A ideia de progresso à luz da psicanálise

Autor: Herbert Marcuse[1]

Permitam-me que defina desde já os dois principais tipos de conceito de progresso, característicos do período moderno da cultura ocidental. Em primeiro lugar, o progresso é definido de forma predominantemente quantitativa e se evita ligar o conceito a qualquer valoração positiva. O progresso significa, portanto, que no curso da evolução cultural, apesar de muitos períodos de regressão, os conhecimentos e habilidades humanas geralmente crescem, e que, ao mesmo tempo, sua aplicação no sentido de dominação do ambiente humano e natural tornou-se cada vez mais universal. O resultado desse progresso é o aumento da riqueza social.

À medida que a cultura continua a se desenvolver, aumentam também as necessidades dos homens e os meios para as satisfazer, deixando em aberto a questão de saber se esse progresso também contribui para a plena realização do homem, para uma existência mais livre e feliz. Esse conceito quantitativo de progresso pode ser chamado de conceito de progresso técnico e contrastado com o conceito qualitativo de progresso, tal foi elaborado particularmente pela filosofia idealista, talvez mais vigorosamente por Hegel.

Segundo ele, o progresso da história consiste na realização da liberdade e da moralidade humanas: cada vez mais os homens se tornariam livres, e a própria consciência da liberdade estimularia uma ampliação do alcance da liberdade. O resultado do progresso, neste caso, é tornar os homens cada vez mais humanos de tal modo que diminuem a escravidão, a arbitrariedade, a opressão e o sofrimento. Podemos chamar a esse conceito qualitativo de progresso a ideia de progresso humanitário.

Ora, existe uma relação interna entre o conceito quantitativo e o conceito qualitativo de progresso: o progresso técnico parece ser a condição prévia para todo o progresso humanitário. A elevação da humanidade para além da escravidão e da pobreza, em direção a uma liberdade cada vez maior pressupõe o progresso técnico, isto é, um alto grau de domínio da natureza, que por si só produz riqueza social, por meio da qual as necessidades humanas, por sua vez, podem ser humanamente moldadas e satisfeitas. Contudo, por outro lado, porém, o progresso técnico não conduz automaticamente ao progresso humanitário.

Resta decidir, então, como a riqueza social é distribuída e a que finalidade estão destinados os crescentes conhecimentos e habilidades dos homens. O progresso técnico é certamente uma condição prévia para a liberdade; contudo, já não implica a obtenção efetiva de uma maior liberdade.

Basta imaginar a ideia de um Estado de bem-estar social totalitário, que há muito deixou de ser tão abstrato e especulativo, para perceber que, nesse caso, as necessidades dos homens são certamente mais ou menos satisfeitas, mas de tal forma que os homens são controlados tanto em sua existência privada quanto em sua existência social; eis que eles são controlados do berço ao túmulo. Se ainda podemos falar aqui de felicidade, é apenas de felicidade controlada.

Uma tendência decisiva pode ser observada na formulação filosófica do conceito de progresso, a saber, a de neutralizar o próprio progresso. Enquanto ainda no século XVII e até a Revolução Francesa, o conceito técnico de progresso também era também concebido qualitativamente, via-se  a plena realização técnica como ligada à humanização  — e se isso estava bem claro em Condorcet — isso mudou no século XIX.

Se compararmos o conceito de progresso de Comte e Mill com o de Condorcet, veremos imediatamente uma neutralização consciente de tal valoração.  Comte e Mill tentam definir um conceito de progresso livre de valores: do progresso técnico como tal não se pode deduzir mais a plena realização humana. Isso significa, no entanto, que o elemento qualitativo do progresso fica cada vez mais desterrado como utopia. Encontra-se nos sistemas pré-científicos e depois nos sistemas científico-socialistas, nos quais o elemento humanitário triunfa sobre o elemento técnico, mas não no conceito de progresso em si. Este é tomado imediatamente como neutro, sem valor, ou como algo que deveria ser assim considerado.

O conceito de progresso supostamente isento de valores, como tem sido visto desde o século XIX, é cada vez mais característico do desenvolvimento da civilização e da cultura ocidentais. Contém, na realidade, uma valoração muito definida. E esta pressupõe o progresso como princípio imanente, sob o qual a sociedade industrial moderna deve se desenvolver empiricamente. Os seus elementos decisivos poderiam ser caracterizados da seguinte forma: o valor maior é a produtividade, não apenas no sentido de alta produção de bens materiais e espirituais, mas também no sentido de dominação universal da natureza.

