Zizek pergunta: onde está a ruptura metabólica?

Não está aí? Eis, pois, uma pseudo questão.

Publica-se aqui, em sequência, um artigo de Slavoj Žižek que foi divulgado pelo sítio LavraPalavra, em 2020. Eis que ele ganhou importância diante o agravamento da crise climática e, num plano ainda mais geral, da crise ecológica. Nesse artigo, o filósofo esloveno faz uma crítica ao livro Kohei Saito, O ecossocialismo de Karl Marx. E o faz do ponto de vista de seu neohegelianismo lacaniano.

O seu ponto principal consiste em argumentar que o conceito de ruptura não é adequado para tratar do problema. Segundo Žižek, essa noção pertence ao materialismo dialético; eis que, pensando ainda deste modo, se acolhe a separação entre sociedade e natureza, considerando essa última como uma fonte de riqueza, ou seja, como uma base que permite o desenvolvimento das forças produtivas.

O que Saito teria feito em seu livro não teria passado de uma inversão do produtivismo original em um antiprodutivismo. Daí que ele chame a sua posição diante do problema historicamente criado pelo desenvolvimento do capitalismo de “comunismo descrescimentista”. Žižek, por seu turno, parece propor que uma transformação ocorreu já na ordem simbólica, pois, agora, a natureza está totalmente e irreversivelmente humanizada É assim que ele termina o artigo: “não há retorno a um sentimento autêntico de nossa unidade com a natureza: a única maneira de enfrentar os desafios ecológicos é aceitar completamente a desnaturalização radical da natureza”.

Ao invés do materialismo histórico original, precisaríamos, segundo ele, de uma nova concepção de história, ou seja, uma concepção que se afiguraria, em princípio, como um tipo de “idealismo” histórico. Eis que o natural teria desaparecido já como tal; agora, ele seria um natural desnaturalizado. A questão é complicada, mas parece importante discuti-la.

Em princípio, julga-se aqui que a posição de Saito é bem defensável. Na relação “humanidade e natureza” não há uma absorção da segunda na primeira; é preciso, sim, enfrentar ainda a contradição aí implícita, admitindo que ela persiste. Deve-se, portanto, tomar a natureza como natureza, pois ela, ao contrário do que parece crer o novo idealismo do filósofo Žižek, tem uma materialidade que é irredutível à ordem simbólica.

Onde está a ruptura? Marx e Lacan, capitalismo e ecologia [1]

Autor:  Slavoj Žižek

Quando, décadas atrás, a ecologia surgiu como uma questão teórica e prática crucial, muitos marxistas (assim como críticos do Marxismo) notaram que a natureza – mais precisamente, o exato status ontológico da natureza – é o único tópico em que até o materialismo dialético mais grosseiro possui uma vantagem sobre o Marxismo Ocidental.

Quer dizer, o materialismo dialético nos permite pensar a humanidade como parte da natureza, enquanto o marxismo ocidental considera a dialética sócio-histórica como o horizonte último de referência e, em última instância, reduz a natureza a um pano de fundo do processo histórico, a natureza como uma categoria histórica, como Lukács colocou. O livro de Kohei Saito, O ecossocialismo de Karl Marx [2], é a mais recente e consistente tentativa de pensar a reposição do equilíbrio perdido, assim como uma tentativa de ajuizar a inserção da humanidade na natureza sem regressar à ontologia geral materialista-dialética.

Como a principal referência filosófica do marxismo ocidental é Hegel, não é de admirar que Saito rejeite agressivamente a herança hegeliana. Seu ponto de partida não é a natureza como tal, mas o trabalho humano como o processo de metabolismo entre a humanidade (como parte da natureza) e seus arredores naturais, um processo que é, naturalmente, parte do metabolismo universal (troca de matéria) na natureza em si.

No nível mais básico, o trabalho é um processo material de troca que põe a humanidade em um contexto muito mais amplo de processos naturais e, como tal, não pode ser reduzido a nenhuma forma de automediação hegeliana: a externalidade da natureza é irredutível. Esse ponto aparentemente abstrato tem consequências cruciais para a maneira como lidamos com nossa situação ecológica.

