mercado.
Por exemplo, o chefe do Facebook, Mark Zuckerberg, enviou um e-mail dizendo que via as “aquisições como uma maneira eficaz de neutralizar os concorrentes em potencial”. Ora, quantas startups temeram serem alvos de ofensivas destrutivas no momento em que tiveram de rejeitar uma venda forçada para uma delas. Aparentemente, os especialistas do Google se animaram-se para saber como afastar a concorrência do caminho, erguendo o que os críticos chamam de “jardim murado”. Eis como um executivo do setor opinou sobre essa questão: “A web aberta que conhecíamos e amávamos está desaparecendo”. Há, em consequência, uma campanha em crescimento para coibir ou desmembrar essas empresas consideradas como “superestrelas”, acabando assim com seu poder de mercado monopolista.
Mas isso não é novidade na história do capitalismo. As empresas bem-sucedidas do passado, que prosperaram em novos campos da acumulação de capital, cresceram de pequenas para grandes, chegando a ter, eventualmente, posições de “monopólio”: ferrovias, petróleo, veículos automotores, finanças e telecomunicações.
Em 1911, a Standard Oil foi dividida em 34 empresas pelo Congresso norte-americano. Rockefeller, no entanto, dirigiu a empresa original como seu presidente até sua aposentadoria em 1897. Ele permaneceu como o principal acionista e, após 1911, com a dissolução do fundo Standard Oil em 34 empresas menores, permaneceu como a pessoa mais rica da história moderna. O seu rendimento obtido desses empreendimentos individuais provou ser muito maior do que aquele obtido por uma única das grandes empresas restantes. As sucessoras do desmembramento, tais como ExxonMobil, Marathon Petroleum, Amoco e Chevron, ainda estão entre as empresas com maior faturamento do mundo.
Em 1984, a AT&T, então a principal provedora de telecomunicações, um “monopólio”, foi dividida em sete empresas regionais. Mas a AT&T continuou a obter enormes lucros, assim como as empresas sucessoras, as quais ganharam monopólios regionais. Tal rompimento do “poder de mercado” fez pouca diferença para melhorar a concorrência, a produtividade ou, o que seria mais importante, a renda do trabalho.
O fim do monopólio e do “poder de mercado” dessas quatro empresas não modificará o ritmo lento de aumento da produtividade da economia dos EUA. Um fracionamento também não reduzirá a desigualdade de renda ou de riqueza neste país. Pesquisas recentes feitas por economistas do FMI descobriram que a tendência de queda na participação do trabalho da renda global, observada desde o início da década de 1990, deveu-se principalmente ao “progresso tecnológico”. À medida que os trabalhadores foram sendo substituídos por tecnologia que poupa mão-de-obra, particularmente nas chamadas “ocupações rotineiras”, eles perderam “valor de mercado”.
Eis o que afirma em síntese esse relatório: “A análise empírica aponta para um papel dominante da tecnologia e da integração global na geração dessa tendência de queda, algo que se manifestou em diferentes graus tanto nas economias de mercados avançados quanto nas emergentes. O progresso tecnológico, refletido na queda acentuada do preço relativo dos bens de investimento, tem sido o principal motor do crescimento nas economias avançadas. Ao mesmo tempo, ele permitiu que as ocupações rotineiras fossem automatizadas. A integração global desempenhou também um papel nesse processo, embora este tenha sido menor”.
O aumento da desigualdade, como se sabe, é o resultado da acumulação capitalista “normal” e da apropriação do lucro através da exploração do trabalho e da tecnologia que economiza o trabalho.
No entanto, a noção de “poder de mercado” continua presente na teoria econômica de esquerda como uma correta – e dominante – explicação sobre as falhas do capitalismo americano e do capitalismo mundial. Considere-se um artigo recentemente publicado na Jacobin (EUA) pela economista radical em ascensão, Grace Blakeley. “Muitas das maiores empresas de tecnologia do mundo” – argumentou ela – “tornaram-se monopólios domésticos e oligopólios globais. A globalização tem desempenhado um papel nesse processo de concentração. É claro, muitas empresas nacionais simplesmente não podem competir com multinacionais globais. Mas essas empresas também usam seu tamanho relativo para reduzir os salários, evitar impostos e arrancar preços baixos de seus fornecedores, além de pressionar os governos a lhes fornecer um tratamento preferencial.”
