As formas históricas da socialização do capital nos EUA

Resenha do livro The Fall and Rise of American Finance: from J.P Morgan to Blackrock de Scott Aquanno and Stephen Maher, Verso, New York, 2024, a qual foi  publicada em Marx and Philosophy Review of Books, em 15/08/2024.

Autor: Davide Ventrone [1]

Não faltam livros marxistas sobre o tema “finanças”, abrangendo uma variedade de tópicos e opiniões. Autores como Costas Lapavitsas, Cedric Durand e Ben Fine mostraram as relações de dinheiro, crédito, capital portador de juros e a financeirização em nossas vidas cotidianas. No entanto, poucos autores nos últimos anos discutiram as finanças principalmente para compreender as formas da governança corporativa. Nessa governança, característica das corporações modernas, aqueles que controlam a empresa não são os seus donos legais. E ela se dá sob várias configurações. Há, pois, diferentes regimes de governança corporativa unindo os investidores externos e os gerentes internos.

São exemplos desse tipo de estudo os livros recentes de Brett Christophers, tal como o recente Our Lives in Their Portfolios: Why Asset Managers Own the World, que se baseia no trabalho inovador do estudioso crítico de finanças Benjamin Braun. O livro recente desse autor trouxe à tona o problema de entender a governança corporativa moderna, que se dá agora por meio das grandes empresas gestoras de ativos.

Embora os seus livros tenham se tornado altamente influentes, é preciso ver que se baseiam numa compreensão específica do capitalismo contemporâneo. Eis que ele pensa as finanças como formas de governança orientada pelo rentismo. Ele estabelece assim um contraste entre o “capitalismo rentista” contemporâneo, em que todos os meios são transformados em ativos rentáveis e o capitalismo industrial das décadas passadas, que era baseado estritamente no lucro industrial. 

Maher e Aquanno, os autores do livro aqui resenhado, tal como aqueles citados, investigam também o papel das empresas gestoras de ativos no capitalismo contemporâneo; eles o fazem, no entanto, de um ângulo completamente diferente em relação àquele antes mencionado. Os autores fornecem uma visão renovada do marxismo nessa área de estudo, já que defendem a centralidade das finanças no próprio processo de acumulação de capital industrial. Com base nos argumentos clássicos de Rudolf Hilferding, certos autores contemporâneos tais como G.F. Davis, [François Chesnais], Claude Serfati e Costas Lapavitsas focam especialmente a relação entre os financistas (donos do capital monetário) e as corporações (lócus do capital industrial), mostrando que a fronteira entre essas esferas tem se tornado cada vez mais tênue.

Embora o foco dos autores seja a governança corporativa, a narrativa que desenvolvem entrelaça-se com vários outros argumentos, os quais, entretanto, são articulados unificadamente. Primeiro, eles argumentam que certas práticas do setor financeiro, ainda que não sejam novas, são centrais para a circulação de capital em geral e, portanto, para a reprodução social do sistema como um todo. Em segundo lugar, mostram que o capital monetário e o capital industrial estão sempre articulados na produção de mercadorias. Contudo, para eles, ao invés das finanças contribuírem para o processo de monopolização, elas favorecem as pressões concorrenciais.

Com base na visão de “competição real” delineada por Anwar Shaikh e outros como James Clifton, eles argumentam que a mobilidade do capital, ou seja, a capacidade dos capitalistas de circular dinheiro de maneira fácil e rápida pela economia para diferentes investimentos, intensifica as pressões competitivas. Assim, o desenvolvimento intensivo e extensivo do sistema financeiro global aumentou as forças competitivas que atuam sobre as empresas em geral.   

Como o título do livro sugere, os autores esboçam uma exploração histórica e teórica abrangente da trajetória do capital financeiro dentro do capitalismo americano. Eles cobrem quatro períodos, o capital financeiro “clássico” (1880-1929), o período gerencial (1930-1979), o período neoliberal (1979-2008) e o período do novo capital financeiro (2008 em diante).

