O “rentismo” e a léxis de O capital

Autor: Eleutério F. S. Prado [1] (2017)

Faz-se nesta nota um comentário sobre um ponto bem específico contido no livro mais recente de François Chesnais, Finance capital today (2016). Como fica evidente já pelo título, esse autor pretende atualizar, com originalidade e cem anos depois, a tese de Rudolf Hilferding – e de Vladimir Lenin – sobre o caráter do capitalismo na era do imperialismo. Nesse sentido, é evidente, ele encontra – assim como os outros seguidores menos famosos – a base teórica de seu esforço crítico nas obras que compõe a crítica da economia política feita por Marx, em especial, no livro O capital.

Segundo este autor, o capitalismo como ordem mundial recém completada está em crise. E esta vem a ser, para ele, uma “crise do capitalismo tout court em um dado momento de sua história”, o qual “tem como características centrais a globalização, isto é, a conclusão do mercado mundial, e a financeirização”. Trata-se, ademais, ainda segundo ele, de uma crise de superacumulação e de superprodução agravada pela queda da taxa de lucro” (Chesnais, 2016, p. 1-2). Ora, esses elementos não deixam qualquer dúvida: Chesnais se esforça, sim, para pertencer à tradição da apresentação do capital e da crítica da economia política que vem de Marx.

Para compreender o capitalismo contemporâneo nas duas dimensões já assinaladas, distingue o capital financeiro do capital de finanças. Pelo primeiro, entende o “entrelaçado dos bancos internacionais altamente concentrados com as corporações transnacionais, sejam elas industriais, de serviços ou comerciais”. Por capital de financiamento [2] ou simplesmente por finança, compreende o “crescimento espetacular dos ativos (títulos, ações, derivativos) mantidos pelas corporações de finanças (grandes bancos e fundos), assim como, também, pelos departamentos financeiros das empresas transnacionais” (Chesnais, 2016, p. 1). ).

Agora, é preciso ficar claro que essas duas noções, capital financeiro e financeirização, pertencem ao nível da compreensão do sistema mundial tal como passou a existir e que, por isso mesmo, não fazem parte intrinsecamente das léxis de O capital. Pois, essa obra, como se sabe, trata apenas das determinações mais gerais do modo de produção capitalista.

Porém, apesar de sua pretensão evidente de se manter fiel aos escritos de Marx, considera que não pode escusar o emprego da expressão “capital rentista”. Ora, ao proceder assim, ele adiciona esse termo à ordem categorial de exposição original de O capital. Esta, com bem se sabe, quando chega ao Livro III, tendo já por referência o processo global da produção capitalista, abriga apenas as categorias de capital industrial, capital comercial, capital bancário, capital portador de juros e capital fictício no escopo das formas de existência do capital. Eis o que diz:

O termo ‘capital rentista’ é considerado por muitos como politicamente pesado, devendo, por isso, ser evitado. Porém, nenhuma análise dos fundamentos do capital social e da dominação política, doméstica ou internacional, nas perspectivas marxiana, clássica (economia não vulgar) ou das teorizações de Kalecki, pode dispensar esse termo. Eis que a noção é central às dimensões social, política e econômica específicas das teorias marxista e de Hobson do imperialismo. (Chesnais, 2016, p. 9). 

Ademais, para justificar o emprego dessa expressão, ele recorre a Joan Robinson que, como se sabe, é autora fundadora, junto com outros economistas de esquerda, da corrente de pensamento econômico que se considera pós-keynesiana.

Usamos o termo rentista num sentido estendido, para pensar os capitalistas enquanto proprietários de riqueza, em oposição aos capitalistas enquanto empreendedores. Incluímos nas rendas dos rentistas os dividendos, os recebimentos de juros, assim como as somas que os empreendedores levam para casa e que são geradas em seus próprios negócios. (apud Chesnais, 2107, p. 9).

