Efeitos macroeconômicos e redistributivos das políticas tarifárias de Trump

Autores: Simon Grothe [1] e Michalis Nikiforos [2]

Publicado originalmente pelo Institute for New Economic Thinking [3] – 5 de Maio de 2025

Lead: O resultado mais provável do segundo governo Trump é uma recessão e uma exacerbação das desigualdades, assim como uma maior degradação dos padrões de vida dos trabalhadores e da classe média americana.

As últimas semanas foram marcadas pelos anúncios de Donald Trump de tarifas mais altas em quase todos os parceiros comerciais dos Estados Unidos. Essas tarifas foram justificadas sob uma agenda “America First”, que visa trazer empregos de manufatura de volta aos EUA e – de acordo com a ala populista da coalizão Trump – restaurar a posição da classe média americana.

A implementação dessas tarifas tem sido, para dizer o mínimo, errática. Inicialmente, houve aumentos sobre as importações da China, México e Canadá – algumas das quais foram posteriormente adiados. Isso foi seguido em 2 de abril – conhecido como “Dia da Libertação” – por um aumento abrangente nas tarifas sobre quase todos os parceiros comerciais dos EUA, levando a medidas retaliatórias (por exemplo, da China e da União Europeia).

O colapso resultante nos mercados financeiros levou a um novo adiamento dos aumentos para todos os países, exceto para China, cujas tarifas subiram ainda mais. Em resposta, a China expandiu suas tarifas sobre as importações dos EUA. No momento da redação deste artigo, o último episódio deste drama foi o anúncio de que as principais importações de produtos eletrônicos da China, bem como carros e peças de automóveis, estariam isentas dos aumentos tarifários.

Uma questão importante relacionada a esses desenvolvimentos é quais serão suas consequências distributivas. As promessas de uma regeneração da classe média americana são críveis? Pode–se argumentar, por exemplo, que, uma vez que a propriedade de ativos financeiros é distribuída de forma muito desigual, o crash do mercado de ações das últimas semanas é irrelevante – já que o mercado de ações não representa a economia real – ou mesmo benéfico do ponto de vista distributivo, porque afeta desproporcionalmente indivíduos de alta renda e/ou alto patrimônio líquido.

Nesta nota, explicamos que tal resultado é improvável. Se examinarmos os efeitos das novas tarifas no contexto das políticas mais amplas do novo governo, o resultado mais provável é uma recessão e uma exacerbação das desigualdades, e uma maior degradação dos padrões de vida dos trabalhadores e da classe média americana.

O déficit comercial dos EUA

De acordo com o governo Trump, a principal razão para os aumentos tarifários é o grande déficit comercial da economia dos EUA. Os EUA emergiram da Segunda Guerra Mundial com um superávit comercial e uma conta corrente geral equilibrada. O déficit comercial não apareceu até o final da década de 1970 e continuou a crescer até a crise financeira de 2007, uma tendência que foi brevemente interrompida no final da década de 1980 após o Acordo de Plaza.

Nos últimos quinze anos, o déficit da balança comercial não regressou aos níveis anteriores a 2007, em grande parte devido ao aumento da extração de gás de xisto e a uma melhoria significativa da balança comercial de produtos petrolíferos. No entanto, a balança comercial de bens, excluindo produtos petrolíferos, permanece no mesmo nível de 2006.

Esse aumento de longo prazo no déficit comercial – abrangendo mais de quatro décadas – foi em grande parte o resultado de uma estratégia deliberada do capital dos EUA de terceirizar a produção. Isso foi impulsionado por um duplo objetivo: acessar mão de obra mais barata no exterior e disciplinar o trabalho em casa. Essa estratégia desempenhou um papel central no aumento da desigualdade nos EUA durante o mesmo período.

O papel do dólar americano como moeda de reserva internacional também contribuiu para o déficit comercial. A alta demanda global por ativos denominados em dólares tende a fortalecer a taxa de câmbio do dólar em relação a outras moedas. Além disso, os formuladores de políticas dos EUA apoiaram ativamente o dólar quando ele corria o risco de se depreciar.