Surge então a pergunta: produtividade para quê? A resposta sempre dada é, naturalmente, esclarecedora: obviamente, ela é devida para satisfazer melhor as necessidades. A produtividade que serviria para a melhor e mais ampla satisfação das necessidades seria, em última análise, a produtividade voltada para a produção de bens de consumo para o benefício dos homens.

 Mas se o conceito de necessidade inclui comida, vestuário, abrigo, bem como bombas, máquinas de diversão e a aniquilação de meios de subsistência invendáveis, então podemos afirmar com segurança que o conceito é tão incorreto quanto inútil para a definição de produtividade legítima. E temos, então, o direito de deixar a questão em aberto:  produtividade para quê? Parece que se a produtividade é tomada, cada vez mais, como um fim em si mesma, então a questão do uso da produtividade não apenas permaneceria em aberto, mas também ficaria cada vez mais deslocado.

Mas se a produtividade pertence indissoluvelmente ao princípio moderno do progresso, segue-se que a vida é vivida e vivida como trabalho; eis que o próprio trabalho se torna o conteúdo da vida. O trabalho é concebido como socialmente útil, trabalho necessário, mas não necessariamente como trabalho individualmente satisfatório, individualmente necessário. A necessidade social e a necessidade individual divergem, e isso provavelmente tanto mais quanto mais a sociedade industrial se desenvolve sob este princípio de progresso. Em outras palavras, o trabalho que se torna a própria vida é o trabalho alienado.

Este, então, deve ser definido como um trabalho que impede os indivíduos de realizarem suas aptidões e as suas necessidades humanas. Se proporciona satisfação, se é que o faz, sempre o faz apenas de passagem ou após o trabalho. De acordo com a ordem de valores do conceito de progresso decisivo para o desenvolvimento da sociedade industrial, tem-se que a satisfação, realização, paz e felicidade não são fins. Ademais, certamente, estes não são os valores supremos, mas valores altamente subordinados.

Nessa ordem de valores em que vê a satisfação individual, a felicidade individual, apenas um elemento subordinado corresponde uma hierarquia de faculdades humanas que é própria do conceito de progresso: a divisão da essência humana em faculdades superiores, espirituais e faculdades inferiores, sensíveis, que se relacionam de tal forma que a superior, a razão, é determinada e definida em oposição às aspirações da sensibilidade, dos instintos. A razão aparece essencialmente como um princípio que renuncia e obriga à renúncia. A sua missão, ademais, não consiste apenas em dirigir a sensibilidade e as faculdades humanas inferiores, mas em oprimi-las.

Portanto, dentro dessa ideia de progresso, a liberdade é definida como liberdade em relação ao constrangimento dos instintos, da sensibilidade, como transcendência além da satisfação e como autonomia dessa transcendência. A satisfação nunca deve ser o que determina o conteúdo e o espaço dessa liberdade. A liberdade transcende a satisfação já alcançada para algo diferente, que seja “superior”. E essa transcendência, que é essencial à liberdade, aparece, assim como a produtividade a que pertence, em última instância, como um fim em si mesma.

Não é mais possível defini-la de imediato: transcendência por que e para quê? A transcendência como tal é suficiente para a definição da essência da liberdade? O que fazer das perguntas sobre essa transcendência? Por que esse ininterrupto ir além do estado já alcançado? Por que deve ser? Justamente essa dinâmica definidora da essência do homem permanece tão em aberto quanto a questão de por que a alta produtividade deve realmente ser o maior valor e o princípio condutor?

A liberdade, definida como um fim em si mesmo e estritamente diferenciada da satisfação, é uma liberdade sem felicidade, aparece como um fardo. Ela é assim desfigurada tanto pelos filósofos quanto pelos poetas, como liberdade da pobreza, liberdade do trabalho, até mesmo a liberdade acorrentada e exaltada como coroamento da existência humana e como o que é propriamente característico do homem. A tal conceito de liberdade contém uma negatividade, sem a qual a liberdade não seria de todo determinável.

A filosofia idealista e a filosofia existencial moderna, Kant e Sartre concordam sobre essa negatividade. A definição de liberdade de Sartre, como transcendência eterna por meio da transcendência, contém exatamente a negatividade como determinação da essência da liberdade, que também está presente na filosofia idealista quando define a liberdade como compulsão moral, internalizada, como negação da satisfação e da felicidade, ou seja, em oposição à inclinação.

