Fim da hegemonia alemã na União Europeia?

Michael Roberts – The next recession blog – 01/09/2024

Ocorreram recentemente eleições em dois grandes estados provinciais no leste da Alemanha.  Os partidos eurocéticos, anti-imigrantista e amigos da Rússia, tanto da extrema direita quanto da nova esquerda, ficaram à frente.  Os partidos da atual coligação federal dos sociais-democratas, dos verdes e dos chamados democratas livres estão sendo dizimados nestes estados da antiga Alemanha Oriental. 

Os três estados do leste juntos abrigam cerca de 8,5 milhões de pessoas, representando 10% da população da Alemanha. Mas não é apenas nesses estados que o “centro” da política alemã está entrando em colapso.  Os três partidos do governo de coalizão do chanceler Scholz viram sua participação conjunta nos votos cair de mais de 50% no final de 2021 para menos de um terço hoje.

Nestas eleições, o partido islamofóbico de direita Alternativa para a Alemanha (AfD) obteve mais de 30% de participação na Turíngia e na Saxônia; ademais, ganhou já o poder na primeira dessas duas regiões.  Bjorn Höcke, que já foi condenado duas vezes por usar slogans nazistas proibidos, é o líder da AfD na Turíngia. Mas também um novo partido de esquerda, que tem o nome de sua fundadora, Sahra Wagenknecht Alliance (BSW), obteve mais de 10% dos votos.

A Alemanha está lidando com um aumento na imigração, já que o número de pedidos de asilo chegou a 334.000 em 2023. Uma pesquisa recente descobriu que 56% dos alemães temem que possam ficar sobrecarregados com os custos da imigração.  Portanto, parece que a imigração e o racismo são os fatores impulsionadores da ascensão da extrema direita AfD.  Mas a ironia é que o voto da estrema direita melhorou principalmente em áreas do leste da Alemanha onde a imigração era relativamente baixa – é o medo, e não a realidade, que impulsiona esse preconceito e reação. 

Afinal, os alemães estão acostumados com os imigrantes. A Alemanha é o segundo destino de migração mais popular do mundo, depois dos EUA. Mais de um em cada cinco alemães tem pelo menos raízes parciais fora do país, ou cerca de 18,6 milhões.  Mas a questão da imigração tornou-se um grande problema na Alemanha por causa do desastre no Oriente Médio e na Ucrânia; por causa das guerras nessas regiões ocorreu um fluxo maciço e rápido de refugiados, que chegou a cerca de 2 milhões nos últimos dois anos para a Alemanha.  A maioria desses refugiados foi colocada nas partes mais pobres da Alemanha Oriental, as quais já estão sob a pressão de moradias, educação e serviços sociais mais precários.

A outra ironia é que uma das principais líderes do partido de extrema direita na Alemanha não é pobre mesmo sendo populista; ao contrário, Alice Weidel foi economista do Goldman Sachs e, nessa condição, tornou-se uma consultora financeira muito bem-sucedida; ela atuou como sombra do líder “populista” reformista do Reino Unido, Nigel Farage, que é também corretor de bolsa. Esses representantes do capital não têm conexão com seus eleitores de base, mas tentam chegar ao poder explorando o preconceito, a mentira e a falsidade. 

O fenômeno dos partidos nacionalistas de direita “populistas” não se limita à Alemanha.  Na França, há a União Nacional, no Reino Unido, o Partido da Reforma e na Itália temos os Irmãos da Itália realmente no poder.  De fato, em quase todos os estados da União Europeia (EU), há partidos reacionários que conseguem obter cerca de 10-15% dos votos, tal como se confirmou nas recentes eleições para a assembleia do bloco.

Tudo isso – julgo – é produto da Longa Depressão nas principais economias capitalistas desde o fim da Grande Recessão de 2008-9, que atingiu os mais pobres e menos organizados da classe trabalhadora, juntamente com pequenas empresas e autônomos.  Eles se voltaram para o “nacionalismo” em busca de uma resposta, pensando que as causas de seus problemas são os imigrantes, as doações para outros países da União Europeia e as grandes empresas – nessa ordem.

A situação se deteriorou mais na Alemanha por causa dos efeitos posteriores da crise pandêmica e da guerra na Ucrânia.  A grande potência manufatureira da Europa, a Alemanha, está parada desde a pandemia.  E os votos para os partidos tradicionais caiaram com a estagnação econômica.

O desaparecimento da economia alemã expôs a questão subjacente de um mercado de “trabalho duplo” com toda uma camada de trabalhadores temporários a tempo parcial para empresas alemãs com salários muito baixos. Cerca de um quarto da força de trabalho alemã agora recebe um salário de “baixa renda”, o qual está definido como um salário inferior a dois terços da mediana. Essa mão de obra barata, concentrada na parte oriental da Alemanha, está em concorrência direta com o grande número de refugiados que chegaram nos últimos dois anos.  Por isso, muitos eleitores da Alemanha Oriental admitem que o problema é a imigração.

Na verdade, o que está por trás dessa situação é a deterioração da economia alemã, particularmente no leste.  A Alemanha é o estado mais populoso da União Europeia; é ademais uma potência econômica já que responde por mais de 20% do PIB do bloco.  A manufatura ainda responde por 23% da economia alemã, em comparação com 12% nos EUA e 10% no Reino Unido. E a manufatura emprega 19% da força de trabalho alemã, em oposição a 10% nos EUA e 9% no Reino Unido.

Ora, a maior economia da Europa está agora em recessão. O PIB real no segundo trimestre de 2024 caiu 0,1% em comparação com o primeiro trimestre de 2024 e caiu no mesmo valor em comparação com o 2º trimestre de 2023. De fato, o PIB real alemão não mostrou crescimento por cinco trimestres consecutivos e realmente estagnou nos últimos quatro anos.