Os economistas neoclássicos forneceram a justificativa intelectual para o livre comércio e a terceirização da produção com modelos que enfatizavam seus benefícios. Nesses modelos, embora se reconheça que a remoção de barreiras comerciais pode ter efeitos positivos sobre o bem-estar de alguns atores e setores econômicos e efeitos negativos sobre outros, o efeito líquido é positivo. Assim, os “perdedores” podem ser compensados pelos “vencedores”, que estarão em melhor situação.[4]

A análise neoclássica sofre de duas grandes deficiências: ignora o papel do poder e é, por natureza, amplamente estática, pois se concentra na alocação de recursos enquanto negligência os aspectos dinâmicos e evolutivos das economias capitalistas. Devido a essas limitações, não consegue levar em conta duas dimensões cruciais do déficit comercial em expansão.

Primeiro, os benefícios do livre comércio foram distribuídos de forma muito desigual. O consumidor americano se beneficiou, mas a maioria dos benefícios se concentrou no topo da distribuição de renda, pois as empresas conseguiram aumentar seus lucros por causa das importações mais baratas do exterior e do trabalho disciplinado em casa.

Enquanto isso, a terceirização da produção prejudicou gravemente os trabalhadores da indústria, muitos dos quais perderam seus empregos, e regiões inteiras experimentaram a desindustrialização e o declínio econômico. Os últimos, os “perdedores”, nunca foram compensados pelos primeiros, “os vencedores”, como sugeria a teoria. Nessa perspectiva, é compreensível que as comunidades afetadas e os sindicatos do setor manufatureiro tenham se oposto ao livre comércio e apoiado as tarifas.

Em segundo lugar, o processo de aumento do déficit comercial envolveu um processo que Myrdal chamou de “causalidade circular e cumulativa” tanto nos EUA quanto no exterior. O aumento dos superávits comerciais dos parceiros comerciais dos EUA na Ásia e no norte da Europa permitiu que eles melhorassem sua posição nas cadeias globais de valor e se tornassem muito mais competitivos nesse período. A China é o principal exemplo nesse processo.

Por outro lado, esse processo funcionou de maneira oposta nos EUA. O esvaziamento do setor manufatureiro e de suas redes de produção tornou cada vez mais difícil realocar a produção. Em outras palavras, devido às economias de escala e outros fatores dinâmicos, a decisão de terceirizar a produção não é simétrica àquela do retorno industrial. O simples aumento das barreiras comerciais não trará automaticamente de volta os empregos na indústria que foram perdidos quando essas barreiras foram inicialmente removidas.

De forma mais geral, o fato de a economia neoclássica estar errada quando sugere que a remoção de barreiras comerciais é sempre benéfica e leva a melhorias no bem-estar não torna o oposto verdadeiro, ou seja, que o aumento das barreiras comerciais é sempre benéfico e leva a melhorias no bem-estar.

Assim, o efeito das tarifas depende das características estruturais de cada economia, bem como de outras políticas que as acompanham. Dependendo deles, eles podem ser benéficos ou prejudiciais – para a economia como um todo ou para grupos específicos dentro da economia. No caso da economia dos EUA, a mudança nas características estruturais do setor industrial nas últimas décadas torna possível que aqueles que perderam com o impulso para o laissez–faire também percam com o aumento das tarifas. É a esse resultado a que se chega em sequência.

Efeitos distributivos de curto prazo das tarifas

Passamos agora aos efeitos distributivos das tarifas. No curto prazo, o impacto real das tarifas sobre as exportações líquidas será limitado, pois o potencial de substituir bens importados por alternativas domésticas é mínimo. Qualquer margem de substituição que exista – levando a uma redução nas importações dos EUA – será compensada pelas contra–tarifas anunciadas pelos parceiros comerciais dos EUA, o que, por sua vez, reduzirá as exportações dos EUA.

Por outro lado, tarifas mais altas levam ao aumento dos custos dos produtos importados. A última vez que a economia dos EUA enfrentou um choque generalizado nos preços das importações foi após a pandemia. Como descobrimos em um artigo recente  – consistente com vários outros estudos – as empresas americanas foram capazes de defender ou mesmo aumentar suas margens em resposta a esse choque, repassando os aumentos de custos para os preços domésticos. O resultado repercutiu na inflação doméstica e na pressão sobre a renda real das classes trabalhadora e média.

