Autor: Romaric Godin [1] – Esquerda.net – 15/12/2024
Um ano após a sua chegada ao poder, o Presidente argentino Javier Milei apresenta um balanço econômico que considera lisonjeiro. Mas a realidade é a de uma recessão violenta, que levou um em cada dois argentinos à pobreza, para desenvolver uma lógica extrativista neocolonial.
Após um ano no poder, Javier Milei já mudou a economia argentina. Do seu ponto de vista, a sua estratégia de choque, que consistiu em desvalorizar o peso argentino pela metade, pouco depois de ter chegado ao poder, e em reduzir drasticamente as despesas públicas, é um sucesso de que se gaba em cada uma das suas viagens ao estrangeiro. Sempre, claro está, através de uma escolha cuidadosa dos números.
Para o libertário anarcocapitalista, a inflação é o nervo da guerra. Foi graças a este tema que Javier Milei foi eleito em dezembro de 2023. Em outubro de 2024, a taxa de inflação mensal desceu para 2,7%, a mais baixa dos últimos três anos. Um sucesso que a maioria saudou com grande fanfarra. Mas não há nada mais lógico do que isto: o choque inicial da política de Javier Milei reduziu de tal forma a procura que os preços já não podem aumentar rapidamente.
Por outro lado, contrariamente à sua promessa de campanha, após o choque da desvalorização do peso em dezembro, o Presidente manteve o controle das taxas de câmbio e dos fluxos de capitais. Foi o que lhe permitiu reduzir o efeito inflacionário das importações, enquanto o peso oficial estava parcialmente alinhado com a sua taxa de câmbio paralela.
Mas para compreender o quadro completo, temos de alargar a nossa visão e incluir nesta análise o choque da desvalorização. Os governos anteriores estavam determinados a evitar a todo o custo a desvalorização oficial do peso, precisamente para evitar o empobrecimento das famílias e a recessão. O preço para manter o nível de vida era uma inflação elevada, que por sua vez acabou por dificultar a vida dos argentinos.
Uma desvalorização dolorosa
A ideia de Javier Milei era fazer um ajustamento brutal, para trazer a economia de volta ao que ele acreditava ser o seu nível de equilíbrio. Isto significava assumir o empobrecimento do país para que, mais tarde, a “verdade dos preços” permitisse ao mercado funcionar melhor. Foi este o objetivo da desvalorização de 50% do peso em relação ao dólar, em dezembro de 2023. Isto fez com que os preços aumentassem 25% num mês, reduzindo drasticamente os rendimentos da população, em particular daqueles que são pagos em pesos e não têm reservas em dólares.
Em outubro de 2024, a inflação anual atingirá, portanto, nada menos que 197,3%. Para certos produtos, como o gás e a eletricidade, onde os subsídios foram abolidos e os governos locais tentaram recuperar os fundos cortados pelo governo federal, o aumento chega a 400%. O abrandamento dos valores mensais é, portanto, fácil de explicar: uma grande parte dos preços tornou-se inaceitável para muitos argentinos, que têm de fazer escolhas nas suas despesas. Assim, os preços não podem continuar a subir. Não admira.
Preços anuais ao consumidor na Argentina. Gráfico do Indec
Ao mesmo tempo, o impacto nos salários foi significativo. Aqui, há um claro efeito de propaganda por parte do governo. O Ministério do Capital Humano argentino proclamou recentemente que os salários reais no sector privado formal tinham aumentado 10% desde dezembro, se excluirmos a inflação… de dezembro. Um ato de equilíbrio que tenta esconder os efeitos da desvalorização sobre o nível de vida.
Em setembro, os salários reais no setor privado formal eram 5% inferiores aos do ano anterior. Desde dezembro de 2023, os salários reais neste sector têm-se mantido abaixo do seu nível de novembro de 2023, antes da chegada de Javier Milei ao poder, com exceção de julho. Estas perdas de nível de vida estão a acumular-se todos os meses. Os trabalhadores têm sido utilizados como variáveis de ajustamento para reduzir a procura e, consequentemente, a inflação.
Eis o governo argentino está fazendo: basta olhar para os números excluindo o choque de dezembro. Isso não tem em conta o essencial da realidade vivida pelas famílias. Os salários são sempre lentos no se ajustarem à inflação e, logicamente, uma vez passado o choque de dezembro, recuperaram parte do aumento dos preços. Mas esta recuperação foi tardia, lenta e incompleta. Em setembro de 2024, o nível dos salários reais mensais dos trabalhadores do sector privado formal era ainda 3% inferior ao nível de novembro de 2023.