Para a concepção moderna de progresso, a valorização do tempo se mostra como especialmente característica. O tempo é entendido como uma curva linear ou indefinidamente crescente, como um devir que deprecia toda existência pura. O presente é vivido de olho em um futuro mais ou menos inseguro. O futuro ameaça o presente desde o início, pois é imaginado e vivido com angústia. O passado permanece incontrolável e irrepetível, mas de tal forma que, justamente por ser incontrolável, ainda determina o presente.

Neste tempo linearmente experimentado, o tempo plenamente realizado, a duração da satisfação, a duração da felicidade individual, o tempo como paz é apenas imaginável seja como sobre-humana seja como sub-humana – por um lado, como felicidade eterna sobre-humana só é possível e imaginável depois que a existência desapareceu da face da Terra; por outro lado, como subumana apenas se põe na medida em que o desejo de eternização do instante feliz é o desumano e anti-humano, ou seja, dá ao diabo poder sobre os homens.

Em suma, de acordo com o conceito explícito de progresso, pode-se dizer que o próprio progresso é repleto de falta de paz, transcendência, felicidade, assim como de falta de negatividade. É irrecusável a pergunta se a negatividade no início do progresso é talvez a força motriz do progresso, a única força que o torna possível. Ou, para formulá-lo de uma forma que estabelece conexão com Freud: o progresso é necessariamente baseado em infelicidade? Ora, o progresso deve necessariamente permanecer ligado à infelicidade, à insatisfação?

John Stuart Mill disse certa vez: “não há nada mais certo do que o fato de que toda melhoria na condição dos homens é apenas obra de personagens descontentes”. Se isso é certo, então também se pode dizer o contrário — e este seria, a rigor, o lado oposto da ideia de progresso — que o contentamento, a satisfação, a paz, podem certamente trazer felicidade, mas que, em certo sentido, eles não fazem nada pelo progresso. Que a guerra, no sentido da luta pela existência, é o pai de todas as conquistas positivas, que depois, ocasionalmente, e muitas vezes só mais tarde, contribuem para a melhoria e satisfação das necessidades humanas, e que essa qualidade de incompletude e esse sofrimento têm sido o impulso constante de todo o trabalho cultural até agora.

Aqui reside o cerne da abordagem freudiana. A felicidade, como a liberdade, não é, segundo Freud, um produto da cultura. O desenvolvimento da cultura baseia-se na opressão, na limitação, na repressão dos desejos instintivos; de qualquer modo, é inconcebível sem a transformação instintiva dos instintos. Segundo Freud, isso se dá pela razão, que é óbvia e imutável, de que o organismo humano é originalmente regido pelo “princípio do prazer”. Ele não quer nada mais do que evitar a dor e aumentar seu prazer, mas a cultura não pode permitir a posição desse princípio.

Porque os homens são demasiado fracos e o ambiente do homem demasiado escasso e horrível, a renúncia e a repressão dos instintos são, desde o início, as condições básicas para todo o trabalho desagradável, as negações e renúncias que, como energia instintiva transformada repressivamente, tornam possível o progresso cultural. O princípio do prazer deve ser substituído pelo “princípio da realidade” para que a sociedade humana progrida do estágio animal para o estágio humano. Mostro isso aqui, ainda que brevemente, apenas para cortar pela raiz mais uma vez o erro generalizado de que Freud é, em certo sentido, um irracionalista.

Talvez não tenha existido um pensador mais racionalista nas últimas décadas do que Freud, cujo esforço é direcionado para mostrar que as forças irracionais ainda eficazes na condução dos homens devem ser subordinadas à razão para que as condições humanas possam ser melhoradas. A frase “onde estava o id, deve haver eu” é talvez a mais racional de todas as fórmulas que se pode imaginar no campo da psicologia.

Por que, então, é essencial para o desenvolvimento cultural superar o princípio de prazer por meio do princípio de realidade? O que é propriamente o princípio da realidade como princípio do progresso? De acordo com a mais recente teoria freudiana dos instintos, que é a única em que me baseio aqui, o organismo, com seus dois instintos básicos, Eros e a pulsão de morte, não é sociável enquanto tais instintos permanecem ilimitados.

Como tal, são inadequados para a construção de uma sociedade humana, na qual deve ser possível obter uma satisfação relativamente das necessidades: Eros — ilimitado — tende a nada mais do que o aumento intensificado e eternizado do prazer; a pulsão de morte — ilimitada — é pura regressão ao estado anterior ao nascimento e, daí, tendencialmente, à aniquilação de toda a vida.