Essa autora, assim, fornece uma definição da palavra, a qual, como não poderia deixar de ser, privilegia a esfera da circulação mercantil mesmo se faz referência à esfera da produção. O rentismo, nessa perspectiva, como também não poderia deixar de ser, afigura-se como fenômeno inerente ao modo de apropriação da renda por parte de certa camada social.  

Havendo mostrado o nó conceitual que se encontra no livro de Chesnais – há, sim, uma fração de classe que se pode chamar de rentista, mas é errado falar em capital rentista –, trata-se agora de descobrir o fio que permite desatá-lo. 

Como já ficou implícito no exposto, o termo léxis está sendo empregado aqui para indicar a ordem categorial de uma exposição que visa abarcar certa totalidade.  Segundo Benoit, que o empregou nesse sentido, ele faz referência ao modo rigoroso de concatenação das categorias, o qual caracteriza a temporalidade conceitual da obra filosófica da matriz dialética (Benoit, 2015, p. 174-175). Assim, não se teria numa obra como O capital – ou como a Fenomenologia do Espírito de Hegel um mero arranjo de noções, uma sequência relativamente arbitrária de categorias, as quais poderiam ser reordenadas de alguma outra maneira. Ao contrário, nessas obras, todas as figuras, e mesmo a primeira que dá início à exposição, encontram-se articuladas entre si dialeticamente, isto é, por uma lógica que ordena e concatena todas as categorias por meio do operador posição/pressuposição.

O capital, como se sabe, inicia pela mercadoria para expor, pouco a pouco e por meio de cerca de três mil página, o capital como conceito [4]. Ora, a mercadoria tal como aparece no primeiro parágrafo dessa obra já pressupõe o dinheiro; por isso, o dinheiro surge no curso da exposição por meio do desenvolvimento da categoria mercadoria. O dinheiro, por sua vez, pressupõe o capital; assim, no curso subsequente da exposição, o capital é posto como consequência do desenvolvimento da categoria dinheiro. E assim por diante. Na verdade, todas as categorias mais complexas que aparecem sucessivamente nos três volumes dessa obra estão já pressupostas na categoria mais simples, no caso, a mercadoria. Pois, a mercadoria é a forma primeira ou elementar da riqueza capitalista, do capital como formador de uma totalidade que cumpre apresentar. E ele não é simples, mas multiforme; de fato, é o sujeito (automático) do sistema complexo em processo de devir que Marx denomina modo de produção capitalista.

Havendo encontrado o fio que perpassa a lógica de O capital, agora se trata de desmanchar o nó que Chesnais apronta ao tentar costurar nela uma noção que pertence ao léxico keynesiano, ainda que tenha raízes na economia política clássica. Para tanto é preciso revisitar certos pontos da obra de John M. Keynes. Pois, como se sabe, esse autor já havia feito a distinção que aparece na citação de Robinson.

Para começar é preciso mostrar como Keynes compreende a geração da riqueza capitalista que, para ele, consiste de bens – não de mercadorias propriamente –, isto é, de bens que ganham preços nos mercados. Como se sabe, ele entende o valor de cada bem apreçado como algo que é gerado pelo trabalho, compreendido este, obviamente, como diretamente mensurável pelo tempo de trabalho médio gasto em sua produção: “eu simpatizo” – diz – “com a doutrina pré-clássica [5] de que tudo é produzido pelo trabalho”.

Ademais, para ele, todo e qualquer trabalho que atua na produção bens é produtivo: eis que “é preferível considerar o trabalho, incluindo, naturalmente, os serviços pessoais do empresário e seus colaboradores, como o único fator da produção, operando dentro de um ambiente de técnica, recursos naturais, equipamentos de capital e procura efetiva”. Em consequência, para ele, o capital não é responsável pela criação de valor, não é produtivo: eis que “é preferível dizer do capital que ele tem um rendimento no curso de sua vida em excesso ao seu custo original” e que tal “perspectiva de rendimento” existe “porque ele é escasso” (Keynes, 1983, p. 151).