O capital financeiro, tal como foi originalmente pensado por Rudolf Hilferding, não se refere ao capital-dinheiro detido pelos capitalistas monetários. O capital financeiro refere-se à fusão organizacional do capital industrial e do capital monetário, na qual “as instituições financeiras [vêm] desempenhar um papel ativo e direto na gestão das corporações industriais”. Esse conceito ficou completamente perdido na literatura marxista, já que muitos simplesmente tomaram-no como sinônimo de capital-dinheiro de empréstimo. Para esses dois autores, entretanto, o termo capital financeiro se refere ao regime particular de governança corporativa.

O capital financeiro original foi obstado após a Grande Depressão. Eis que o poder dos bancos sobre a indústria, observado no final do século XIX e no começo do século XX, foi bloqueado. Somente após 2008, com o aumento do poder e da influência das empresas gestoras de ativos, uma nova forma de capital financeiro integrativo ressurge em escala e intensidade nunca dantes vistas. O texto de Maher e Aquanno entrelaça vários argumentos sobre a natureza das finanças capitalistas dentro de uma visão histórica em que são demarcados de diferentes períodos de governança corporativa. Assim, o “desaparecimento” do capital financeiro, assim como o seu “ressurgimento” ficam bem explicados.

O livro começa com a era em que imperava JP Morgan, no período do capital financeiro clássico (1880-1929). Baseando-se na teorização de Marx sobre o setor bancário no Livro III de O Capital, os autores argumentam que os bancos exerciam controle sobre a indústria porque eles concentravam a propriedade das ações, já que era papel dos bancos gerenciar o capital-dinheiro. Do ponto de vista dessa tradição, os bancos atuavam como “gerentes gerais do capital-dinheiro” e, assim, facilitavam a “socialização” (como referida por Maher e Aquanno) do capital privado. Eis que tinham capacidades de agregar o capital privado dos indivíduos para formar um capital socializado que passava a assumir uma posição dominante na economia.

Os autores incorporam também uma teoria do dinheiro de crédito em sua análise. A função dos bancos não consiste apenas em centralizar o movimento do dinheiro. Eles não funcionam apenas como “intermediários”, mas criam também dinheiro por meio da capacidade que detêm de criação de crédito.  Para Maher e Aquanno, os bancos ganharam controle significativo sobre as redes da indústria em virtude de seu papel como credores comerciais e investidores institucionais.

Os bancos davam crédito para as empresas com a finalidade de facilitar as fusões e as aquisições. Ao mediarem a emissão de ações das empresas, eles retinham quantias significativas, tornando-se acionistas importantes em todos os setores. Crucialmente, a capacidade de alavancar o poder do capital social deu ao coletivo de capitalistas conectados por meio de sociedades anônimas mais capacidade de acumular riqueza do que qualquer capitalista individual com capital privado jamais poderia alcançar. Portanto, o acesso ao crédito (ou seja, o pool de capital social) foi o principal meio pelo qual os bancos ganharam o controle acionário da economia industrial.

À medida que os circuitos entre a indústria e as finanças se fundiam cada vez mais, os seus interesses não podiam mais ser vistos como separados. O capital financeiro nasceu, com banqueiros e industriais compartilhando um interesse comum na acumulação industrial de capital. A posição dos bancos como os maiores acionistas deu-lhes poder sobre as corporações, permitindo-lhes adquirir assentos nos conselhos de administração. Por exemplo, o JP Morgan tinha 72 assentos nos conselhos das 112 maiores corporações dos EUA. O seu império bancário era tão proeminente que um contemporâneo chegou a dizer: “se Morgan não achasse que deveria ajudar uma corporação a levantar dinheiro, o dinheiro não seria levantado”.

Os lucros maciços e a relativa paz entre capital e trabalho nesse período são frequentemente vistos como resultado da centralização da indústria com base nas práticas financeiras. Ocorre que ele não pode durar. A grande depressão e o subsequente desmembramento dos bancos comerciais e de investimento puseram fim ao capital financeiro clássico. O que se seguiu foi o empoderamento dos gerentes internos dentro das próprias corporações durante o período gerencial (1930-1979). O argumento de Maher e Aquanno sobre as finanças durante esse período é bem renovador. Nessa época, os financiadores externos se tornaram menos influentes, pois os próprios gerentes internalizaram as práticas financeiras para lidar com as mudanças nas relações de produção e circulação.