A explosão da pobreza
E a situação é ainda mais preocupante se a alargarmos a outras formas de emprego. O setor privado formal representa apenas metade dos trabalhadores, segundo o Indec. Os 20% de trabalhadores argentinos empregados informalmente registaram uma queda de 17,2% nos seus salários reais, que já são frequentemente muito baixos. No entanto, os mais atingidos continuam a ser os funcionários públicos, onde a redução de postos de trabalho foi massiva (o número de funcionários diminuiu 11% em outubro, ou seja, menos 37.600 postos de trabalho) e onde os salários reais em setembro diminuíram 59,3% em relação ao ano anterior.
Em suma, o quadro geral não é tão cor-de-rosa como a Presidência argentina nos quer fazer crer. Em setembro de 2024, o nível real global dos salários era 27,1% inferior ao de setembro de 2023. E isso é apenas uma parte da história. A taxa de desemprego aumentou 1,9 pontos percentuais desde a tomada de posse de Javier Milei, passando de 5,7% para 7,6%.
Este aumento pode parecer modesto, mas deve ser comparado com o aumento de 1,3 pontos da taxa de subocupação, que atinge atualmente 11,8% da população ativa, e com a estabilidade de uma taxa de emprego particularmente baixa. Tudo isto significa que uma parte crescente da população teve de trabalhar menos por salários mais baixos, ou continuar a viver com salários cujo rendimento real diminuiu.
Produção industrial na Argentina. Gráfico do Indec.
Por último, convém não esquecer que as taxas de inflação são globais e não medem o nível de vida de todos. As cestas globais juntam a evolução de preços para produtos consumidos diariamente e outros consumidos ocasionalmente. Em algumas regiões, os preços da energia aumentaram 1.000%, quase cinco vezes o aumento nominal dos salários oficiais do setor privado. Nestas condições, é difícil dar uma imagem estatística da realidade vivida pelos argentinos.
Uma coisa é certa: no final de setembro, o Indec confirmou a explosão da pobreza, que aumentou 11 pontos nos primeiros seis meses do ano e atinge agora 52,9% da população. Este nível de pobreza sem precedentes foi atribuído por Javier Milei ao “populismo” da administração anterior, embora os erros desta última se explicassem em grande parte pela sua recusa em aceitar um tal aumento da pobreza.
Uma economia em recessão
No plano global, a economia foi obviamente afetada. No primeiro trimestre, o PIB caiu 5,2% em termos homólogos, antes de perder 1,7% em termos homólogos no segundo trimestre. No segundo trimestre, a procura interna caiu 9,8% em termos anuais, um valor próximo do registado durante a crise sanitária. Para o conjunto do ano, o banco espanhol BBVA prevê uma contração de 4% do PIB, a primeira vez que tal acontece, excluindo a covid, desde 2009. Em 2023, o PIB já tinha registado uma contração de 1,3%.
É claro que o Governo prefere sublinhar a “retoma” em curso. Em outubro, as vendas aos consumidores aumentaram 2,9% em relação a outubro de 2023, o que representa o maior aumento dos últimos dois anos. Mas também aqui, o nível é importante. Nos primeiros dez meses do ano, as vendas ao retalho caíram 13,2%. Trata-se, portanto, de uma recuperação a partir de uma base extremamente baixa. Após meses de procrastinação, os argentinos fizeram, sem dúvida, algumas compras indispensáveis. Mas os profissionais do setor não estão muito otimistas quanto à continuidade dessa tendência.
PIB argentino em variação trimestral (coluna) e anual (linha). Gráfico FocusEconomics.
O quadro é o mesmo para a indústria. A produção industrial recuperou durante três meses, de julho a setembro, face ao mês anterior. Mas o seu nível em setembro de 2024 continua a ser 6,1 % inferior ao de setembro de 2023. Pior ainda, o nível de produção acumulado nos primeiros nove meses do ano é 12,7% inferior ao de 2023. Em suma, parece que a economia argentina está a começar a estabilizar-se num nível extremamente baixo e, em qualquer caso, mais baixo do que no final do governo anterior.
A retomada é, portanto, extremamente frágil e a recessão deverá ser mais profunda do que o previsto pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) e pelo Governo (que esperava uma queda do PIB de 2,8%). O Indec publica mensalmente um índice de atividade econômica. Em setembro, para grande decepção dos apoiantes de Javier Milei, este índice caiu 0,3%, após dois meses de recuperação. Em termos anuais, a queda foi de 3,3%.
