Autor: Eleutério F. S. Prado
Os eventuais leitores deste textinho podem não acreditar, mas aquele que aqui escreve recebeu uma mensagem do além – além daquilo que aprendeu estudando O capital. E ela começa afirmando algo bem conhecido: no período que se inicia nos anos 80 do século passado, ocorreu uma “implosão da estabilização do mundo do trabalho fordista”. Começa bem, portanto, mas logo se aventura por sendas desconhecidas. Sugere, nesse sentido, que esse processo afetou de modo crucial o desenvolvimento da sociedade moderna; agora, passadas quatro décadas de seu início, ou o capital está moribundo ou ele está morto.
Veja-se, então, em que consiste essa mensagem que foi inesperadamente recebida por ocasião da leitura de um escrito de Douglas Barros. Eis que ele menciona em seu escrito esse pererecar do capital:
“Se a lógica do capital se baseia na valorização do valor, ou isso que vivemos é uma crise permanente do capital ou já é uma nova lógica [ora, se esta existe e persiste, é preciso acrescentar, ela vai além da lógica do capital]. Sinceramente, entendo que carecemos de uma investigação radical desse processo sem ceder ao dogmatismo. Quem irá colocar esse problema de maneira interessante será Mackenzie Wark”.[1]
A mensagem é, pois, dialética: o capital, por ter já se desenvolvido o suficiente em seu percurso histórico, passou a se negar como tal, fazendo com que a economia capitalista entrasse em estagnação (o valor não mais se valoriza significativamente), ou que sofresse uma mutação fundamental; por meio dela, originou-se um novo modo de produção (o valor passa a ser produzido de outro modo). Ao invés de morrer por morte matada (como obra da classe proletária), ele morreu de morte morrida (por força de suas próprias contradições).
Para explicar bem o que aconteceu como o danado, a mensagem afirma que há uma luz reveladora e que ela se encontra nos escritos da autora citada, Mackenzie Wark. Como aquele que aqui escreve desconhecia até então essa iluminação, é de se suspeitar que ele estava preso em um sono dogmático: um marxismo que envelheceu porque ficou enroscado na trama do passado.
Logo, tornou-se necessário para esse curioso acordar com a finalidade de se atualizar por meio da leitura de tal texto iluminador. Pois, transfigurada num texto bem longo, essa luz vem para brilhar na compreensão da história recente do capitalismo em estado de estagnação ou, por conjectura, em processo de transformação para um outro modo de produção. Não restou, assim, alternativa senão procurar receber esse fulgor lendo o livro dessa autora que se intitula O capital está morto[2] e que dá um pontapé no traseiro do velho Marx.
Despois de recebido pelo correio amigo, ao folheá-lo apenas, logo ficou claro que o seu título poderia ser enganoso. Pois, pareceu imediatamente que essa autora transmarxista nele afirma que o capitalismo está morto – e não, precisamente, que o capital como tal está defunto. Bem, mas então o que é capital e capitalismo para ela que espalha supostamente os raios do conhecimento verdadeiro? E, ao pôr essas perguntas, uma sombra começou já a ocupar a mente desse indagador, que logo se preparou para a decepção.
Para começar, veja-se o que está escrito na contracapa: “neste novo livro radical e visionário, McKensie Wark argumenta que a informação deu poder a um novo tipo de classe dominante. Por meio do controle da informação, essa classe emergente domina não apenas o trabalho, como também o capital – da maneira que tradicionalmente o compreendemos”.
Ora, essa apresentação do livro não só aumentou a suspeita aventada, mas também indicou já que essa autora define o capitalismo pela relação de classe tal como ela se manifesta na produção de mercadorias: os donos dos meios de produção, que incorporam tecnologias, são capitalistas e os donos das forças de trabalho, que acionam vários tipos de “saber como fazer”, são os trabalhadores. Se em O capital as classes aparecem após um longo percurso expositivo, em O capital está morto elas aparecem em primeiro lugar.
As tecnologias como tais, para ela, consistem num meio de reunir, organizar e controlar a informação sobre o mundo natural e social com a finalidade de dominá-lo. “A tecnologia da informação” – diz – “é uma espécie de meta-tecnologia, projetada para observar, medir, registrar, controlar e prever o que coisas, pessoas e mesmo outras informações podem, querem ou devem fazer”. Sim, é verdade.
