Michael Roberts – The next recession blog – 14/07/2025
“O Bitcoin não é investimento, mas meio de especulação. Não é regulamentado, não tem lastro em nenhum ativo; vale apenas o que alguém está disposto a pagar por ele.” – Mateus Stephenson
“Trata-se de um jogo totalmente louco e estúpido” – Charlie Munger (2023).
“As criptomoedas são altamente voláteis e, por isso, não são realmente úteis como reservas de valor; elas não estão apoiadas em nada… Figuram como ativos especulativos que, essencialmente, substituem o ouro e não o dólar”. Presidente do Federal Reserve Bank, Jay Powell
“Bitcoin, parece uma farsa…. Não gosto porque vem a ser outra moeda competindo com o dólar. Donald Trump, em junho de 2021.
A semana nos EUA está marcada pelos ativos designados como criptos. Note-se de passagem que o preço do criptoativo[1] mais saliente, o Bitcoin, atingiu um recorde de US$ 120.000. Ora, nessa semana, o Congresso dos EUA se prepara para considerar projetos de lei destinados a criar estruturas regulatórias mais claras para os ativos digitais. Os legisladores dos EUA considerarão vários ordenamentos com esse objetivo: Genius Act, o Digital Asset Market Clarity Act e o Anti-CBDC Surveillance State Act. O objetivo é tornar a “América a capital mundial dos criptoativos”.
O Senado dos EUA já aprovou o Genius Act, um projeto de lei que permite que empresas privadas emitam “criptoativos estáveis” (stablecoins). [Como se sabe, tem-se aqui um tipo de cripto que busca manter um valor estável, pois o seu valor de mercado está vinculado a uma referência externa. Essa referência pode ser uma moeda fiduciária como o dólar americano, uma mercadoria como o ouro ou outro instrumento financeiro supostamente seguro.]
Uma lei de vigilância, conhecida como Anti-CBDC Surveillance State Act, está agora sendo examinada. Ela se destina a proibir o Federal Reserve de criar e emitir um criptoativo estatal. Se aprovada, ficará garantido que os criptoativos privados não precisarão competir com criptoativos emitidas pelo governo.
Para onde tudo isso está indo?
A ascensão dos criptoativos começou há mais de dez anos, após o fim da Grande Recessão. Como tais, eles são tokens digitais que pretendem simular o ouro. São extraídos como ouro, não fisicamente numa mina terrestre, mas por meio de um “garimpo” que é feito num lócus específico da rede digital mundial, usando computadores poderosos. Eis que, divorciados do controle do banco central, eles estão ocultos por meio da tecnologia de “blockchain”.
Por muito tempo, o preço dos criptoativos em dólares oscilou violentamente; contudo, no geral, seguiu uma tendência de alta; na verdade, ele subiu junto com os preços do mercado de ações nos EUA. Trata-se de uma nova forma de “ativo” financeiro que serve para especular. Cada vez mais, os criptoativos estão sendo reconhecidos como ativos financeiros “sérios”. Mais de US$ 11 bilhões fluíram para fundos globais que rastreiam os criptoativos este ano, elevando o total de ativos sob gestão para US$ 176 bilhões, de acordo com dados do grupo britânico CoinShares.
No começo, a mania pelos ativos designados como criptos veio junto com fraudes, criminalidade e corrupção – os casos conhecidos são numerosos demais para que se possa mencionar todos. Em um relatório anual em setembro passado, o FBI revelou que as fraudes relacionadas a negócios com criptoativos dispararam em 2023; os americanos sofreram perdas estimadas em US$ 5,6 bilhões, o que representou um salto de 45% em relação ao ano anterior.
Sam Bankman-Fried, um personagem do mercado financeiro que fundou a agora falida empresa de criptoativo denominada FTX, foi condenado a vinte e cinco anos de prisão, em março de 2024 por um juiz de Nova York. Eis que ele “ordenhara” os seus clientes e deles tirara cerca de US$ 8 bilhões (veja-se a descrição desse caso numa postagem anterior). No mês passado, a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA acusou a Unicorn, uma plataforma de investimento que vendia criptoativos lastreados em imóveis, de cometer uma fraude de US$ 100 milhões. Ela teria enganado mais de 5.000 investidores.