Saito vê a raiz da crise ecológica na lacuna entre o metabolismo material do nosso processo vital e a lógica autônoma da reprodução do capital, o que representa uma ameaça para o bom funcionamento desse metabolismo. No decorrer do livro, Saito admite que antes na história também houve rupturas:

“Apesar do surgimento da produção sustentável de longo prazo nas sociedades pré-capitalistas, sempre houve uma certa tensão entre a natureza e os seres humanos. O capitalismo por si só não cria o problema da desertificação ex-nihilo (…) ele transforma e aprofunda a contradição transistórica ao reorganizar radicalmente o metabolismo universal da natureza a partir da perspectiva da valorização do capital. ”[3]

Mas o esquema geral continua sendo um progresso linear da alienação do homem em relação à natureza. É por isso que Marx também estava, nos seus últimos anos, cada vez mais interessado em uma “tendência socialista inconsciente” nos restos persistentes de formas pré-capitalistas de vida comunitária e especulava que esses restos poderiam passar diretamente para uma sociedade pós-capitalista.

Por exemplo, em sua famosa carta a Vera Zasulich, Marx examina a ideia de que, talvez, as vilas comunais russas pudessem funcionar como lugares de resistência contra o capital, permitindo mesmo estabelecer o socialismo sem passar pelo capitalismo. As formas pré-capitalistas mantêm os mais íntimos laços do humano com a terra. Nesse sentido, o título do primeiro capítulo do livro de Saito – “Alienação da natureza como o surgimento do moderno” – claramente localiza a “ruptura” na modernidade capitalista: “Após a dissolução histórica da unidade original entre os seres humanos e a terra, a produção só pode se relacionar com as condições de produção como uma propriedade estranha”. E o projeto comunista de Marx precisa consertar essa ruptura:

“Somente se compreendermos o distanciamento na sociedade capitalista como uma dissolução da unidade original dos seres humanos com a Terra se torna evidente que o projeto comunista de Marx visa consistentemente a uma reabilitação consciente da unidade entre os seres humanos e a natureza”.

O fundamento último dessa ruptura é que, no capitalismo, o processo de trabalho não atende às nossas necessidades; seu objetivo é ampliar a reprodução do próprio capital, independentemente dos danos que causa ao meio ambiente. Os produtos contam apenas na medida em que são valorizados, e as consequências para o meio ambiente literalmente não contam. O metabolismo real do nosso processo de vida está, portanto, subordinado à “vida” artificial da reprodução do capital. Há uma lacuna entre as duas, e o objetivo final da revolução comunista não seria tanto abolir a exploração, como abolir essa ruptura.

No capitalismo, a ruptura aqui em discussão se torna mais radical não apenas no sentido de que o processo metabólico entre humanos e natureza está subordinado à valorização do próprio capital. O que fez a ruptura se expandir foi o elo íntimo entre capitalismo e ciência moderna: a tecnologia capitalista, que desencadeou mudanças radicais nos ambientes racionais, não pode ser imaginada sem a ciência. É por isso que alguns ecologistas já propuseram mudar a denominação da nova época em que já entramos de Antropoceno para Capitaloceno.

Os aparelhos baseados na ciência permitem que os humanos não apenas conheçam o real que está fora do escopo de sua realidade experiencial (como as ondas quânticas); eles também nos permitem construir novos objetos “antinaturais” (desumanos) que não podem deixar de aparecer em nossa experiência como aberrações da natureza (dispositivos, organismos geneticamente modificados, ciborgues etc.). O poder da cultura humana não é apenas construir um universo simbólico autônomo além do que experimentamos como natureza, mas produzir novos objetos naturais “não naturais” que materializam o conhecimento humano. Nós não apenas “simbolizamos a natureza”; nós, por assim dizer, a desnaturalizamos por dentro.

Não devemos aplicar a descrição de Marx de como no capitalismo “tudo o que é sólido se desmancha no ar, tudo o que é santo é profanado” também para a própria natureza? Hoje, com os mais recentes desenvolvimentos biogenéticos, estamos entrando em uma nova fase, na qual é simplesmente a própria natureza que se desmancha no ar: a principal consequência dos avanços científicos na biogenética é o fim da natureza. Uma vez que conhecemos as regras de sua construção, os organismos naturais são transformados em objetos passíveis de manipulação.

