Não é só a economia capitalista realmente existente que entra em crise, que passa por quedas, que eram periódicas no passado, mas que agora se transformaram numa crise estrutural continua, persistente. A própria economia vulgar também sofre crises constantes, mas não só porque os erros são possíveis, mas porque ela se desvia dos objetivos estritamente científicos, mesmo vulgares, para servir ao capital.
Se caía e ainda cai em meras apologias do existente, tal como a economia de equilíbrio geral, após-II Guerra Mundial, a própria “teoria econômica” se tornou mercadoria. Ao ser vendida na praça, perdeu completamente a seriedade. A corrupção se tornou inerente à sua prática. Os economistas mais afamados atuais são justamente aqueles que manipulam conceitos e números para falar disfarçadamente em nome dos interesses do grande capital e, particularmente, do capital financeiro. Um artigo recente do economista norte-americano, dissidente do mainstream, James Galbraith mostra isso com bastante clareza.
Eis porque a economia convencional errou sobre a inflação
Autor: James Galbraith [1] – Publicado em 15/11/2023 – Project Syndicate
Em seu boletim de 7 de novembro de 2023 publicado no New York Times, o economista Paul Krugman faz uma pergunta boa, embora tardia: por que tantos economistas erraram sobre as perspectivas de inflação?
Afinal, o quase consenso entre os economistas tradicionais nos últimos anos era de que a inflação persistiria – e que até aceleraria – e que isso justificaria aumentos substanciais das taxas de juros pelo Federal Reserve (Fed, o banco central americano). No entanto, a quase-inflação de 2021-22 se mostrou transitória.
Krugman coloca sua pergunta com diplomacia impecável, professando “respeito” por três autores de um artigo de setembro de 2022 publicado pela Brookings Institution. Essa publicação foi promovida por Jason Furman, da Universidade Harvard.
Esse documento projetava que seriam necessários pelo menos dois anos de desemprego em 6,5% para trazer a inflação de volta à meta autoimposta de 2% do Fed. Mas a inflação já havia atingido o pico antes do de que viesse aparecer o artigo mencionado, muito antes que os aumentos de juros do Fed pudessem ter efeitos no sistema econômico.
No ano seguinte, a inflação diminuiu, mesmo com o desemprego permanecendo abaixo de 4%. O “time transitório” do governo Biden, que incluía a secretária do Tesouro dos EUA, Janet L. Yellen, suportou dois anos de escárnio, mas foi correto o tempo todo.
Krugman se concentra, com razão, na falta de lógica de certos “pessimistas” da inflação, que “apresentaram novas justificativas completamente desconexas” para sua afirmação de que a inflação “permaneceria teimosamente alta” muito depois que os pacotes de estímulo fiscal de 2021 tivessem sido absorvidos. Como esses pessimistas encontraram muito pouca objeção no mainstream, o seu discurso de desgraça continuou a dominar o discurso até 2023.
Krugman evita nomear Lawrence H. Summers, cujas “justificativas” para o pessimismo inflacionário incluíam “poupanças” supostamente excessivas, “compras de dívida” do Fed e previsões de “taxas de juros essencialmente zeradas” e “preços de ações e imóveis em alta”. No entanto, além de suas preocupações com estímulos fiscais, tudo isso era bobagem. Como apontei na época, a poupança não pode causar inflação; ademais, uma previsão técnica não tem poder causal.
Adotando a persona de um comentador ingênuo, Krugman sugere então que era “quase como se os economistas estivessem procurando razões para serem pessimistas”. Dando um exemplo de polidez, ele se recusa a dizer quais seriam essas razões.
Mas duas delas sempre se destacaram. A primeira foi o medo: se os trabalhadores americanos mantivessem uma almofada financeira dos pacotes de ajuda COVID-19, eles poderiam ser “mais difíceis de controlar”. A segunda razão dizia respeito ao poder dos EUA no mundo: juros altos tendem a sustentar o dólar internacionalmente.
Desde então, várias autoridades do Fed reconheceram os dois motivos muitas vezes. Por exemplo, uma obsessão com salários permeia todos os discursos do presidente do Fed, Jerome Powell. Ele declarou abertamente seu compromisso com a manutenção de um dólar forte. Não é surpresa que os economistas tradicionais endossam – na verdade, de um modo precário – os mesmos argumentos.