No sonho dos libertários e entusiastas da tecnologia, os criptoativos viriam para substituir o dinheiro emitido pelo Estado, como o dólar ou o euro. Assim, eles libertariam os indivíduos da “mão pesada da regulamentação estatal”. Ora, a criação desse mundo monetário “livre” nunca se materializou. Em vez disso, o que aconteceu foi que as mega instituições financeiras assumiram o controle da emissão desses ativos digitais; agora, elas os estão transformando no que esperam que seja um conjunto altamente lucrativo de ativos financeiros, capaz de atrair muitos investidores.
O epítome dessa abordagem é o próprio Donald Trump. Tendo anteriormente condenado os criptoativos como uma farsa, agora ele possuir um deles, o $Trump. A sua esposa Melania é também dona de um criptoativo digital. Ele próprio divulgou recentemente que obteve quase US$ 60 milhões em receita no ano passado de um de seus empreendimentos no setor de ativos digital.
Ora, esse tipo de criptoativo tem sido chamado também de “ativo meme” já que se espalham entre os investidores como os vírus se difundem na internet. Em sua face digital aparece, por exemplo, um esquilo cinza sacrificado, um cachorro de desenho animado ou até mesmo uma piada obscena. Há uma enorme proliferação desses ativos digitais.
A CoinMarketCap, um plataforma online e provedora de dados que opera nesse mercado, rastreia cerca de 16,9 milhões em ativos dessa espécie – mas se sabe que há muitos milhões mais estacionado ou circulando nos portfólios de milhões. E isso está deixando os investidores (investidores?!) com um número desconcertante de opões para comprar. A escolha do consumidor sob o capitalismo chegou, pois, ao esplendor!
O magnata das criptoativos Justin Sun exibiu publicamente um relógio da marca Donald Trump, o qual custa US$ 100.000; ele o recebeu em um jantar privado no clube de golfe de Trump, na Virgínia. Sun obteve essa joia por ter comprado US$ 20 milhões de criptoativo $Trump. Ao fazê-lo, classificou-seem primeiro lugar entre os 220 compradores, os quais haviam recebido convites para participar do festim.
O badalado banquete de Trump aconteceu em 22 de maio de 2025. Ele foi seguido por uma visita à Casa Branca, ocorrida já no dia seguinte, da qual participaram os 25 principais compradores do $Trump. Estimulados a adquirir esse criptoativo, os convidados acabaram deixando com o patrocinador cerca de US$ 148 milhões. Grande parte desse montante veio ao seu bolso sob a forma de cortesia feita por compradores anônimos, alguns estrangeiros.
A Sun investiu US$ 75 milhões em outra empresa de criptoativos de Trump, a World Liberty Financial (WLF). Ela foi lançada em outubro passado pelo presidente norte-americano e seus dois filhos mais velhos. A empresa, descrita como um “banco de ativos digitais“, permite que os usuários tomem emprestado, emprestem e invistam em criptoativos. A família Trump é dona de 60% de seus ativos totais.
Sabe-se, por outro lado, que o órgão regulador dos EUA (US Securities and Exchange Commission ou SEC) já atuou em 12 casos envolvendo fraude de criptoativos; neles, estão incluídas três empresas que eram controladas pela Sun. Na verdade, essas três foram acusadas de fraude em um processo da SEC, em 2023. Eles tiveram seus casos ‘pausados’ em fevereiro pela agência; o motivo alegado foi o “interesse público” (!).
Após a aprovação das leis antes mencionadas, o que ocorrerá? As moedas emitidas pelo Estado, como o dólar americano ou o euro, serão usurpadas por tais supostas criptomoedas privadas? A resposta para essa pergunta vem de uma dupla consideração: primeiro, todas os criptoativos são precificadas em dólares – o dinheiro emitido pelo Estado e que todos os norte-americanos usam para comprar bens e serviços. É preciso notar que o Bitcoin, assim como os outros ativo dessa espécie, não substituíram os dólares (ou euros) na realização das transações diárias que se contam aos bilhões.
A segunda consideração vem do próprio surgimento dos criptoativos estáveis (stablecoins). Como já se mencionou, esse tipo de ativo criptográfico está vinculado a um dinheiro fiduciário existente, por exemplo, ao dólar americano, à libra esterlina, ao euro etc. Embora a transação possa ser bem cara, essa vincução facilita a sua conversão.
Os cripto ativos estáveis, por força da convenção que os criam, precisam rastrear moedas efetivas que estejam em funcionamento nos mercados. Julga-se que podem, por isso, desempenhar um papel central na estabilidade do mercado de criptoativo mais amplo. Eis que fornecem supostamente aos investidores em geral um porto seguro para estacionar o dinheiro que possuem em meio às apostas mais arriscadas em criptos ativos digitais mais voláteis.