A natureza, humana e não-humana, é assim “dessubstancializada”, privada de sua densidade impenetrável, do que Heidegger chamou de “terra”. Isso nos obriga a dar uma nova reviravolta ao título de Freud Unbehagen in der Kultur – descontentamento, desconforto, na cultura. Com os últimos desenvolvimentos, o descontentamento muda da cultura para a própria natureza: a natureza não é mais “natural”, o fundo “denso” e confiável de nossas vidas; agora aparece como um mecanismo frágil que, a qualquer momento, pode explodir em uma direção catastrófica.

O mais recente exemplo dessa “natureza não natural” foi fornecido pela infame Agência de Projetos de Pesquisa Avançada de Defesa, conhecida como DARPA:

“Pesquisadores nos EUA criaram as primeiras máquinas vivas reunindo células de sapos africanos em pequenos robôs que se movem sob seu próprio vapor. ‘Essas são formas de vida inteiramente novas. Eles nunca existiram na Terra”, disse Michael Levin, diretor do Allen Discovery Center da Universidade Tufts em Medford, Massachusetts. “Eles são organismos vivos e programáveis.” Suas características únicas significam que versões futuras dos robôs poderão ser implantadas para limpar a poluição por microplásticos nos oceanos, localizar e digerir materiais tóxicos, administrar drogas no corpo ou remover a placa das paredes das artérias, dizem os cientistas.

“É impossível saber quais serão as aplicações de qualquer nova tecnologia, então tudo o que podemos fazer é realmente apenas supor”, disse Joshua Bongard, pesquisador sênior da equipe da Universidade de Vermont. Sam Kriegman, um estudante de doutorado da equipe da Universidade de Vermont, reconheceu que o trabalho levantou questões éticas, principalmente porque as variantes futuras poderiam ter sistemas nervosos e ser selecionadas por capacidade cognitiva, tornando-as participantes mais ativas do mundo. Mas o trabalho visa alcançar mais do que apenas a criação de robôs Lula Moluscos. “O objetivo é entender o software da vida”, disse Levin. ‘Se você pensar em defeitos congênitos, câncer, doenças relacionadas à idade, todas essas coisas poderiam ser resolvidas se soubéssemos como fazer estruturas biológicas, para ter controle final sobre o crescimento e a forma. ‘”[4]

É a velha história de uma invenção que se propaga devido aos usos benevolentes que possam ter (“limpar a poluição por microplásticos nos oceanos” etc.); quando, de fato, foram criadas porque faziam parte de um projeto de defesa militar. Mas o ponto crucial é que uma “forma de vida inteiramente nova” foi criada através dessa combinação de um organismo natural com um robô, algo que não existe em nenhum lugar da natureza. A própria expressão “o software da vida” diz tudo: a própria vida perde sua densidade impenetrável, uma vez que é considerada algo regulada por um “software” (um termo corriqueiro da arte de programação de computadores).

Na combinação de um organismo natural com um artificial, predomina o organismo artificial; é ele que determina a forma desse encontro. Seria fácil se envolver aqui no elogio dos ciborgues como o novo modo de existência pós-humano que obscurece os velhos limites “metafísicos” entre vida animal, vida humana e vida artificial – é mais difícil simplesmente pensar nas consequências e coordenadas básicas do que está acontecendo. O que exatamente está desaparecendo e o que está emergindo?

A biogenética, com a sua redução da própria psique humana a um objeto de manipulação tecnológica, é efetivamente uma espécie de instanciação empírica do que Heidegger percebia como o “perigo” inerente à tecnologia moderna. Crucial aqui é a interdependência do humano e da natureza: reduzindo o humano a apenas outro objeto natural cujas propriedades podem ser manipuladas, o que perdemos não é (apenas) a humanidade, mas a nossa própria natureza.

Nesse sentido, Francis Fukuyama estava certo: a própria humanidade se relaciona com alguma noção de “natureza humana”, como o que herdamos como simplesmente dado a nós, a dimensão impenetrável em/de nós mesmos em que nascemos/somos jogados. O paradoxo é, portanto, que existem seres humanos apenas na medida em que há natureza desumana impenetrável (a “terra” de Heidegger). Mas, com a perspectiva de intervenções biogenéticas abertas pelo acesso ao genoma, a espécie livremente muda/redefine suas próprias coordenadas. Essa perspectiva emancipa efetivamente a humanidade das restrições de uma espécie finita, de sua escravização ao “gene egoísta”.