A forma corporativa de capital exigiu o desenvolvimento de novas competências internas. As empresas que se concentravam em apenas uma linha de negócios, dividiram-se já funcionalmente para realizar operações especializadas (por exemplo, jurídica, contábil, vendas, engenharia de marketing etc.). Contudo, as empresas estavam se tornando também, cada vez mais, multidivisionais, ou seja, passaram a produzir diversas linhas de produtos. Assim, em algumas empresas, como a General Electric, passaram a existir várias divisões de negócios funcionais em suas várias linhas de produtos. À medida que as empresas lidavam cada vez mais com estruturas de negócios multidivisionais, houve uma descentralização e autonomia para os gerentes de divisão.

A descentralização operacional ocorreu com a centralização do controle das decisões de investimento. Os altos executivos tornaram-se gerentes gerais, ou melhor, gerentes gerais financeiros, pois manipulavam agora enormes pools de capital-dinheiro. O seu trabalho consistia em selecionar o processo de valorização concreto que eles acreditam que traria o maior retorno sobre o investimento. Assim, para organizar ainda mais os diferentes processos de produção concretos, eles precisavam se tornar financistas, ou seja, gerentes gerais do capital-dinheiro.  A empresa tornou-se internamente financeirizada em face da necessidade da produção capitalista – a favor dela, não contra ela.

Além disso, com o enfraquecimento dos bancos como resultado das regulamentações do New Deal, as empresas tiveram de aumentar internamente as suas capacidades de envolvimento na esfera da circulação dos capitais. Ou seja, eles precisavam desenvolver capacidades internas para emprestar, emprestar, investir e trocar títulos diretamente em vários mercados. Os diretores financeiros tornaram-se uma função corporativa muito importante.

Além disso, muitas empresas não precisavam mais de financiamento externo dos bancos, pois os lucros retidos se tornaram a principal fonte de financiamento do seu investimento. Como resultado, as empresas durante o período tornaram-se credores líquidos nos mercados de capitais. Em suma, os autores mostram o desenvolvimento de características financeiras dentro da empresa muito antes da ascensão do neoliberalismo.

Após as crises do pós-guerra e seu fim com o choque de juros de Paul Volker, veio o período neoliberal (1979-2008). A hegemonia desse regime específico de acumulação de capital decaiu por causa de seu próprio sucesso, à medida que as enormes massas de capital monetário formados a partir das pensões dos trabalhadores começaram a exercer pressão sobre o sistema gerencial. À medida que os investidores institucionais se tornaram grandes compradores de ações corporativas, ocorreu uma reconcentração e a centralização do patrimônio.

Como os autores destacam, os fundos de pensão se tornaram os maiores detentores de ações corporativas em meados da década de 1970. Essa forma poliárquica de finanças viu o surgimento da “ideologia do acionista”, a internacionalização da produção e uma nova disciplina do trabalho. Desenvolveu-se a crença de que a “maximização do valor das ações” era a melhor maneira de melhorar o bem-estar social. E ela não apenas se tornou uma ideologia capitalista estável, mas continua a ser até hoje uma forte força por trás da tomada de decisões políticas e econômicas.

Uma nova era de financeirização surgiu quando as relações monetárias começaram a dominar a vida cotidiana das famílias consumidoras e quando os acionistas recuperaram o poder nas relações corporativas. No entanto, Maher e Aquanno argumentam que, em contraste com a época de Hilferding, essa era trouxe uma “forma poliárquica de hegemonia financeira”, já que agora um amplo conjunto de instituições exerce influência na direção das corporações. Contudo, a coisa mudou novamente com a crise financeira de 2008. Eis que a hegemonia financeira foi mantida, mas ganhou uma nova forma no capitalismo do século XXI.  