Para que haja cultura e civilização, o princípio do prazer deve ser substituído por outro princípio que possibilite e preserve a sociedade: o princípio da realidade. Isso, segundo Freud, nada mais é do que o princípio da renúncia produtiva, implantado como um sistema de todas as modificações de instintos, renúncias, desvios, sublimações, que a sociedade deve impor aos indivíduos para transformá-los de portadores do princípio do prazer em instrumentos de trabalho socialmente utilizáveis.

Nesse sentido, o princípio da realidade é idêntico ao princípio do progresso, porque é somente por meio do princípio da realidade que a energia instintiva é liberada para o trabalho desagradável, para o trabalho que aprendeu a renunciar, a recusar os desejos pulsionais, e que só assim pode ser e permanecer socialmente produtivo.

Qual é o resultado psíquico do domínio do princípio de realidade? A transformação repressiva de Eros, que começa com a proibição do incesto. Isso já leva, na primeira infância, à superação fundamental do complexo de Édipo e, com ele, à internalização do poder paterno. Nesse momento, é introduzido o que faz parte da modificação decisiva de Eros sob o princípio da realidade: a sua transformação em sexualidade. Eros é originalmente mais do que sexualidade no sentido de que não é um instinto parcial, mas uma força que domina todo o organismo, que só posteriormente é colocado a serviço da reprodução e se localiza como sexualidade.

Isso requer uma perda de sexualização do organismo; ora, só isso possibilita converter o organismo como portador do princípio do prazer, em organismo como instrumento possível de trabalho. O corpo torna-se livre para gastar energia que, de outra forma, seria apenas energia erótica, por assim dizer; liberta-se do Eros integral que originalmente o havia subjugado e, assim, torna-se livre para o trabalho desagradável como conteúdo da vida.

A transformação repressiva da estrutura psíquica fundamental é a base psicológica individual do trabalho cultural e do progresso cultural, na medida em que os próprios indivíduos são participantes dele. O seu resultado não é apenas a transformação do organismo em instrumento de trabalho desagradável, mas, sobretudo, a depreciação da felicidade e do prazer como fins em si mesmos, a subordinação da felicidade e da satisfação à produtividade social, sem a qual não há progresso cultural.

Mas com essa depreciação da felicidade e da satisfação dos instintos, a sua subordinação à satisfação socialmente tolerável, ocorre simultaneamente a transformação e o progresso do homem-animal para o ser humano. O progresso da necessidade da mera satisfação dos instintos, que não é gozo da mente em si, se dirige para a conduta vivida e o gozo indireto, que são características e próprias do homem.

Qual o resultado da transformação repressiva da pulsão de morte? Novamente, o primeiro passo é a proibição do incesto. A interdição definitiva da mãe, imposta pelo pai, significa a contínua dominação da pulsão de morte, do princípio do Nirvana, e sua subordinação aos instintos vitais. Pois no desejo de incesto com a mãe reside também o objetivo último da pulsão de morte, a regressão ao estado indolor, desnecessário e, nesse sentido, prazeroso antes do nascimento, que do ponto de vista dos instintos é tanto mais desejável quanto mais desagradável e dolorosa se vive a vida. A energia deixada à pulsão de morte torna-se então socialmente útil de uma dupla maneira.

Ela é direcionada para fora como energia destrutiva socialmente útil, ou seja, o objetivo da pulsão de morte não é mais a aniquilação da própria vida em regressão, mas da vida dos outros, é a aniquilação da natureza na forma de dominação da natureza e a aniquilação de inimigos socialmente reconhecidos dentro e fora da nação.

Mas quase mais importante do que essa concessão externa à pulsão de morte é aquela interna: consiste no uso da energia destrutiva como moral social, como consciência, que se situa no superego e que impõe as exigências e pretensões do princípio da realidade contra o ego. O resultado da transformação social da pulsão de morte é, portanto, a destrutividade: sob a forma de agressão útil, e como dominação da natureza, é uma das principais fontes de trabalho civilizatório e cultural. Como agressão moral, constituída na consciência na forma das pretensões da moral contra o Id, a destrutividade é também um fator cultural indispensável.

É crucial que o progresso cultural, por meio da transformação repressiva dos instintos – e somente por meio dele – não só seja possível, como se torne automático. Se essa transformação foi realizada com sucesso por uma vez, então o progresso cultural é reproduzido novamente pelos mesmos indivíduos, cujos instintos foram distorcidos.