A implicação mútua, cumplicidade até, da ciência e do capitalismo não é, obviamente, perfeita, visto que implica uma tensão imanente em cada um dos dois termos. A ciência se oferece ao capitalismo, na medida em que é cega em relação a uma dimensão-chave de sua existência, o que foi sinalizado por Lacan em algumas e suas formulações. A ciência impede a dimensão do sujeito; a ciência opera no nível do conhecimento e ignora a verdade; a ciência não tem memória. Vamos começar com esta última questão:

“O fato é que a ciência, se a observarmos de perto, não tem memória. Por um lado, uma vez constituída, ela cria o caminho tortuoso pelo qual surgiu; de outro lado, esquece uma dimensão da verdade que a psicanálise coloca seriamente em evidência na prática. No entanto, devo ser mais preciso. É largamente sabido que a física e a matemática teóricas – depois de toda crise resolvida de uma forma pela qual o termo “teoria generalizada” não pode de forma alguma ser entendida como “uma mudança para a generalidade” – geralmente mantêm o que elas generalizam em sua posição na estrutura anterior. Esse não é o meu ponto aqui.

Minha preocupação é o pedágio, o pedágio subjetivo que cada uma dessas crises impõe àqueles que as provocam. A tragédia [drame] tem suas vítimas, e nada nos permite dizer que seu destino possa ser inscrito no mito edipiano. Digamos que o sujeito não tenha sido estudado em grande medida. J. R. Mayer, Cantor – bem, não vou fornecer aqui uma lista de tragédias mais notórias, as quais levaram às vezes os seus construtores ao ponto da loucura; os nomes de alguns de nossos contemporâneos, em cujos casos considero exemplar a tragédia do que está acontecendo na psicanálise, em breve deverão ser adicionados à lista. ”[5]

O que Lacan visa aqui vai muito além das tragédias psíquicas de grandes inventores científicos. (Ele menciona Cantor cuja revolução da noção de infinito provocou tamanho tumulto interno que o levou ao limite da loucura e até o levou a praticar coprofagia). Do ponto de vista científico, essas tragédias são detalhes irrelevantes da vida privada que não afetam de maneira alguma o status de uma descoberta científica. Tais detalhes tem de ser ignorados se queremos compreender uma teoria científica, e essa ignorância não é uma fraqueza da teoria científica, mas sua força. Uma teoria científica é “objetiva”: suspende sua posição de enunciação. Não importa quem o enuncie; tudo o que importa é o seu conteúdo.

Nesse sentido, o discurso da ciência faz a foraclusão do sujeito. Lacan, no entanto, tenta pensar o sujeito da ciência moderna, trazendo esses detalhes “psicológicos” não para relativizar a validade das teorias científicas, mas para responder à pergunta: que mudanças tiveram de acontecer na subjetividade de um cientista para que tais teorias pudessem ser formuladas? Uma teoria pode ser “objetivamente válida”, mas sua enunciação pode, no entanto, se relacionar a mudanças subjetivas traumáticas: não há harmonia pré-estabelecida entre sujeito e objeto.

O objetivo de Lacan também vai além da chamada “responsabilidade ética” dos cientistas pelo (mau) uso de suas realizações científicas. Ele menciona algumas vezes J.R.Oppenheimer, o chefe de guerra do Laboratório Los Alamos frequentemente creditado como o “pai da bomba atômica”. Quando a primeira bomba atômica foi detonada com sucesso em 16 de julho de 1945, ele observou que ela lembrava as palavras do Bhagavad Gita: “Agora eu me tornei a morte, a destruidora de mundos.”

Perturbado por escrúpulos éticos, ele expressou suas dúvidas publicamente e, como consequência, sofreu a revogação de sua licença de segurança e foi efetivamente despojado de influência política direta … Por mais louvável que seja, tal postura crítica não basta: ela permanece no nível dos “comitês éticos” que proliferam hoje e tentam restringir o progresso científico à camisa de força das normas predominantes (até onde devemos ir às manipulações biogenéticas, etc.). A razão pela qual isso não é suficiente é que isso equivale a não ter mais que um controle secundário sobre uma máquina que, se permitisse seguir seu curso imanente, teria gerado resultados catastróficos.