Ora, há notoriamente capital e capitalistas dentro e fora da esfera da produção mercantil. No capitalismo real, há a esfera da produção mercantil, há a esfera da comercialização, mas há também a esfera das finanças.

Ele faz, por isso, uma distinção entre o capital ativo e o capital passivo, considerando como necessária (e justa) apenas a remuneração do primeiro já que é necessário para produzir bens de modo cada vez mais eficiente no emprego do trabalho. A propriedade preferencial de um ou de outro distingue também os próprios capitalistas enquanto distintas categorias sociais do sistema. Em consequência, ele indicou em sua Teoria Geral que aspirava pela “eutanásia do rentista”, isto é, pelo passamento do “investidor sem função”, do capitalista passivo, do proprietário ausente na esfera da produção. Como economista dentro da tradição de Alfred Marshall, ele achava que o ganho desse capitalista de pouco respeito advinha apenas de sua capacidade de “explorar o valor de escassez do capital”. Assim, “o detentor do capital pode obter juros porque o capital é escasso, assim como o dono da terra pode obter uma renda porque a terra é escassa” (Keynes, 1983, p. 255). Desse modo, ele admite a existência de uma camada social formada por capitalistas rentistas, incluindo nela todos aqueles que recebem de modo importante juros, dividendos, renda da terra[6], etc. sem participar diretamente da produção.

Já em Marx, as formas típicas dos ganhos são pensadas por referência à produção de capital, mas considerando a mediação da circulação de capital. A produção, portanto, é produção de mercadoria como forma de capital e a circulação mercantil é circulação de capital. O valor é criado na produção pela redução do trabalho concreto ao trabalho abstrato, o qual, assim, não pode ser considerado como empiricamente mensurável; ademais, como bem se sabe, o valor implícito na mercadoria encontra-se medido pelo tempo de trabalho socialmente necessário, sem que os agentes da produção possam calculá-lo. Apenas o trabalho que produz mercadoria e gera mais-valor é produtivo no capitalismo. Assim, o que define o trabalho produtivo é a posição do trabalho na relação de capital e não meramente se ele pertence à esfera da produção.

A léxis de O capital é clara. Na esfera do capital industrial é gerada, por meio da produção de mercadorias, a massa global de mais-valor e esta é apropriada de vários modos na esfera da circulação dependendo da atuação específica dos vários tipos de capital e da terra no próprio modo de produção. O Livro I de O capital trata da produção do capital e o Livro II volta-se para a circulação do capital. Apenas o capital industrial é tratado nesses dois primeiros. É apenas no Livro III que Marx vai tratar das diferentes formas de apropriação da massa global de mais-valor gerada no âmbito do capital industrial. Assim, ele apresenta primeiro a forma específica de apropriação do mais-valor como lucro pelo próprio capital industrial, agora não como capital em geral, mas como uma pluralidade de capitais particulares em processo de concorrência. Em sequência, mostra a forma específica de apropriação do capital comercial e do capital portador de juros. Explica, então, a forma capital fictício, mostrando que esta não atua diretamente na produção de valor e de mais-valor, mas representa simplesmente expectativas de valorização que se representam em “papéis”. Finalmente, mostra como se dá a transformação do lucro em renda fundiária [7]

É importante notar que todas essas formas sociais são internas ao modo de produção capitalista. Mais do que isso, elas são necessárias e funcionais para a sua existência concreta. Fazem parte da totalidade constituída pela relação de capital e, por isso, existem em função dela. Ademais, não se pode fundir o juro com a renda da terra para criar uma nova categoria já que o primeiro resulta da relação de capital-dinheiro e o segundo advém da relação de propriedade fundiária. A primeira é principalmente (mas não só) uma relação entre o capital monetário e o capital industrial e a segunda é uma relação entre o capital funcionante e a propriedade da terra.