Mas assim como o progresso se torna automático por meio da transformação repressiva dos instintos, ele se suprime e nega a si mesmo: proíbe o gozo de seus próprios frutos; ora, é justamente por meio dessa proibição que a produtividade aumenta e, com ela, o progresso. Essa peculiar dinâmica antagônica do progresso ocorre mais precisamente da seguinte forma: o progresso só é possível por meio da transformação da energia instintiva em energia socialmente útil, ou seja, o progresso só é possível através da sublimação.

A sublimação, por sua vez, só é possível como sublimação continuada. Pois, se entra em ação por uma vez, submete-se à sua própria dinâmica, que estende o círculo e a intensidade da própria sublimação. A libido, originalmente prazerosa, mas socialmente inútil e até desviada para fins instintivos nocivos, torna-se, sob o princípio da realidade, produtividade social.

Como tal, aprimora os meios materiais e espirituais para a satisfação das necessidades humanas. Mas, ao mesmo tempo, nega aos próprios homens o pleno gozo desses bens, porque é uma energia repressiva e já figurou os homens de tal forma que eles não são capazes de valorizar a própria vida de outra maneira que não seja de acordo com a ordenação de valores que rejeita o gozo, a paz e a satisfação como fins para subordiná-los à produtividade.

O aumento da quantidade de energia acumulada, por meio da renúncia, corresponde ao aumento da produtividade, o que não leva à satisfação individual. O indivíduo nega a si mesmo o gozo da produtividade e, assim, investe o potencial de nova produtividade, o que impulsiona o processo a um nível cada vez maior de produção e renúncia ao que é produzido. Essa estrutura psíquica reflete a organização específica do progresso na própria sociedade industrial desenvolvida.

Podemos falar aqui de um círculo vicioso de progresso. O aumento da produtividade do trabalho social continua ligado ao aumento da repressão, que, por sua vez, contribui para o aumento da produtividade. Ou: o progresso deve estar sempre se negando a si mesmo, para continuar sendo progresso. A inclinação ao prazer deve ser sempre sacrificada à razão, à felicidade, à liberdade transcendente, para que os homens, por meio da promessa de felicidade, possam ser mantidos em trabalho alienado, permaneçam produtivos, sejam impedidos do pleno gozo de sua produtividade e, assim, perpetuem a própria produtividade.

A renúncia em nome do progresso não é, evidentemente, formulada dessa forma por Freud; mas, a meu ver, está presente na teoria freudiana e aparece talvez com mais força na dialética do poder paterno, tal como foi exposto por Freud. Isto é de importância decisiva para o próprio conceito de progresso. Na hipótese freudiana sobre a origem da história humana, entretanto, seu possível conteúdo empírico se resume insuperavelmente em uma imagem singular, a dialética do poder, de sua origem, transformação e desenvolvimento no progresso da cultura.

Suas principais características são bem conhecidas: a história humana começa quando, em uma horda primitiva, o mais forte, o pai primitivo, se coloca como o único chefe e consolida seu poder monopolizando para si a mulher – a mãe ou mães – e excluindo todos os outros membros da horda de seu gozo.

E isso significa que não é nem a natureza, nem a pobreza, nem a fraqueza que produzem a primeira repressão dos instintos. Decisivo para o desenvolvimento da cultura é o despotismo do poder – o fato de que um déspota injustamente distribui e se aproveita da pobreza, da escassez, da fraqueza e do fato de que ele reserva prazer e endossa o trabalho aos outros membros da horda. Esse primeiro passo, ainda pré-histórico, na repressão dos instintos provoca o segundo: a rebelião dos filhos contra o despotismo do pai. De acordo com a hipótese freudiana, o pai é morto pelos filhos e devorado comunitariamente em um banquete necrófilo.  

A primeira tentativa de libertar os instintos e tornar sua satisfação geral, de eliminar a distribuição despótica, hierárquica e privilegiada da felicidade e do trabalho, é a libertação do poder. Essa tentativa termina, segundo Freud, com os filhos ou irmãos rebeldes vendo ou achando que as coisas não ficam bem sem poder e que o pai era realmente indispensável, por mais despoticamente que tivesse governado.

O pai é substituído pelos irmãos, agora voluntariamente e, por assim dizer, em geral: como moralidade. Ou seja, os irmãos impõem a si mesmos e em liberdade as mesmas renúncias e abstinências a que haviam sido anteriormente forçados pelo pai primitivo. Com essa internalização do poder paterno – origem da moral e da consciência – começam a cultura e a civilização.