Mas isso já é por si mesmo uma revelação. Os criptoativos estáveis são mais líquidos do que os criptoativos voláteis. Há garantia de que se pode convertê-los em ‘dinheiro real’, ou seja, quando o investidor passa a querer dólares, euros etc. As empresas de criptoativos estáveis estão obrigadas nos Estados Unidos a lastreá-los em dólares americanos ou em ativos denominados em dólares. Essas empresas, assim, por exemplo, têm de deter títulos do tesouro para atender a qualquer demanda de conversão dos seus criptoativos.
O problema aqui é que os criptoativos estáveis geralmente não são estáveis. A maior empresa desse ramo é a Tether. Em 2022, ela enfrentou uma corrida aos seus instrumentos quanto se descobriu que ela mantinha apenas 4% de seus ativos em dinheiro, pois o restante era mantido em títulos comerciais arriscados (veja-se a postagem feita sobre isso na época).
Ele conseguiu se safar porque os criptoativos estáveis ainda não estavam regulamentados, não se sujeitavam à supervisão regulatória ou aos requisitos de seguro de depósito. Mas agora isso deve acontecer. Mas a lei em pauta, a Genius Act, segundo a senadora Elizabeth Warren, “não impedirá a fuga das sanções, assim como outras atividades ilícitas; ela permitirá, no entanto, que as grandes gigantes da tecnologia como o X de Elon Musk emitam seu próprio dinheiro privado – tudo sem as grades de proteção necessárias para manter os americanos protegidos contra eventuais golpes, taxas exorbitantes e colapso financeiro eventual“.
A criptomania não mostra sinais de que vai acabar. A grande mudança agora é que as empresas de criptoativos estão se esforçando para se expandir dentro do sistema bancário tradicional nos EUA; buscam, assim, capitalizar o criptoativo “livre para todos” criado por Donald Trump. A lei “Genius Act” reforçará a regulamentação dos criptoativos estáveis e os vinculará mais estreitamente aos títulos do Tesouro dos EUA. Apenas os bancos regulamentados e alguns grupos não bancários com licenças poderão emitir criptoativos estáveis.
Mas isso realmente significa o fim dos “criptoativos privados livres do Estado”? Ora, “tem-se, sim… uma virada de 180 graus, pois muitas dessas empresas de criptoativos disseram no passado que não precisavam de bancos, não careciam de leis, pois se julgavam acima de tudo'” – mencioniou Max Bonici, sócio do escritório de advocacia Davis Wright Tremaine. “Agora elas estão pedindo para serem reguladas”. Ora, as grandes estão agora entrando no negócio. Os grandes bancos, incluindo o Bank of America, estão prontos para começar a emitir os seus próprio criptoativos estáveis; eles estão esperando que a regulamentação dos EUA seja finalizada.
O Goldman Sachs espera que o montante em valor dos criptoativos estáveis em circulação cresça de US$ 240 bilhões para mais de US$ 1 trilhão dentro de três a cinco anos. O Citigroup estima que as transferência internacionais desses ativos cheguem a US$ 195 trilhões e que os fluxos enviados por meio do sistema SWIFT atinjam US$ 1 quatrilhão. O JPMorgan afirma como possível que os criptoativos estáveis fiquem com 10% da oferta monetária no conceito M2, ou seja, que alcancem o total de US$ 2 trilhões.
Dado o otimismo das grandes instituições financeiras com os criptoativos estáveis – eles estão sendo apoiados agora pelo presidente e pelo Congresso dos EUA –, cada uma delas está criando e vendendo o seu próprio produto. Na prática, contudo, não haverá muita demanda pelos criptoativos estáveis, pois eles não pagam juros e, assim, o seu valor pode ser corroído pela inflação.
Alguns bancos estão tentando contornar esse problema. O JP Morgan diz que está lançando o que chama de “token de depósito” como uma alternativa aos criptoativos estáveis – ou seja, os assim chamados JPMD. O banco diz que o JPMD acabará permitindo que seus clientes institucionais enviem e recebam dinheiro com segurança por meio de um sistema em cadeia de depósitos bancários; e que ele pagará juros.
Ora, isso precisamente mostra que os criptoativos privados não são dinheiro. Os tokens do JP Morgan são coisas semelhantes aos vales-presente ou aos pontos de supermercado, os quais podem ser usados pelos detentores apenas dentro da empresa específica que os emitiu. Eles não são universalmente utilizáveis.