Blakeley argumenta que a Amazon se tornou a maior empresa da América norte-americana por meio de “práticas anticoncorrenciais” e, por isso, ficou em apuros diante dos órgãos reguladores da concorrência da União Europeia. As práticas de trabalho em seus armazéns são notoriamente terríveis. Um estudo do ano passado revelou que a Amazon é uma das “mais agressivas na evitação de impostos” de todo o mundo. Parte da razão pela qual a Amazon tem que trabalhar tanto para manter sua posição de monopólio é que seu modelo de negócios se baseia em efeitos de rede que só podem ser obtidos em uma determinada escala – argumenta Blakeley. As empresas de tecnologia como a Amazon ganham dinheiro monopolizando, mas também se apropriando e vendendo os dados gerados a partir do registro das transações feitas em seus sítios da rede mundial de computadores.
Essa economista também afirmou que o aumento do poder de mercado desse pequeno número de grandes empresas realmente reduziu a taxa de crescimento da produtividade: “Essa concentração restringiu também o investimento e o crescimento dos salários, pois essas empresas simplesmente não têm que competir para garantir espaço nos mercados, nem são forçadas a inovar para superar os seus rivais.”
Boa parte do que Blakeley disse em seu artigo é evidentemente verdade. Sem dúvida, grande parte dos mega lucros de empresas como Apple, Microsoft, Netflix, Amazon, Facebook se deve ao seu controle sobre patentes, sua força financeira (crédito barato) e sua capacidade de comprar os potenciais concorrentes. Considere-se, agora, o caso mais atual: a Microsoft está em negociações para comprar o Tik-Tok, que pertence à Chinesa Byte Dance. O objetivo é enfraquecer este último grande rival, um rival que se constitui em uma ameaça potencial para as empresas superestrelas. Mas o poder de mercado ou o monopólio não explica tudo; o argumento de Blakeley vai longe demais. Pois, as inovações tecnológicas explicam também o sucesso obtido por essas grandes empresas.
Marx considerou que havia duas formas de “renda” na economia capitalista. A primeira deles, denominou de “renda absoluta”. Eis que ela é obtida da propriedade monopolista de um determinado ativo (terra, por exemplo). Nesse caso, essa “renda” provém da extração de uma parte do valor excedente originado no processo capitalista por meio do investimento em mão-de-obra e máquinas para produzir mercadorias.
A segunda foi denominada por Marx de “renda diferencial”. Está última surge da capacidade de alguns produtores capitalistas de vender a um custo inferior em relação aos produtores mais ineficientes; eis que, assim, eles conseguem extrair um lucro excedente. Porém, esses produtores de baixo custo têm de ter poder impedir que outros produtores venham adotar técnicas de custo ainda mais baixo. Isso é obtido bloqueando a entrada no mercado, empregando grandes economias de escala no financiamento, controlando patentes e fazendo acordos de cartel.
A “renda diferencial” pode ser obtida na agricultura por meio de terra de melhor rendimento e aqui o fator que faz diferença vem da própria natureza. Mas no capitalismo moderno, a “renda diferencial” pode ser obtida por meios tecnológicos, ou seja, monopolizando a inovação técnica e obtendo, assim, uma “renda tecnológica”.
A história do capitalismo mostra que a concentração e a centralização do capital juntas tendem a aumentar sempre; mas ela mostra também que a concorrência continua a equalizar o mais-valor que os diversos capitais podem obter, seja dentro da economia nacional seja globalmente. A substituição de novos produtos por antigos costuma reduzir ou eliminar a vantagem do monopólio no longo prazo. O poder monopolista da General Eletric, fabricante de motores elétricos, não durou já que novas tecnologias criaram setores concorrentes. E estes permitiram também uma renovação da acumulação de capital. As empresas gigantes do setor do petróleo também estão agora sob ameaça de novas tecnologias. O mundo da Apple não durará para sempre.
Além disso, por sua própria natureza, o capitalismo está baseado em “muitos capitais” em processo de concorrência; por isso, ele não pode tolerar um monopólio “eterno” e, assim, um lucro excedente “permanente” deduzido da soma total de lucros, a qual é dividida entre a classe capitalista como um todo. A batalha sem fim para aumentar o lucro e a participação do mercado significa que os monopólios estão continuamente sob ameaça de novos rivais, novas tecnologias e concorrentes internacionais.
Certamente é verdade que o acúmulo de capital implica em maior concentração e centralização do capital ao longo do tempo. As tendências monopolistas são inerentes ao capitalismo, tal como argumentou Marx no Livro I de O Capital há 150 anos. O “poder de mercado” pode ter proporcionado rente (um ganho acima da taxa de lucro média) para algumas grandes empresas nos EUA. Porém, esses ganhos extras de algumas poucas são deduções dos lucros de muitas outras empresas. Os monopólios conseguem redistribuir um lucro extra para si mesmos na forma de rente, mas eles não geral os valores que se manifestam nesse rente.