Uma lógica neocolonial e extrativista
Uma coisa é certa: o choque de Milei alterou a estrutura da economia argentina. Dois economistas, Martín Schorr e Lucía Ortega, analisaram os vencedores e os perdedores da política do Presidente em termos de percentagem do PIB. Segundo eles, um pequeno terço do PIB argentino seria beneficiado, incluindo o sector financeiro, a agricultura, a energia e as indústrias extrativas. Em contrapartida, a indústria transformadora, o comércio retalhista e, evidentemente, o setor público seriam prejudicados.
E isto tem lógica: os setores agroexportador, extrativo e financeiro acumulam divisas e são favorecidos pela liberalização do mercado de câmbio e pela estabilização dos preços. Além disso, são estes os setores que mais beneficiam da política de desregulamentação financeira e ambiental de Milei, que foi o modelo para a Argentina no início do século XX. Nessa altura, o país dependia essencialmente da exportação de cereais, carne e matérias-primas.
Em contrapartida, a indústria, a construção e o comércio, que dependem da procura interna e, portanto, em grande parte das transferências do Estado, são os alvos do Presidente. O diário Pagina 12, próximo do kirchnerismo, sublinha que as relações entre o Governo e os industriais são muito frias, tendo mesmo Milei abandonado a última conferência anual da União Industrial Argentina. O Presidente critica-os por pedirem demasiado ao Estado.
Tudo isto confirma que o movimento libertário representa um setor muito específico do capital internacional: aquele que tem mais interesse na destruição do Estado social e na desregulamentação. Sem surpresa, são os setores arcaicos do capitalismo: mineração, agricultura e banca, os setores que os libertários defendem a todo custo.
Para compreender esta lógica, convém recordar que Javier Milei, no âmbito da lei global que finalmente conseguiu fazer aprovar no Congresso, introduziu um programa chamado Rigi (Regime de Incentivos aos Grandes Investimentos), que reduz os impostos, os direitos aduaneiros e os limites de câmbio para os investimentos superiores a 200 milhões de dólares. Mas é também, e sobretudo, um regime que suspende regras ambientais e sociais. Por exemplo, a utilização da água deixará de ser prioritária para as comunidades locais e passará a ser prioritária para as empresas.
O regime de Milei pretende dar prioridade ao aumento dos lucros das grandes indústrias extrativas e dos seus acionistas, em detrimento do ambiente e dos direitos sociais. Todos conhecemos o projeto da mina de lítio na província de Jujuy, adjudicado à empresa francesa Eramet, mas Javier Milei está a pensar mais longe e quer desenvolver o gás de xisto, entre outros.
No entanto, o governo está tendo dificuldades em convencer os investidores. Dos 50 mil milhões de dólares esperados, apenas 7,5 mil milhões se concretizaram. Quanto ao resto, os investidores internacionais continuam cautelosos. Pedem o levantamento das últimas restrições aos controlos cambiais. Mas, para Javier Milei, há uma dificuldade real, porque as reservas em dólares do banco central continuam a ser baixas. Qualquer aumento da procura interna pode conduzir a uma queda do peso e a um recrudescimento da inflação. O que seria politicamente desastroso.
A questão é, portanto, saber se o investimento interno compensará este efeito, mantendo a taxa de câmbio do peso em relação ao dólar. Mas, seja como for, a lógica libertária é que a procura das famílias e as despesas públicas não poderão crescer mais depressa do que os setores exportadores. É uma lógica de compressão da procura interna ao serviço dos grandes investidores internacionais. Uma lógica sempre sujeita a condições externas frágeis, como o demonstrou a experiência dos anos 1990.
O desenvolvimento prometido por Javier Milei poderá, no futuro, apresentar números de crescimento lisonjeiros. A realidade, porém, será mais matizada e terá mais a ver com a violência do seu primeiro ano no poder: a desigualdade aumentará, o bem-estar deteriorar-se-á e a devastação ecológica não conhecerá limites. No fim de contas, a loucura Milei poderá acabar em suicídio.
[1] Jornalista do Mediapart especializado em macroeconomia, foi correspondente do La Tribune na Alemanha entre 2008 e 2011. Texto publicado originalmente no Mediapart. Traduzido por Luís Branco para o Esquerda.net




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