Da horda primitiva humano-animal passamos para a primeira e mais primitiva sociedade humana. A repressão dos instintos torna-se tarefa voluntária dos indivíduos, é internalizada e, ao mesmo tempo, o patriarcado se estabelece na forma de múltiplos pais que – cada um por si – transferem a moralidade do poder paterno e, portanto, a limitação dos instintos, para seu próprio clã, para seu próprio grupo.  E tornam-no eficaz na geração jovem.

Essa dinâmica de poder, que se inicia com a imposição do despotismo, que leva à revolução e que, após a tentativa de primeira libertação, termina com a substituição do pai de forma internalizada e generalizada, ou seja, racional, essa dinâmica se repete, segundo Freud, ao longo de toda a história da cultura e da civilização,  mesmo que de forma enfraquecida, isto é, como rebelião de todos os filhos contra todos os pais na puberdade, como reversão dessa rebeldia após a superação da puberdade e, finalmente, como ordenação dos filhos no contexto social, em submissão voluntária às renúncias socialmente exigidas, com as quais os próprios filhos se tornam pais.

Essa repetição psicológica da dinâmica do poder na cultura encontra sua expressão histórico-universal na dinâmica sempre repetida das revoluções do passado. Essas revoluções mostram um desenvolvimento quase esquemático. O motim é bem-sucedido, contudo, certas reviravoltas tentam levar a revolução ao seu ponto mais extremo, a ponto de talvez a transição para uma nova situação ser alcançada, diferente não apenas quantitativamente, mas qualitativamente – e nesse ponto a revolução geralmente é derrotada e o poder é internalizado em um nível superior.  Ganha nova organização e continua a se desenvolver.

Se a hipótese freudiana está realmente correta, então podemos arriscar a questão se, ao lado do Termidor sócio-histórico que pode ser apontado em todas as revoluções do passado, não há também um Termidor psíquico. Será que as revoluções são vencidas, invertidas e recolhidas não só de fora? Talvez esteja em ação nos próprios indivíduos uma dinâmica que nega internamente uma possível libertação e satisfação, e que faz com que os indivíduos se submetam não apenas externamente à negação?

Se a repressão dos instintos, mesmo segundo a hipótese freudiana, não é apenas uma necessidade natural, ela resultou, pelo menos na mesma medida, e talvez até principalmente, no interesse do poder e da manutenção do poder despótico. E se o princípio repressivo da realidade não é apenas o resultado da razão social, sem a qual nenhum progresso teria sido possível, mas é também o resultado de uma organização histórica definida do poder, então devemos de fato praticar uma correção decisiva na teoria freudiana. Pois se a transformação repressiva dos instintos, tal como até agora integrou psicologicamente o conteúdo principal do conceito de progresso, não é naturalmente necessária nem historicamente imutável, então ela própria possui seus limites muito definidos.

Estes são delineados depois que a repressão dos instintos e o progresso cumpriram sua função histórica, o estado de impotência humana e a escassez de bens foram superados, e a sociedade livre tornou-se uma possibilidade real para todos. O princípio da realidade repressiva torna-se supérfluo à medida que a cultura se aproxima de uma fase em que a supressão de um modo de vida, que forçava a repressão dos instintos, tornou-se uma possibilidade histórica realizável.

 Os resultados do progresso repressivo anunciam a liquidação do próprio princípio do progresso repressivo. Eis que prevê um estado em que não há produtividade que seja simultaneamente o resultado e a condição da renúncia, e no qual não haja trabalho alienado – um estado em que a crescente mecanização do trabalho permite que uma parcela cada vez maior da energia instintiva que teve de ser absorvida pelo trabalho alienado seja restaurada à sua forma original – em outras palavras, que ela pode ser retransformada na energia dos instintos vitais. O tempo gasto no trabalho alienado não seria mais tempo vital, e o tempo livre, que está à disposição do indivíduo para a satisfação de suas próprias necessidades, não seria mais mero tempo residual, mas o tempo de trabalho alienado não apenas seria reduzido ao mínimo, mas até desapareceria completamente.  E o tempo vital seria o tempo livre.