Na medida em que, desta vez, as empresas também poderão defender suas margens de lucro – não está claro o que mudou em comparação com três anos atrás – os resultados distributivos imediatos das tarifas serão análogos: aumento dos preços domésticos e perdas reais de renda para a classe média.

Como explicamos em outro artigo, os efeitos distributivos em resposta a choques nos preços de importação também podem ter efeitos macroeconômicos significativos. Como a propensão a consumir das classes trabalhadora e média é muito alta, as perdas reais de renda devido ao aumento de preços têm um efeito negativo sobre o consumo e a demanda agregada (um ponto ao qual retornaremos em sequência).

O orçamento

Costuma–se dizer que as verdadeiras intenções de um governo são reveladas por seu orçamento. Isso é especialmente verdadeiro no caso do recente orçamento aprovado pelo Congresso com o apoio do governo Trump. Não se pode discutir as prioridades do governo sem se referir a ele.

O projeto de lei orçamentária inclui trilhões de dólares em cortes de impostos e gastos. No entanto, os cortes de impostos beneficiarão principalmente as famílias e empresas de alta renda, enquanto os cortes de gastos afetarão desproporcionalmente as famílias de baixa e média renda. Isso inclui reduções no Medicaid, programas de assistência nutricional, a demissão de centenas de milhares de funcionários federais e o desmantelamento de agências governamentais inteiras. Claramente, essas políticas resultarão em uma redistribuição significativa da renda das famílias de renda mais baixa para as mais altas.

De acordo com estimativas recentes  do Yale Budget Lab, a renda média após impostos e transferências das famílias no quintil inferior e no quintil inferior deve diminuir 5% e 1,4%, respectivamente. Por outro lado, as famílias no quarto e no quintil superior verão suas rendas aumentarem 1,4% e 2,5%, respectivamente. Essas perdas se somam à redução estimada na renda familiar média em 2,8% devido às tarifas. Conforme observado pelo Center on Budget and Policy Priorities, as perdas estimadas dos quintis inferiores são provavelmente conservadoras, pois não levam em conta os cortes supervisionados pelo Comitê de Educação e Força de Trabalho da Câmara, que devem afetar as condições de pagamento dos empréstimos estudantis.

As disposições do projeto de lei orçamentária são difíceis de conciliar com a narrativa neopopulista de que o governo Trump busca defender a classe trabalhadora e média americana. Em vez disso, o projeto de lei segue o precedente estabelecido pela Tax Cuts and Jobs Act  de 2017, que teve efeitos distributivos regressivos e levará a um aumento adicional da desigualdade de renda nos EUA.

Efeitos macroeconômicos

Isso nos leva aos potenciais efeitos macroeconômicos das políticas comerciais e fiscais do novo governo. Como já observado, as exportações líquidas são relativamente inelásticas no curto prazo, e qualquer diminuição nas importações alcançada por meio de tarifas mais altas provavelmente será compensada por uma diminuição correspondente nas exportações devido a tarifas recíprocas impostas pelos parceiros comerciais dos EUA.

Além disso, a redistribuição de renda das famílias de classe média e trabalhadora – resultante tanto do novo orçamento quanto do impacto inflacionário das tarifas – afetará negativamente o consumo, já que as famílias de baixa e média renda têm uma propensão muito maior a consumir do que aquelas no topo da distribuição de renda. Além disso, a recente queda no mercado de ações, juntamente com a volatilidade contínua, pode contribuir para um efeito negativo de riqueza, suprimindo ainda mais o consumo.

O crescimento dos gastos do governo também deve desacelerar em linha com o orçamento, removendo outra fonte potencial de demanda.

Isso deixa o investimento privado como o único componente remanescente que poderia impulsionar o crescimento econômico. Mas será provável que o investimento aumente em resposta aos cortes de impostos recentemente adotados e compense as pressões negativas sobre o consumo e os gastos do governo? A resposta parece ser não. O consenso em relação à Lei de Cortes antes mencionada – que foi igualmente justificada com base no fato de que a redução das taxas de impostos para famílias e empresas ricas aumentaria o investimento – é que ela teve um pequeno efeito na produção e no investimento. Há poucas razões para acreditar que os cortes de impostos seriam mais eficazes desta vez.