A armadilha a ser evitada aqui é dupla. Por um lado, é insuficiente localizar o perigo em determinados usos indevidos da ciência devido à corrupção (como os cientistas que apoiam a negação da mudança climática) ou algo semelhante. O perigo reside em um nível muito mais geral, no que diz respeito ao próprio modo de funcionamento da ciência.

Por outro lado, devemos também rejeitar a generalização excessivamente apressada do perigo para o que Adorno e Horkheimer chamaram de “razão instrumental” – a ideia de que a ciência moderna está em sua estrutura mais básica direcionada para dominar, manipular e explorar a natureza, mais a concomitante ideia de que a ciência moderna é apenas uma radicalização de uma tendência antropológica básica. (Para Adorno e Horkheimer em sua Dialética do Esclarecimento, existe uma linha reta que vai do uso primitivo da magia até a influência que a tecnologia moderna exerce sobre os processos naturais). O perigo reside na conjunção específica entre a ciência e o capital.

Para obter a dimensão básica do objetivo de Lacan na passagem citada acima, precisamos introduzir a diferença entre conhecimento e verdade, em que a “verdade” adquire todo o seu peso. Para indicar esse peso, vamos mencionar mais uma vez o paradoxo do ciúme de Lacan. Lacan escreveu que mesmo que aquilo que um marido ciumento afirma sobre sua esposa (que ela dorme com outros homens) seja verdade, seu ciúme ainda é patológico.

Os elementos patológicos advém do fato de que o ciúme do marido se apresenta como a única maneira dele manter a sua dignidade e, até mesmo, a sua identidade. Na mesma linha, pode-se dizer que mesmo que a maioria das alegações nazistas sobre os judeus fosse verdadeira (eles exploram alemães, eles seduzem meninas alemãs …) – o que eles não fazem, é claro -, seu antissemitismo ainda seria (e foi) um fenômeno patológico porque reprimiu a verdadeira razão pela qual os nazistas precisavam do antissemitismo para sustentar sua posição ideológica. Na visão nazista, a sociedade deles é um conjunto orgânico de colaboração harmoniosa, portanto é necessário um intruso externo para explicar as divisões e antagonismos.

Isso vale, hoje, para os populistas anti-imigrantista na forma como lidam com o “problema” dos refugiados: eles o abordam na atmosfera de medo, da luta iminente contra a islamização da Europa, e são apanhados em uma série de absurdos óbvios. Para eles, os refugiados que fogem do terror são iguais aos terroristas dos quais estão fugindo, alheios ao fato óbvio de que, embora existam entre os refugiados também terroristas, estupradores, criminosos etc., a grande maioria são pessoas desesperadas procurando por uma vida melhor.

A causa dos problemas que são imanentes ao capitalismo global de hoje é projetada em um intruso externo. Encontramos aqui o fato de que as “fake news” não podem ser reduzidas a uma simples inexatidão: se elas (parcialmente, pelo menos) adereçam corretamente os fatos ou parte deles, elas são ainda mais perigosamente “falsas”. O racismo e sexismo anti-imigrantista não são perigosos porque eles mentem; eles estão no seu nível mais perigoso quando a mentira é apresentada na forma de uma verdade factual, parcialmente.

É essa dimensão da verdade que escapa à ciência: da mesma maneira que meu ciúme é “falso” ainda que minhas suspeitas sejam confirmadas por um conhecimento objetivo, da mesma forma que nosso medo de refugiados é falso relativamente à posição subjetiva de enunciação que ele implica mesmo que alguns fatos possam confirmá-lo, a ciência moderna é “falsa” na medida em que é cega ao modo como é integrada à circulação do capital, ao seu vínculo com a tecnologia e com seu uso capitalista, isto é, para aquilo que nos velhos termos marxistas termos foi chamado de “mediação social” de sua atividade.