Diante do risco sistêmico, o Estado passou a defender o setor financeiro protegendo os ativos que haviam se tornado ilíquidos durante a crise. Agora, o Federal Reserve, por meio de sua política de flexibilização quantitativa, passou a garantir a liquidez do sistema. O resultado dessa ação foi a inflação dos preços dos ativos acionários e em títulos, o que produziu um ambiente em que os gestores de ativos passaram a prosperar. O conjunto de práticas políticas inicialmente destinadas a resolver as crises tornou-se um elemento permanente na atuação dos bancos centrais. Consolidou-se, assim, um Estado que se guia no campo econômico por meio de uma aversão ao risco.

Isso deu origem à era do novo capital financeiro (2008 em diante), a qual ficou marcada pelo domínio das empresas gestoras de ativos tais com as “três grandes”, também designadas pela sigla “B3” (big three): BlackRock, Vanguard e State Street.

Maher e Aquanno baseiam-se no trabalho pioneiro de Benjamin Braun sobre o capitalismo de gestão de ativos. Como destacou Braun, as B3 alteram a escolha típica dos investidores entre uma diversificação de suas carteiras ou a concentração em um único ativo. Em vez disso, as carteiras das empresas gestoras de ativos são concentradas, grandes e diversificadas, ou seja, elas se constituem como proprietários universais da economia. Por exemplo, as B3 são coletivamente a maior ou segunda maior detentora de ações em quase 90% da capitalização de mercado total de toda a economia dos EUA. Ou seja, eles são avaliados em cerca de 45 trilhões de dólares, aproximadamente o dobro do PIB dos EUA.

Embora os autores admitam sua dívida com Braun, eles também o criticam. Braun argumenta que as B3 têm um interesse “baixo” nos “ativos sob administração” porque o seu modelo de lucro é baseado na competição por capital e na cobrança de taxas de administração. Uma vez que as taxas são o seu foco, têm pouco interesse em intervir de forma ativa no governo das sociedades anônimas.

Maher e Aquanno, por outro lado, mostram que essa propriedade universal vem a ser a base de um novo capital financeiro. Tal como acontecia com o capital financeiro clássico, eles veem a centralização e a concentração de capital pelas B3 como expressão do fato de que elas se tornaram os “gerentes gerais do capital-dinheiro”. Como as B3 são agora proprietárias permanentes da economia em geral, relações mais permanentes se desenvolveram entre elas e as corporações.  Assim, a socialização contemporânea do capital serve como “base para uma nova fusão de capital financeiro e industrial”, que atingiu uma escala nunca vista dantes.

Essa nova relação de controle direto e de envolvimento das empresas assume uma forma mais disfarçada do que no período financeiro clássico. Contudo, Maher e Aquanno, baseando-se nos argumentos de outros autores como Fichtner, Eelke M. Heemskerk e Javier Garcia-Bernardo, argumentam que as B3 não são proprietárias passivas, pois elas se envolvem com as estratégias de votação coordenadas e centralizadas de tal forma que exercem um “poder oculto” substancial.

 As divisões administrativas das B3 centralizam a supervisão das empresas industriais, no que, segundo eles, está incluído “coordenar as estratégias de votação nas assembleias de acionistas”, bem como “colaborar com as empresas da carteira para implementar reformas de governança, influenciar a composição do conselho, aprovar a remuneração dos executivos e supervisionar a estratégia”. O poder do voto contrariante é usado como último recurso, quando todas as outras estratégias de coordenação “nos bastidores” não funcionam.

Ao todo, o livro fornece uma ótima introdução aos problemas de compreensão das finanças no campo da crítica da economia política. Funciona como uma introdução não apenas à relação entre finanças e produção, mas também aos debates em torno da governança corporativa e da questão de quem controla a corporação. Finalmente, acrescenta aos debates em andamento dentro e fora dos círculos marxistas sobre a relação entre finanças e indústria, contrastando com as visões de autores como Brett Christophers.  Em suma, os interessados em uma visão nova que mantém uma lente marxista certamente aprenderão muito com este livro.


[1] Pesquisador de economia política que mora em Tiohtià:ke/Montréal, Canadá.