Eis como continua. Os meios computacionais agora disponíveis “tornaram as informações muito, muito baratas e muito, muito abundantes”. E isso trouxe, segundo explica, um paradoxo que se enuncia assim: se há agora um excesso de informação e de conhecimento instrumental “como manter ainda formas de desigualdade de classe, opressão, dominação e exploração”? Por meio de um cercamento certamente. Outrossim, é dessa maneira que responde à sua própria pergunta:
“Minha proposição neste livro é a de que resolver essa contradição exigiu um novo modo de produção. E ele não é mais capitalismo; é algo pior. A classe dominante governante de nosso tempo não mantém mais seu domínio por meio da propriedade dos meios de produção como fazem os capitalistas. Nem pela propriedade da terra, como fazem os latifundiários. A classe dominante do nosso tempo possui e controla as informações.”
Ora, a partir dessa simples citação é possível entrever o que Wark entende por capital e por capitalismo; ademais, é possível descobrir como ela conecta essas duas noções. É bem notório que identifica capital com os meios de produção produzidos – instalações e máquinas grosso modo – os quais são mantidos sob a forma de propriedade privada; parece claro também que admite que capitalismo é a sociedade em que dominam os proprietários desses meios de produção. Ou seja, segundo ela, tais meios de produção privatizados são capitais e os donos de tais capital são capitalistas. Curiosamente, os meios informacionais não figuram como capital nessa compreensão, mas como algo que o transcende.
É evidente, também, que Wark considera que esse modo de produção, baseado na propriedade de “máquinas burras” está sendo superado por outro que está baseado na propriedade dos sistemas de informação, que são supostamente “máquinas inteligentes”. Por isso, em sequência dessa observação, chama a classe dominante supostamente emergente, que tem a propriedade dos vetores (ou sistemas) de informação, de “classe vetorialista”, conceituando, ao mesmo tempo, a classe dominada, que produz as informações, como “classe hacker”. Veja-se o que diz expressamente: “por classe hacker entendo” – ilumina – “todos aqueles que produzem novas informações a partir das informações antigas, e não apenas pessoas que as codificam para viver”.
Note-se agora que ela se afasta de Marx porque esse autor pensa o capital como a relação social indireta que estrutura o capitalismo. Ou seja, o capital vem a ser uma forma de sociabilidade que se realiza por meio de um movimento perene de metamorfoses, apresentando-se por meio de formas reificadas, ou seja, como dinheiro, meios de produção, força de trabalho, processo de produção e novas mercadorias. Capital é, pois, uma relação social de produção em processo que se apresenta como “valor que se valoriza” e que dispõe no tempo como um mau infinito.
Nessa perspectiva, confundir tais formas com os seus suportes materiais, ou seja, no presente caso, a forma de capital como os meios de produção como tais, é cair no fetichismo inerente à economia mercantil, tal como ele está descrito na seção IV do primeiro capítulo de O capital. E é esse erro basal que permite a McKensie Wark, mas também outros autores como Yanis Varoufakis[3], pensar que já está ocorrendo a emergência de um novo modo de produção. Eles confundem uma mudança na força produtiva com uma transformação do modo de produção.
Nessa perspectiva, é preciso ver que os meios de produção referidos por Wark passaram pela forma mercadoria antes de serem instalados em unidades de produção de novas mercadorias. Ademais, enquanto tais eles incorporam tecnologia que se encontra disponível como mero conhecimento instrumental, ou seja, como parte do intelecto geral. O valor dos meios de produção, portanto, inclui também o valor do conhecimento que nele está incorporado. Mas isso só ocorre quando esse conhecimento foi produzido como mercadoria e se encontra nessa mesma forma para ser adquirido por outrem. Ou seja, quando não está disponível livremente, ou seja, como saber teórico no sentido tradicional.
Ora, se peças de conhecimento e informação se tornam propriedade intelectual, ganham uma forma de mercadoria que Marx considerou sui generis, ou seja, de capital como mercadoria. Nesse caso, ela costuma ser alugada ao invés de ser vendida como um todo. A propriedade dessa mercadoria é mantida por seu dono, que apenas vende o seu valor de uso sob restrições e por períodos determinados. Aqueles que tomam emprestado esse tipo de mercadoria pagam aluguel por seu uso nas condições determinadas. A propriedade desse tipo de mercadoria, ademais, pode sim ser fonte de poder monopolista; e este, por sua vez, permite que o proprietário obtenha ganhos extras de alguma forma.
