Efeitos das transferências fiscais para os capitalistas

[1] Autor: Prabhat Patnaik [2] – Blog Ideas – 25 de novembro de 2024

É comum, atualmente, que os governos forneçam transferências fiscais aos capitalistas, seja por meio de redução das taxas de impostos corporativos ou fornecendo subsídios diretos; com essas medidas, eles visam incentivar um maior investimento por parte dos capitalistas, estimulando, assim, a economia.

Durante a primeira presidência de Donald Trump, houve um corte na alíquota do imposto corporativo com esse objetivo. Na Índia, o governo Modi, como é bem sabido, deu enormes concessões fiscais com o mesmo objetivo. Mesmo um conhecimento mínimo de economia, no entanto, mostra que tais transferências para capitalistas são contraproducentes em um regime neoliberal.

Isso ocorre porque tal regime é caracterizado pela regra da  “responsabilidade fiscal” que fixa o limite superior do déficit fiscal como porcentagem do produto interno bruto; supõe-se, portanto, que normalmente o governo opera nesse teto. As transferências para os capitalistas, portanto, devem ser acompanhadas por reduções nos gastos em outros componentes da demanda agregada, normalmente nos gastos com bem-estar realizados para os trabalhadores pobres, ou por um aumento equivalente na receita tributária obtida dos rendimentos dos trabalhadores pobres.

Agora, o efeito de entregar, digamos, $ 100 aos capitalistas, reduzindo as transferências para os trabalhadores em $ 100, é reduzir o nível de demanda agregada e, portanto, o emprego e a produção. Longe de produzir mais crescimento econômico, tais transferências para os capitalistas têm o efeito imediato de reduzi-lo.  A maneira como isso acontece é a seguinte.

O investimento realizado em qualquer período é o resultado de ordens de investimento dadas anteriormente e, portanto, de decisões de investimento tomadas no passado. Isso ocorre porque os projetos de investimento têm longos períodos de gestação, o que se aplica tanto aos investimentos privados como aos investimentos públicos. Se o ritmo do investimento se acelerar isso significa que será tomada uma decisão nesse sentido no período atual e o ritmo efetivo só se concretizará posteriormente.

Portanto, o investimento em qualquer período deve ser considerado como dado, ou seja, como uma determinada magnitude que não muda imediatamente. O que muda durante o período em questão é o nível de consumo. Note-se então o seguinte: como os trabalhadores consomem uma parcela maior de suas rendas do que os capitalistas, qualquer transferência de poder de compra dos trabalhadores para os capitalistas tem o efeito de reduzir o consumo. Note-se, em adição, que o mesmo acontece se o governo reduzir seu consumo para fazer transferências para os capitalistas.

Além disso, as transferências dos trabalhadores para os capitalistas (e até mesmo do governo para os capitalistas) têm o efeito de reduzir as exportações líquidas (isto é, o excesso das exportações sobre as importações), uma vez que o consumo dos capitalistas é mais intensivo em importações. Mas vamos deliberadamente subestimar nosso argumento, assumindo que as transferências para os capitalistas, que são financiadas às custas dos trabalhadores, não alteram as exportações líquidas. Uma vez que a renda nacional bruta, Y, de um país deve ser igual à soma do consumo C, do investimento I, do gasto público G e do superávit na conta corrente de seu balanço de pagamentos (X-M), ou seja,

Y = C + I + G + (X-M)                  (i)

Tem-se que as transferências para os capitalistas, ao diminuir C, diminuem o lado direito, que representa o nível de demanda agregada. A igualdade na equação acima, portanto, só pode ser restaurada por meio de uma queda em Y, isto é, por meio de uma redução na produção e no emprego.

Quando isso acontece, o grau de capacidade não utilizada na economia aumenta. Ora, isso tem o efeito de abater as decisões de investimento dos capitalistas tomadas no período atual e, portanto, seu investimento real no período subsequente. A economia, portanto, longe de ser estimulada, tende na verdade a se contrair no curto prazo.

Mas a história não termina aí. Qualquer contração em si mesma, isto é, se outras coisas permanecerem as mesmas, tem o efeito imediato de reduzir os lucros. Ora, as transferências para os capitalistas como tais têm o efeito de aumentar os lucros; contudo, pelo fato de que tais transferências são obtidas pela redução do poder de compra dos trabalhadores, obtém-se o efeito oposto que consiste numa redução dos lucros.

Sob suposições bastante realistas, esses dois efeitos se anulam entre si, de modo que os lucros totais dos capitalistas permanecem exatamente os mesmos que teriam obtido sem as transferências. A suposição sob a qual esse resultado se mantém admite que os trabalhadores consomem toda a sua renda.