Os pesquisadores Kathleen Kahle e Rene Stulz descobriram que pouco mais de 100 empresas ganharam cerca de metade do lucro total obtido pelas empresas dos EUA, em 1975. Em 2015, apenas 30 delas obtiveram esse mesmo montante. Agora, as 100 maiores empresas têm 84% de todos os ganhos das corporações norte-americanas, 78% de todas as reservas em dinheiro e 66% de todos os ativos somados. As 200 maiores empresas obtiveram ganhos que superaram o resto de todas as empresas listadas em conjunto! De fato, o lucro agregado das 3.500 maiores empresas é negativo – eis porque algumas grandes empresas dos EUA estão inundadas por lucros e liquidez.
Os lucros não são o resultado do grau de monopólio, não decorre da busca de rente (rent seeking) tal como se argumenta nas teorias neoclássicas e nas teorias keynesianas e/ou kaleckianas, mas o resultado da exploração do trabalho. A lei de rentabilidade de Marx ainda é central nas economias capitalistas realmente existentes.
Pouco antes da pandemia COVID-19 atingir a economia mundial, as principais economias capitalistas já estavam caminhando para uma nova recessão, a primeira desde a Grande Recessão de 2008-9. A rentabilidade do capital estava próxima de um valor mais baixo de todos os tempos; até 20% das empresas norte-americanas e europeias estavam lucrando apenas o suficiente para cobrir os juros de sua dívida, sem obter nenhuma sobra para novos investimentos. As taxas reais de crescimento do PIB caíram para as taxas mais baixas desde 2009; ora, o investimento empresarial estava estagnado. Uma recessão global estava chegando; e isto tinha pouco a ver com o “poder de mercado” das FAANGs, o qual, supostamente, permitia que elas sugassem todos os lucros. Esse resultado tinha muito mais a ver com a incapacidade do capital de explorar o trabalho em grau suficiente.
Mas esse ponto central é aquele que a economia “mainstream” (tanto neoclássica quanto keynesiana) nunca quis considerar. Para ela, se os lucros são altos, isto se deve ao “poder do monopólio” – e não ao poder de exploração do trabalho. Para ela, é o poder monopólio que está mantendo o crescimento do investimento num nível muito baixo – e não a baixa rentabilidade do capital globalmente. Ora, se o argumento do “poder de mercado” for acolhido numa análise marxista do capitalismo, então tudo o que precisaria ser feito para melhorar a condição dos trabalhadores é enfraquecer esse “poder de mercado”. Dito de outro modo, bastaria quebrar os monopólios e restaurar a “concorrência” – não seria necessário acabar com o modo de produção capitalista.
Em seu artigo na revista Jacobin, Blakeley conclui perceptivamente que “a única maneira real de enfrentar essas iniquidades é democratizar a propriedade dos meios de produção, entregando as decisões-chave sobre a economia de volta ao povo”. Sim, mas é difícil saber especificamente o que ela quer dizer como isso: a) incluir apenas representantes dos trabalhadores nos conselhos das empresas, tal como ocorre na Alemanha? b) distribuir ações das empresas para os funcionários? c) regular melhor essas empresas? Ora, todas essas medidas falharam no passado no intento de “devolver as decisões fundamentais ao povo”. No artigo, Blakeley defende um imposto sobre a riqueza. Mas tal imposto faria pouco para “democratizar de fato a propriedade dos meios de produção”.
A verdadeira solução para acabar com o poder de mercado de empresas como Apple, Microsoft, Amazon, Facebook, Google, Netflix etc. consiste em torná-las propriedade públicas, não estatais; só assim elas passarão a ser administradas por conselhos e gestores democraticamente eleitos, extraídos dos trabalhadores dessas empresas, de órgãos de consumo e de sindicatos, assim como do próprio governo. O temível poder do quarteto acabaria. Os seus proprietários perderiam do dia para a noite os bilhões que “possuem” por deterem as ações dessas empresas. As suas práticas nefastas seriam interrompidas e os escândalos nas redes sociais terminariam. E o mais importante, os principais serviços que essas empresas prestam (como bem revelou a pandemia) poderão, então, ser fornecidos (a um custo mais baixo custo e sem anúncios) para atender às necessidades sociais – e não para gerar mega lucros.
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