Tal como os criptoativos estáveis, eles precisam ser transformados em dinheiro real, ou seja, em dólares, libras etc. por meio de outra transação. Tal como ocorre com o Bitcoin, o ganho que proporciona pode parecer bom; contudo, realizar e sacar esse ganho pode ser mais difícil. Para qualquer quantia considerável, será preciso colocar o criptoativo em uma ‘carteira externa’. Mas, para isso, é preciso pagar um alto custo de transação. Ademais, o investidor também fica imensamente vulnerável a hackers e golpistas de blockchain.
No comércio e nas finanças globais, é difícil fazer transferências de bens e dinheiro entre as partes ao mesmo tempo, o que cria riscos, atrasos e despesas. Mas, como aponta Steven Kelly, do Programa de Estabilidade Financeira de Yale, “os criptoativos estáveis pretendem resolver isso, mas o problema é que os pagamentos da cadeia de suprimentos agora e no futuro exigem e exigirão dinheiro bancário”.
Os criptoativos estáveis não são dinheiro. Como está dito num relatório do Banco de Compensações Internacionais (BIS): o dinheiro bom é aquele que “pode ser emitido por diferentes bancos e aceito por todos sem hesitação. Ele funciona assim porque é liquidado ao par contra um ativo seguro comum (as reservas do banco central), que é fornecido precisamente pelo próprio banco central. Os tokens digitais não têm essa propriedade e é difícil ver como isso pode mudar”.
Ora, o dinheiro é a forma universal do valor; é preciso ter essa forma universal para se tornar dinheiro. O BIS parece confirmar essa características inerente do dinheiro: “A base de qualquer acordo monetário consiste na possibilidade de liquidar pagamentos ao par, ou seja, de sempre realizar o valor do dinheiro.
O Estado, por meio de um banco central, garante o valor do dinheiro em geral; este atende à toda necessidade da circulação; tem, em consequência, uma liquidez infinita [ou seja, pode ser sempre transformado em bens e serviços]. Ora, isso não se aplica a tokens privados como os criptoativos estáveis mesmo estando eles submetidos aos poderes regulatórios do Estado. Na melhor das hipóteses, os criptoativos estáveis funcionam apenas como mais um ativo financeiro, tal como os títulos corporativos. Como não são formas de dinheiro, não têm uso universal.
Além disso, o BIS argumenta que “os criptoativos carecem dos benefícios de escalabilidade e coordenação possuídos pelo dinheiro. À medida que o tamanho do registro contábil cresce com o volume das transações, fica mais difícil atualizá-lo rapidamente. O custo das transações com criptoativos aumenta com o volume de transações; como se sabe, eles não podem ser dimensionados sem comprometer a segurança ou sua base descentralizada.”
Os criptoativos são vulneráveis à corrupção, à fraude e à lavagem de dinheiro; como são tokens privados, eles são transacionados sob relações de troca muito variadas com o dinheiro emitido pelo Estado. De qualquer modo, eles permitirão que as grandes instituições financeiras obtenham lucros enormes sem nenhum ganho visível de valor para a sociedade.
Os Bitcoins e os outros criptoativos se movem cada vez mais em sintonia com os preços das formas tradicionais de capital fictício. Estudos recentes e análises de mercado mostram que a correlação do preço do Bitcoin com o S&P 500 aumentou significativamente nos últimos cinco anos. Especialmente durante crises macroeconômicas – como COVID-19, picos de inflação ou mudanças na política monetária – ambos os ativos tendem a se mover em conjunto. Por exemplo, a correlação entre eles, calculada em intervalos de 30 dias, ultrapassou 70%, mostrando sensibilidade compartilhada aos riscos globais e às decisões monetárias.
Em consequência, é de ser prever que qualquer instabilidade futura nos mercados financeiros ou qualquer desaceleração significativa na chamada “economia real”, atingirá duramente o mercado de criptoativos sejam eles “estáveis” ou francamente instáveis.
[1] Michael Robert usa o termo “cryptocurrency”; ora, o Bitcoin e semelhantes não são nem dinheiro e nem moeda. Como o próprio texto diz, o dinheiro é sobretudo um equivalente geral. Nessa tradução vai se usar, por isso, o termo criptoativo, mesmo quando o autor do texto escreve, traduzindo do inglês, criptomoeda



Você precisa fazer login para comentar.