Além disso, o ambiente econômico e político altamente incerto provavelmente diminuirá o “espírito animal” dos empresários e pesará ainda mais sobre o investimento. Como resultado, não apenas um boom de investimento é improvável, mas o investimento provavelmente desacelerará ou até diminuirá, colocando ainda mais pressão descendente sobre a demanda agregada.

No geral, essa análise sugere que é improvável que a economia dos EUA evite uma desaceleração significativa, enquanto a probabilidade de uma recessão não é desprezível.

Dois pontos relacionados são dignos de nota. Primeiro, uma desaceleração econômica provavelmente reduzirá o déficit comercial – atingindo a meta declarada do governo, mas pelas razões erradas. Em segundo lugar, a desaceleração (ou ainda mais, uma recessão potencial) e o aumento da taxa de desemprego que o acompanha terão outras consequências distributivas contra os salários.

O longo prazo

Pode–se finalmente argumentar que tudo isso é uma pílula amarga que a economia dos EUA deve engolir para reviver seu setor industrial. Embora esteja além do escopo desta nota oferecer previsões sobre a transformação estrutural de longo prazo da economia dos EUA, podemos fazer três pontos–chave.

Primeiro, é improvável que as tarifas por si só – especialmente quando implementadas de maneira tão errática e ad hoc – sejam suficientes para alcançar a desejada transformação estrutural da economia dos EUA e sua base manufatureira. Essa transformação exigiria uma estratégia mais ampla e coerente, que ainda não foi proposta.

Em segundo lugar, alguns dos objetivos declarados e as prováveis consequências das políticas comerciais anunciadas correm o risco de minar o papel do dólar como moeda de reserva internacional. Declínios acentuados nos preços dos ativos dos EUA e uma desvalorização do dólar são inconsistentes com seu status contínuo como moeda global hegemônica. Ainda não está claro como o governo Trump pretende reconciliar essas contradições.

Finalmente, um ressurgimento da manufatura não se traduz automaticamente em melhores condições para as classes trabalhadora e média. A era entre a Guerra Civil e o início do século 20 – uma era que o presidente Trump costuma idealizar – foi de fato marcada por altas tarifas destinadas a proteger a manufatura dos EUA.

No entanto, além do fato de que naquela época os EUA eram essencialmente uma economia em desenvolvimento alcançando as economias europeias muito avançadas, este é exatamente o período conhecido como Era Dourada, que foi marcada por desigualdades muito altas.

A redução da desigualdade e o aumento dos padrões de vida dos trabalhadores americanos e da classe média vieram depois, como resultado das lutas trabalhistas organizadas e das políticas introduzidas durante o New Deal e o período pós-guerra. A atual administração não propôs políticas comparáveis – na verdade, como observamos, o orçamento parece se mover precisamente na direção oposta.

Conclusão

A economia dos EUA passou por mudanças dramáticas nas últimas décadas. As taxas médias de crescimento do PIB real e da produtividade diminuíram, enquanto a desigualdade de renda e riqueza aumentou e parcelas significativas da produção industrial foram terceirizadas. Essas mudanças deixaram trabalhadores em muitos setores economicamente inseguros. No entanto, é improvável que as atuais políticas comerciais e fiscais do governo Trump – juntamente com a maneira errática como são anunciadas – abordem essas questões. Pelo contrário, seu resultado mais provável é um agravamento da desigualdade e o início de uma recessão, acompanhada de aumento dos preços.

Notas

[1] Ph.D. Estudante, Universidade de Genebra, Suíça

[2] Professor Associado, Departamento de História, Economia e Sociedade, Universidade de Genebra, Suíça. Pesquisador, Instituto de Economia Levy do Bard College, Nova York

[3] https://www.ineteconomics.org/perspectives/blog/distributional-and-macroeconomic-effects-of-trump-2-0

[4] A possibilidade de que o comércio possa levar a perdas líquidas de bem-estar surge, como em muitos aspectos da teoria neoclássica, quando várias rigidezes ou imperfeições de mercado são introduzidas. No entanto, estes foram geralmente tratados como casos especiais que não prejudicaram a mensagem central: a liberalização do comércio é benéfica.