É importante ter em mente que essa “mediação social” não é um fato empírico externo ao procedimento científico; é, antes, uma espécie de transcendental a priori que estrutura o procedimento científico a partir de dentro. Então, não é apenas que os cientistas “não se importam” com o eventual uso indevido de seu trabalho (se esse fosse o caso, mais cientistas “socialmente conscientes” seriam suficientes). Ao contrário, esse “não se importar” está inscrito em sua estrutura, colorindo o próprio “desejo” que motiva a atividade científica, que é o que Lacan visa com sua afirmação de que a ciência não tem memória. Como isso?

Nas condições do capitalismo desenvolvido, uma divisão estrita prevalece entre aqueles que realizam o trabalho (ou seja, os trabalhadores) e aqueles que o planejam e coordenam. Estes últimos estão do lado do capital: seu trabalho é maximizar a valorização do capital e, quando a ciência é usada para aumentar a produtividade, ela também se restringe à tarefa de facilitar o processo de valorização do capital.

A ciência está, portanto, firmemente enraizada no operar do capital: é a figura última do conhecimento, que é tirada dos trabalhadores e apropriada pelo capital e seus executores. Os cientistas que trabalham também são remunerados, mas seu trabalho não está no mesmo nível do trabalho dos trabalhadores: eles, por assim dizer, trabalham para o outro lado (oposto) e são, em certo sentido, os pelegos do processo de produção. … Isso, é claro, não significa que a ciência natural moderna esteja inexoravelmente do lado da capital: hoje, a ciência é mais do que nunca necessária em qualquer resistência ao capitalismo. A questão é que a própria ciência não é suficiente para fazer esse trabalho, uma vez que ela “não tem memória”, pois ignora a dimensão da verdade.

Devemos fazer uma distinção entre dois níveis do que torna a ciência problemática. Primeiro, existe, em um nível geral, o fato de que a ciência “não tem memória”; isso faz parte, aliás, da força constitutiva da ciência. Segundo, existe a conjunção específica de ciência e capitalismo, em que “não ter memória” se relaciona com a cegueira particular de sua própria mediação social. No entanto, Greta Thunberg está certa quando afirma que os políticos devem ouvir a ciência. O “Die Wunde schliest der Speer nur, der Sie schlug” de Wagner (“A ferida só pode ser curada pela lança que a provocou”) adquire assim uma nova atualidade.

As ameaças de hoje não são primariamente externas (naturais), mas autogeradas pela atividade humana atravessada pela ciência (as consequências ecológicas de nossa indústria, as consequências psíquicas da biogenética descontrolada etc.). Como resultado, as ciências são simultaneamente uma fonte de ameaça e, ao mesmo tempo, o único meio que temos para entender e definir as ameaças. Mesmo se culparmos a civilização científico-tecnológica pelo aquecimento global, precisamos da mesma ciência não apenas para definir o escopo da ameaça, mas muitas vezes até para percebê-la.

O que precisamos não é de uma ciência que redescubra sua base na sabedoria pré-moderna, dado que a sabedoria tradicional é, precisamente, algo que nos impede de perceber a real ameaça de catástrofes ecológicas. Ao final, a sabedoria “intuitivamente” nos diz para confiar na mãe-natureza, que é a base estável do nosso ser, mas é essa base estável que é minada pela ciência e tecnologia modernas. Portanto, precisamos de uma ciência que seja dissociada dos dois polos: do circuito autônomo do capital e, também, da sabedoria tradicional, uma ciência que poderia finalmente se sustentar por si mesma. O que isso significa é que não há retorno a um sentimento autêntico de nossa unidade com a natureza: a única maneira de enfrentar os desafios ecológicos é aceitar completamente a desnaturalização radical da natureza.


[1] Artigo originalmente publicado em The philosophical saloon, em 20/01/2020.

[2] Kohei Saito, Karl Marx’s Ecosocialism, Nova York: Monthly Review Press 2017. Tradução: O ecossocialismo de Karl Marx, Boitempo, 2021.

[3] Um exemplo de uma ruptura nas sociedades pré-modernas é apresentado pelo caso da Islândia: ela estava totalmente coberta por florestas quando os noruegueses chegaram lá no século XIII, mas logo depois foi totalmente desmatada.

[4] Citado em https://www.theguardian.com/science/2020/jan/13/scientists-use-stem-cells-from-frogs-to-build-first-living-robots.

[5] Jacques Lacan, Ecrits, Nova York: Norton 2997, p. 738