Marx, em O capital, diz que “o valor e o mais-valor incorporados nas mercadorias hão de realizar-se apenas no processo da circulação”. Mas tal conexão da produção e da circulação – ele já tinha clareza sobre isso – costuma ser suprimida no discurso dos economistas que se contentam em pensar a partir da aparência, isto é, eles privilegiam a circulação. Em consequência, diz ele, o valor e o mais-valor – assim como as formas mediante as quais eles aparecem efetivamente na circulação – “parecem não só se realizar na circulação, mas [parecem mesmo] surgir dela” (Marx, 2017, p. 890). É bem evidente que Keynes, partindo de uma versão naturalista do valor-trabalho, pensa espécies diferentes de capitais, concentrando-se na repartição. Faz, portanto, diferença entre o capital na esfera da produção (máquinas, equipamentos, instalações, etc.) que recebe lucro e o capital na esfera das finanças (ações, títulos, etc.) que ganha juros. Este último, junto com a terra, comanda riqueza fora da esfera da produção e, por isso, prospera, segundo ele, por meio do rentismo.  

Não se acha e não se pode achar, portanto, em Marx aquilo a que se refere Chesnais como “capital rentista”. Eis que se trata de uma forma de capital que só pode progredir no mundo imaginário [8] que Keynes e Robinson chamam de “economia monetária de produção de bens” – mas não no modo de produção capitalista. Fica, assim, provado que Chesnais, assim como muitos outros marxistas, contrabandeiam equivocamente essa “categoria” para o interior do discurso rigoroso de Marx. Ao fazê-lo, praticam fragrantemente uma violação da léxis de O capital.

Referências

Benoit, Hector – Platão e as temporalidades: a questão metodológica. São Paulo: Annablume, 2015.

Chesnais, François – Finance capital today – corporations and banks in the lasting global slump. Leiden/Boston: Brill, 2016.

Keynes, John M. – Teoria geral do emprego, do juro e do dinheiro. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

Marx, Karl – O capital – Crítica da economia política. Livro III. São Paulo: Boitempo, 2017.

Sotiropoulos, Dimitris P.; Milios, John; Lapatsioras, Spyros – A political economy of contemporary capitalismo and its crisis – demystifying finance. Routledge, 2013.


[1] Professor titular aposentado da FEA/USP. Correio eletrônico: eleuter@usp.br. Blog na internet: https://eleuterioprado.wordpress.com

[2] O autor da presente nota já empregou o termo ‘capital financeiro’ para falar do ‘capital de finanças’. Não se trata de um erro, mas – considera-se agora – esse uso leva à confusão.

[3] A cientificidade é positiva. A produção é produção de bens. Ela é pensada por Keynes – e isto ficará claro a frente – por meio de uma função de produção em que o único fator de produção é o trabalho.

[4] Para Hegel, como se sabe, o conceito não é nem o abstrato por excelência nem uma mera ferramenta do pensamento. É, ao contrário, o princípio do real, mas de modo diverso daquele de Aristóteles. No Prólogo da Fenomenologia do Espírito está escrito: “o conceito é o próprio si mesmo do objeto, representado em seu devir; nesse sentido, não é algo quieto que dá suporte imóvel aos acidentes, mas sim o que se move e o que repõe por si mesmo as suas determinações”. 

[5] Segundo Sotiropoulos, Milios e Lapatsioras, a teoria de Keynes, pelo menos no aspecto aqui discutido, está inspirada na teoria do valor de David Ricardo (2013, p. 19-22)

[6] O proprietário de terra que recebe renda fundiária é evidentemente um rentista. Nesse sentido estrito, o termo não ofende a exposição de Marx.

[7] Note-se que, para Marx, nem mesmo a renda da terra pode ser considerada como uma forma meramente parasitária. Pois, a sua existência decorre da necessidade da monopolização da terra na forma da propriedade privada, sem a qual o modo de produção capitalista não poderia existir. Só emprega esse termo para se referir a especulação fraudulenta.

[8] Keynes, mesmo se é mais realista do que os neoclássicos, por exemplo, da variante walrasiana, também pensa no plano da representação, da imaginação explanatória, do entendimento e, por isso, é capaz de pensar economias mercantis generalizadas sem e com dinheiro!

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