Decisivo é o reconhecimento de que tal desenvolvimento não equivale simplesmente a uma extensão e aumento do Estado e das circunstâncias do momento. Pelo contrário, seria um princípio qualitativamente novo da realidade que tomaria o lugar do princípio repressivo e, com ele, mudaria todo o nível humano e social. O que realmente está acontecendo quando esse estado, que hoje ainda tem fama de utópico, está se tornando cada vez mais real? O que acontece quando uma automação mais ou menos total determina a orientação da sociedade e intervém em todos os domínios da vida?

Para ilustrar essa consequência, me atenho aos mesmos conceitos básicos de Freud. O primeiro resultado seria que a força da energia instintiva liberada pelo trabalho mecanizado deixaria de ser utilizada em atividades desagradáveis e poderia ser retransformada em energia erótica. Seria possível reavivar todas as forças eróticas e modos de conduta aprisionados e dessexualizados pelo princípio da realidade repressiva. Daí a consequência — e eu gostaria de enfatizar isso com toda a força, porque é neste ponto que ocorrem os maiores mal-entendidos — de que a sublimação não acabaria, mas se elevaria e se dirigiria, como energia erótica, para novas forças criadoras de cultura.

A consequência não seria o pansexualismo, que pertence antes ao quadro da sociedade repressiva (o pansexualismo é concebível apenas como uma explosão da energia dos instintos repressivos, mas nunca como uma realização da energia dos instintos não repressivos). Na medida em que a energia erótica fosse verdadeiramente livre, ela deixaria de ser sexualidade pura e se tornaria uma força que determinaria o organismo em todos os seus modos de conduta, dimensões e objetivos. Em outras palavras, o organismo se tornaria um apoiador do que não poderia estar apoiado sob o princípio repressivo da realidade. Tender à satisfação em um admirável mundo novo seria o princípio sob o qual a existência humana se desenvolveria.

A hierarquia de valores de um princípio não repressivo de progresso pode ser determinada em quase todas as suas partes em oposição à do princípio repressivo: a experiência fundamental não seria mais a da vida como luta pela existência, mas a de seu gozo. O trabalho alienado seria transformado no livre jogo das aptidões e forças humanas. A consequência seria a interrupção de toda transcendência desprovida de conteúdo, a liberdade deixaria de ser um projeto eternamente frustrado.

A produtividade seria determinada pela receptividade, a existência não seria vivida como um devir não realizado e cada vez maior, mas como ser-aí com o que é e pode ser. O tempo não apareceria mais linear, como uma linha eterna ou como uma curva eternamente crescente, mas como um curso circular, como um retorno, como ainda era imaginado por Nietzsche, como a “eternidade do prazer”.

Vê-se, então, como o princípio do progresso não repressivo, com a ordenação de valores que lhe são peculiares, é conservador em sentido decisivo. E ninguém menos que o próprio Freud afirmou que os instintos, em sua essência mais íntima, são conservadores. O que eles realmente querem não é uma mudança infinita e eternamente insatisfatória, o esforço em direção a algo indefinidamente superior e ainda não alcançado, mas um equilíbrio, uma estabilização e reprodução de estados em que todas as necessidades possam ser satisfeitas e em que novas necessidades só possam aparecer quando sua satisfação prazerosa também for possível.

Mas se essa tendência à satisfação adequada à natureza conservadora dos instintos pode ser levada à conclusão sob um princípio de progresso não repressivo na própria existência, então uma das principais objeções à sua possibilidade, a saber, que os homens, tendo atingido um estado de satisfação, colapsem em um estado de satisfação.  Eles não teriam mais nenhuma razão para trabalhar e, então, seriam corrompidos em um gozo estático e estúpido do que poderiam obter sem trabalho.

Parece ser exatamente o contrário. É claro que não haveria mais necessidade de um impulso para o trabalho. Se o próprio trabalho se torna o livre jogo das capacidades humanas, então não há mais necessidade de qualquer sofrimento que obrigue os homens a trabalhar. Por iniciativa própria e somente porque é a satisfação de suas próprias necessidades, eles trabalharão na configuração de um mundo melhor, no qual eles se autorrealizarão sua existência.

A hipótese de uma cultura baseada num princípio de progresso não repressivo, em que o trabalho se afigura como brincadeira, tem sido defendida de forma interessante justamente na tradição de pensadores que não podem de modo algum serem considerados defensores e propagandistas da sensibilidade, do pansexualismo, da libertação inadmissível de tendências radicais.