Note-se, em adição, que essa forma de capital, ou seja, a propriedade intelectual, mantém uma similaridade com a forma dinheiro do capital. Pois, o caráter precípuo do dinheiro como capital é que ele apenas pode ser alugado seja para os produtores de mercadorias (capital portador de juros) seja para aqueles que querem deter direitos de rendas ou consumir mercadorias (capital fictício) para além de suas posses imediatas. De qualquer modo, o capital como mercadoria se acumula fora da produção na forma de direitos de saque sobre a riqueza correntemente produzida.
Sendo assim, a detenção concentrada de sistemas de informação e de comunicação como propriedade privada, algo que se vê na sociedade contemporânea, não pode ser pensada como a emergência de um novo modo de produção, mas consiste apenas num desenvolvimento do capitalismo para além do capitalismo da grande indústria, tal como foi caracterizado por Marx no primeiro livro de O capital.
Como muitos tem discutido há bastante tempo, as tecnologias da informação e da comunicação vem transformando o modo de produzir mercadorias no interior do modo de produção baseado na relação de capital. Marx mostrou em O capital que era preciso distinguir a fase da manufatura, modo de produzir baseado na subsunção formal do trabalho ao capital, da fase da grande industrial, modo de produzir baseado na subsunção formal e real do trabalho ao capital. Ruy Fausto, diante das mudanças evidentes do modo de produzir no capitalismo contemporâneo, sugeriu já que era preciso fazer uma nova distinção: a subsunção real fora largamente material na grande indústria, mas se tornara também intelectual na pós-grande indústria, ou seja, na indústria dominada pelas tecnologias da informação e da comunicação.
Veja-se como, num livro publicado em 2005, foi apresentada de modo bem sintético essa transformação interna do modo de produção capitalista:
Sustenta-se aqui que o capitalismo está saindo da etapa de grande indústria para passar para a fase da pós-grande indústria e que a matéria privilegiada da relação de capital – este, lembrando, só existe por meio de suas formas – está se modificando. Se antes a matéria por excelência do capital era o sistema de máquinas, agora vem a ser o que Marx denominava de inteligência coletiva (intelecto geral) – ou seja, uma força produtiva social inerentemente desterritorializada que pode estar, em princípio, em todos os lugares ao mesmo tempo. Se antes o capital produtivo aparecia, sobretudo, como ativo físico (máquina, fábrica etc.), agora ele se configura de modo especial como ativo intangível (informação, conhecimento etc.). São diversas as consequências dessa transformação do modo de produção: dentre essas, cumpre destacar aqui que o capitalismo se vê, finalmente, como capitalismo. Em particular, ela põe a descoberto o capital como sugador da força de trabalho social, ficando assim comprovada no nível da aparência, ao se considerar o mundo como um todo, as teses da exploração impiedosa e do pauperismo de Marx.[4]
Para terminar, talvez seja de bom tom agradecer ao Douglas Barros pela indicação de leitura, não sem alertá-lo de que a sua mensagem do além difunde uma tese espetaculosa que se afigura bem falsa. De qualquer modo, em retribuição a sua dádiva é de bom alvitre sugerir que leia os textos de Ruy Fausto, onde poderá encontrar elementos rigorosos para compreender o capitalismo contemporâneo.
[1] Ver Barros, Douglas – Para uma teoria do “corre”: vagas arrombadas e vida precária. Blogue Boitempo, 7/12/2024;
[2] Wark, McKenzie – O capital está morto. São Paulo: Funilaria, 2022.
[3] Varoufakis, Yanis – Technofeudalism – What killed capitalism. Londres: The Bodley Head, 2023. Ao invés de chama a nova classe dominante de vetorialista, esse autor a chama de nuvenlista.
[4] Ver Prado, Eleuterio – Pós-grande indústria e neoliberalismo. In: Desmedida do valor – Crítica da pós-grande indústria. São Paulo: Xamã, 2005.

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