Mas eu também me mantive educado, porque omiti uma terceira possibilidade: a de que alguns economistas tradicionais possam pedir altas taxas de juros para agradar os banqueiros, que desfrutam de maiores margens de lucro quando as taxas estão altas (especialmente agora que o Fed paga juros sobre as reservas bancárias diretamente).
Uma posição pública forte sobre o assunto poderia gerar altos honorários em palestras, contratos de consultoria ou um caminho para altos cargos públicos. Como Krugman conclui: “Eu gostaria de ver alguma reflexão difícil sobre como muitos dos meus colegas erraram tanto nessa história e talvez até um pouco de introspecção sobre suas motivações”.
Seria bom, mas não vamos prender a respiração. Em vez disso, vamos a uma questão maior. Krugman observa que todos os economistas que ele menciona “fazem parte do mainstream da profissão de economista”. Ele se refere a isso como se fosse um elogio; no entanto, como diz Hamlet, “existe atrito”. Considere a frequência com que os economistas tradicionais erram – não apenas pequenas coisas, mas muito grandes.
Lembram-se do seu famoso fracasso em prever a crise financeira de 2007-09, ou da lamentavelmente desavisada viragem para a austeridade em 2010? E o efeito previsivelmente perverso das sanções à Rússia? O diagnóstico equivocado da inflação em 2021-22 foi apenas o mais recente episódio de uma longa série de fracassos.
A pergunta que devemos fazer, então, é se há algo de errado com a economia convencional. Os economistas mainstream talvez devam reexaminar suas crenças centrais. Ou melhor, talvez seja preciso o advento de um novo “mainstream”, algo completamente novo.
Krugman observa que “uma vertente de discussão envolvia fazer certos paralelos com a inflação dos anos 1970”. Mas isso só aumenta o problema. A verdadeira questão é que a maioria dos principais economistas mainstream de hoje foi treinada na década de 1970. Em consequência, a sua visão de mundo – não apenas sobre os fatos, mas na conformação da teoria – foi fixada naquela época. Em questões macroeconômicas, como inflação, as influências da teoria do equilíbrio geral, trade-offs inflação-desemprego e monetarismo permanecem fortes.
Os legados de Kenneth Arrow, Paul Samuelson, Robert Solow e Milton Friedman continuam vivos.
O projeto dessa geração anterior era em parte científico, em parte político. Como “cientistas sociais”, eles acreditavam no poder da matemática, que tomavam emprestado da mecânica celeste dos séculos anteriores.
Politicamente, procuraram defender o capitalismo contra o desafio soviético durante a Guerra Fria. Ao unir esses objetivos, eles moldaram a camisa de força de modelos matemático orientados para representar o mercado. Os economistas mainstream de hoje foram criados assim e, agora, eles não podem escapar. As crianças prodígios (Wunderkinder) de ontem – incluindo Summers e Krugman – são os velhos cansados de hoje.
Notavelmente, a reflexão de Krugman sobre a desinflação não faz menção aos economistas que não fizeram diagnósticos errados sobre a inflação, incluindo Isabella M. Weber, da Universidade de Massachusetts Amherst, e L. Randall Wray e Yeva Nersisyan, do Instituto Levy. Eles previram corretamente a desinflação em março de 2022.
Mas, os economistas com ideias melhores nunca recebem citações, nunca são chamados por seu nome. Muito ainda recebem ofertas de emprego dos chamados departamentos superiores, principalmente porque muitos membros da velha guarda querem preservar os monopólios acadêmicos, políticos e de mídia que detêm desde a década de 1970.
Isso significa expurgar novas ideias e menosprezar as pessoas que as promovem. Ao oferecer uma crítica tão educada e gentil a seus “colegas” após seu último fracasso, Krugman está sendo diplomático, está promovendo como sempre uma “ação entre amigos”.
[1] James K. Galbraith, professor de Relações Governamentais e Empresariais na Universidade do Texas em Austin. ´Foi economista do Comitê Bancário da Câmara e ex-diretor executivo do Comitê Econômico Conjunto do Congresso.

Você precisa fazer login para comentar.