O governo alemão seguiu servilmente as políticas da aliança ocidental da OTAN e acabou com sua dependência de energia barata da Rússia – de fato, concordou até com a explosão do gasoduto Nordstream que era vital para a sua economia. Os custos de energia dispararam para as famílias alemãs. A conta média de eletricidade para uma família de 3 pessoas na Alemanha, que era de 50 euros por mês, agora é de 130 euros por mês. E isso se agrava devido ao fato de que os salários reais na Alemanha ainda estão abaixo dos níveis anteriores à pandemia da Covid-19, assim como em muitos países da UE.

Mas o mais importante para o capital alemão é o aumento dos custos de energia na indústria em geral.  A Câmara Alemã de Indústria e Comércio (DIHK) comenta:

“Os altos preços da energia também afetam as atividades de investimento das empresas e, portanto, sua capacidade de inovar. Mais de um terço das empresas industriais dizem que atualmente podem investir menos em processos operacionais essenciais devido aos altos preços da energia. Um quarto diz que está difícil se envolver na proteção do clima com menos recursos, e um quinto das empresas industriais tem que adiar investimentos em pesquisa e inovação. Além da realocação planejada da produção, isso representa outra ameaça aguda para a Alemanha como local industrial. Se as próprias empresas não investirem mais em seus processos principais, isso equivalerá a um desmantelamento gradual.”

No verão passado, o Fundo Monetário Internacional calculou que esses custos crescentes reduziriam o crescimento econômico potencial da Alemanha em até 1,25% ao ano. Indicou também que isso dependia da magnitude final do choque dos preços da energia e do grau em que o aumento da eficiência energética pudesse mitigá-lo. Como é sabido, nos últimos três anos, a atividade manufatureira entrou em colapso.

Como se sabe, a elevação da lucratividade do capital alemão desde o início do euro foi destruída; o processo de realocação da capacidade industrial para o leste da União Europeia acabou e, como isso, acabou também o benefício dos baixos salários para grande parte da força de trabalho. A lucratividade do capital alemão começou a cair na Grande Recessão dos anos 1970, recuperou-se um pouco nos anos 1990, mas voltou a cair durante a Longa Depressão da década de 2010.  Mas a maior queda veio na pandemia de tal modo que a lucratividade está agora em uma baixa histórica.

Mas isso não é tudo, pois a massa de lucros também começou a cair à medida que o aumento dos custos de produção (energia, transporte, componentes) corroem as receitas.  E quando os lucros totais caírem, um colapso no investimento e uma recessão se segue “naturalmente”. Note-se no gráfico da direita que a formação bruta de capital (um proxy para o investimento) está se contraindo.

Frente a esse resultado é preciso examinar os argumentos apresentados pelos economistas keynesianos de que o fim da Alemanha se deve à falta de demanda do consumidor e ao “excesso de capacidade” na produção.  Argumenta-se que o grande superávit comercial da Alemanha (exportações sobre importações) mostra um “desequilíbrio” na economia que deve ser corrigido pelo aumento do consumo.

Contudo, esse tipo de teorização se afigura como um absurdo.  Se olharmos para os componentes do PIB real alemão desde o início da crise pandêmica em 2020, podemos ver que a queda da Alemanha não foi resultado de uma queda no consumo (aumento de 1%), mas no investimento.  A queda da lucratividade e dos lucros levou à queda do investimento (queda de 7%).

Ademais, em consequência, a Alemanha não está “inundando” o mundo com suas exportações mesmo se parece.  O superávit comercial com o resto do mundo permanece praticamente inalterado em 20 bilhões de euros por ano, tal como nos anos da década de 2010. Ademais, as exportações de mercadorias mantêm-se mais ou menos estáveis; foram as importações que caíram após a pandemia, à medida que os fabricantes alemães reduziram a produção e o uso de matérias-primas e componentes.

Durante a pandemia, os gastos do governo aumentaram acentuadamente para tentar melhorar o impacto das perdas de empregos e salários.  Mas uma vez que isso terminou, o governo de coalizão aplicou medidas de austeridade fiscal, supostamente para se manter alinhado com as restrições da Comissão da União Europeia e a constituição alemã que estipula que o Estado “só pode gastar aquilo que ele ganha” por meio dos impostos.

O governo congelou seus planos de financiamento climático e de modernização e tapou um “buraco” de € 17 bilhões em seu orçamento com medidas de austeridade. Isso incluiu a eliminação de um subsídio ao diesel para veículos agrícolas, o que desencadeou protestos furiosos dos agricultores. Tratores invadiram cidades e bloquearam vários cruzamentos das grandes vias expressas. A interrupção de milhões de passageiros foi exacerbada por uma greve de maquinistas em um sistema ferroviário privatizado em desintegração.

Para completar, o ministro das Finanças, Christian Lindner, que é o líder do pequeno partido neoliberal de “livre mercado”, está insistindo em cortar gastos sociais (particularmente aqueles na Alemanha Oriental).  Lindner quer cortar gastos do governo em até € 50 bilhões!

O que tudo isso mostra é que mesmo o capitalismo alemão, a economia capitalista avançada mais bem-sucedida da Europa, não pode escapar das forças depressivas em operação na Longa Depressão.  Mas também mostra que o governo de coalizão alemão, ao seguir os interesses do imperialismo norte-americano em nome da “democracia ocidental”, ao apoiar a Ucrânia e Israel, está destruindo a hegemonia do capital alemão e os padrões de vida de seus cidadãos mais pobres.  Não é de admirar que as vozes do nacionalismo e da reação estejam ganhando força.