Citemos apenas dois exemplos: Schiller, em suas cartas “sobre a educação estética do homem”, desenvolveu a ideia aqui exposta por meio de conceitos freudianos de uma cultura estética, sensível, na qual razão e sensibilidade se conciliam. A ideia de uma transformação do trabalho no livre jogo das aptidões humanas como objetivo próprio e único modo de existência digno do homem é decisiva. Schiller ressalta que essa ideia só pode ser realizada em um estágio da cultura em que o desenvolvimento máximo das aptidões intelectuais e espirituais anda de mãos dadas com a presença dos meios e bens materiais para a satisfação das necessidades humanas.

Outro pensador que, menos ainda que Schiller, pode cair sob a suspeita de defender o pansexualismo ou a libertação injustificada dos instintos, e que talvez seja um dos pensadores mais repressivos – pelo menos, na tradição. Platão expressou essa ideia, talvez da maneira mais radical em seus livros que defendem um estado totalitário. Eis que ela é exposta com mais detalhes do que em qualquer outro lugar do que em As leis. Nesse contexto, ele diz o seguinte (esta é a definição da existência digna do homem):

Quero apenas dizer: devemos dirigir a seriedade para o que é sério, mas não para coisas que não são sérias. Por sua própria natureza, a divindade merece nosso sagrado respeito, pois o homem, como já dissemos, é feito apenas para ser um brinquedo nas mãos da divindade, e isso é a melhor coisa nele.

Portanto, todo homem e mulher, ao longo de suas vidas, deve se adaptar da melhor forma possível a esse papel, jogando os jogos mais bonitos que podem existir – ou seja, exatamente o oposto do que imaginamos estar jogando. Hoje em dia as pessoas pensam que coisas sérias têm que ser feitas com vistas aos jogos: então acredita-se que as coisas relacionadas à guerra, as coisas que são sérias, devem ser bem realizadas para alcançar a paz.

Ora, a guerra, na verdade, nunca foi capaz de nos oferecer, nem nunca será capaz de nos oferecer, um jogo real ou uma educação digna desse nome, e, no entanto, o brincar e a educação devem ser o que chamamos de objetivos de nossos esforços. É por isso que cada um deve levar continuamente apenas uma vida de paz, enquanto puder e da melhor forma possível. Qual é, então, o caminho certo? Devemos passar a vida jogando certos jogos, fazendo sacrifícios, cantando e dançando, para que possamos conquistar o favor dos deuses, bem como repelir os ataques de nossos inimigos e derrotá-los em combate.

O outro orador tem exatamente a mesma reação que nós; pois ele diz: “mas assim você rebaixa muito a raça humana”. E a resposta do ateniense em As leis é:

Não se surpreenda, Megilo, mas perdoe-me! O que acabei de dizer vem do fato de que tenho minha mente voltada para a divindade.

Como se vê, Platão talvez esteja falando mais sério do que nunca, quando apresenta, justamente neste lugar, de forma conscientemente provocativa, o trabalho como brincadeira. E brincadeira aí é o conteúdo principal da vida, aquilo que define e celebra o modo de existência mais digno para o homem.

Para concluir, gostaria de me defender de uma acusação que foi feita contra mim há algum tempo: a de que está a ir longe demais e a ser irresponsável, numa situação em que a realidade em que vivemos não só nada tem a ver com a hipótese aqui delineada, como é e promete continuar a sê-lo.  Em todos os seus aspectos, seu lado oposto, a apresentação de uma utopia que afirma que a sociedade industrial moderna poderia muito em breve alcançar um estado em que o princípio da repressão, que até então orientou sua evolução, se mostrasse antiquado.

Sem dúvida, o contraste dessa utopia com a realidade dificilmente pode ser maior do que é agora. Mas talvez seja precisamente a sua medida que seja o sinal de uma limitação. Quanto menos biológica e socialmente necessárias são as renúncias e resignações, mais os homens devem ser transformados em instrumentos de políticas repressivas, o que os impede de realizar possibilidades sociais que, de outra forma, seriam capazes de imaginar para si mesmos. Talvez seja hoje menos irresponsável desenhar uma utopia bem fundamentada do que difamar como utopia certas situações e possibilidades que há muito se tornaram possibilidades realizáveis.


[1] Sociólogo e filósofo alemão naturalizado norte-americano, pertencente à Escola de Frankfurt. Em suas obras escritas, ele criticou o capitalismo, a tecnologia moderna, o materialismo histórico e a cultura do entretenimento, argumentando que eles representam novas formas de controle social. Os seus trabalhos mais conhecidos são Eros e Civilização (1955) e O Homem Unidimensional (1964).