Esta é uma suposição bastante realista porque a proporção da riqueza total da economia que pertence ao segmento inferior da população é bastante minúscula. Na Índia, por exemplo, os 50% mais pobres possuem apenas 2% da riqueza total do país. Uma vez que toda riqueza necessariamente surge da poupança, isso apenas mostra que eles quase não economizam nada. Daí a suposição feita de que os trabalhadores não poupam e que toda a poupança na economia vem dos ricos, além do governo, é bastante realista.

Suponhamos, apenas por um momento, que os ricos, neste caso os capitalistas, economizem toda a sua renda, ou seja, que a poupança privada é igual aos lucros. Uma vez que, em qualquer economia, a poupança interna total deve ser igual ao investimento interno total menos a entrada de poupança externa, e uma vez que o investimento governamental menos a poupança governamental é o que se chama de déficit fiscal, isso equivale a dizer que a poupança privada e, portanto, os lucros, na economia, devem necessariamente ser iguais ao investimento privado mais o déficit fiscal menos a poupança externa F que entra na economia durante o período; Isto é

Lucros = Investimento Privado + Déficit Fiscal – F                         (ii)

Uma vez que argumentamos que o investimento privado e o influxo de poupança externa (que é apenas o negativo de X-M acima) permanecerão inalterados durante o período, assim como o déficit fiscal por causa da legislação de “responsabilidade fiscal”, os lucros devem permanecer os mesmos, apesar das transferências para os capitalistas.

Abandonar a suposição de que todos os lucros são poupados não faz diferença para o argumento acima. Se apenas uma proporção α dos lucros é economizada, então a equação (ii) simplesmente se torna:

α. Lucros = Investimento Privado + Déficit Fiscal – F                   (iii)

Se o lado direito de (iii) permanece inalterado, por razões que acabamos de discutir, então os lucros também devem permanecer inalterados, mesmo que “α” não seja igual a um. As transferências orçamentárias para os capitalistas, em suma, em um regime neoliberal onde o déficit fiscal não pode ser aumentado para financiar tais transferências e onde, portanto, a renda dos trabalhadores deve ser reduzida correspondentemente, têm o efeito não apenas de precipitar uma contração na produção e no emprego, sem nem mesmo aumentar a magnitude da renda dos capitalistas, supondo que os trabalhadores consumem toda a sua renda.

As transferências orçamentárias para os capitalistas, em outras palavras, fazem com que a desigualdade aumente na economia em questão. Isso ocorre sem nem mesmo aumentar a renda dos capitalistas, porque causam uma contração da produção que nega os efeitos de aumento do lucro que vêm dessas transferências.

Têm, no entanto, um outro efeito importante que é a verdadeira razão pela qual o governo recorre a eles, que é mudar a distribuição dos lucros entre os capitalistas em favor do estrato monopolista e em detrimento dos capitalistas não monopolistas, mas também não financeirizados. Isso ocorre pelo seguinte motivo.

Vimos que os lucros totais permanecem inalterados apesar das transferências orçamentárias para os capitalistas porque, embora as transferências sejam um acréscimo aos lucros, o fato de estarem associadas à retirada de renda dos trabalhadores e à redução da demanda agregada reduz os lucros exatamente na mesma medida.

Contudo, embora isso seja verdade no agregado, os capitalistas que enfrentam demanda reduzida e os capitalistas para os quais a maior parte das transferências se acumula não são os mesmos. Em particular, os grandes capitalistas não são muito afetados pela redução da demanda de consumo dos trabalhadores. Pois, eles recebem a maior parte das transferências orçamentárias. Eles são, portanto, ganhadores líquidos, enquanto os capitalistas menores, cuja presença é mais pronunciada no mercado de bens de consumo dos trabalhadores, tornam-se perdedores líquidos, mesmo quando os lucros totais permanecem inalterados no nível agregado.

As transferências orçamentárias para os capitalistas são, portanto, um meio de produzir o que Marx chamou de “centralização do capital”, ou seja, de acelerar a substituição de capitais menores (ou mesmo pequenos produtores que produzem bens para consumo dos trabalhadores) por grandes capitais. Isso é o que os “capitalistas de compadrio” desejam e o governo faz.

Tais transferências são realizadas em nome do estímulo à economia, mas não têm esse efeito anunciado; pelo contrário, elas só conseguem contrair a economia. Ademais, nessa economia em contração, eles fortalecem a posição dos capitalistas monopolistas e, assim, das finanças a eles associadas.

Veja-se o caso da Índia. Há algum reconhecimento na mídia e entre os partidos da oposição de que os pequenos produtores do país foram prejudicados pela desmonetização e pela introdução do imposto sobre bens e serviços.  No entanto, há menos reconhecimento do dano causado a eles pelas concessões fiscais e outras formas de transferências orçamentárias feitas aos capitalistas.


[1] Este artigo foi publicado originalmente no Peoples Democracy, em 24 de novembro de 2024.

[2] Prabhat Patnaik é um economista marxista e comentarista político indiano. Lecionou no Centro de Estudos de Economia e Planejamento da Escola de Ciências Sociais da Universidade Jawaharlal Nehru.