A análise freudiana do “ego”; o jogo do “eu” de Lacan

Autor: Pierre Fougeyrollas

Entre 1954 e 1955, Lacan reivindicou ter certa erudição filosófica diante de uma plateia de analistas pouco conhecedores dessa área. Com exceção de elementos clericais inspirados num anti-materialismo extremo. Explicou a ela que a concepção freudiana do ego englobava uma herança que antecedera a descoberta da psicanálise. Enfatizou, ademais, as especulações sobre um envelhecimento do freudismo como justificativa para desenvolver a sua teoria regressiva do sujeito, no sentido filosófico do termo.

Nessa perspectiva, postulou: “A obra metapsicológica de Freud depois de 1920 foi mal lida, foi, ademais, interpretada de forma delirante pela primeira e pela segunda geração depois de Freud – por pessoas insuficientes preparadas“. Pode-se supor, diante dessa consideração, que o autor esteja dando continuidade à sua crítica de um freudismo achatado e americanizado que esteve no centro de seu Discurso de Roma. Mas, não! Ao fim e ao cabo, é o próprio Freud que ele ataca.

Depois de evocar a concepção das três instâncias da personalidade, entre o id, o ego e o superego, admitiu que Freud introduziu essas novas noções em razão de um “ponto de inflexão, por causa de uma crise concreta“. “Para dizer a verdade, esse novo ‘eu’, com o qual se deve dialogar, recusou-se, depois de um bom tempo, a responder.”

Estamos, de fato, no centro da problemática freudiana, mas também nos encontramos no meio da operação mistificadora de Lacan. De fato, Freud, tendo descoberto o alcance do narcisismo, reorganizou, a partir de 1914, suas concepções sobre o psiquismo e a personalidade. Doravante, o tríptico inconsciente/pré-consciente/consciência apenas define as características do psiquismo ou, se preferirmos, da vida mental. Eis que um outro tríptico se tornou necessário para expressar o funcionamento da personalidade – e este, por si só, se põe verazmente como uma nova tópica, a saber, o id, o ego e o superego.

Aí reside, efetivamente, a problemática de Freud. Pois o princípio do prazer, que parecia explicar satisfatoriamente a vida do inconsciente, não se afigurava mais suficiente para dar conta do funcionamento do ego nas garras das pulsões do id e das normas internalizadas do superego. Era preciso, portanto, ir “além do princípio do prazer”. Dois caminhos que se abriram, então, para a pesquisa psicanalítica.

O primeiro caminho consistia em estudar a formação e o desenvolvimento da personalidade de um modo materialista e dialético.   Eis que esse processo se dá na interação entre a natureza, que está imediatamente presente nas pulsões do id, e a sociedade, que se manifesta no superego, sob o peso específico das normas sociais. Nessa perspectiva, os determinantes biológicos e sociais deviam ser considerados em relação à história do indivíduo e em relação à história coletiva abrangente de tudo o que o cerca na sociedade.

O segundo caminho residia na consideração de duas forças fundamentais e permanentes que competiriam pelo destino dos indivíduos e das coletividades: de um lado, o Eros ou o instinto de vida, que tenderia à fusão dos vários componentes da personalidade, assim como das várias personalidades entre si; de outro, a pulsão ou instinto de morte que representaria a pressão do inorgânico sobre o orgânico, que resultaria no automatismo da repetição e que condenaria os indivíduos e as sociedades a impasses ou contradições intransponíveis.

A habilidade – ou mesmo uma certa insuficiência intelectual – levaram Freud a não escolher entre esses dois caminhos. Conduziu as pesquisas terapêuticas de acordo com o primeiro, enquanto se entregava a aventuras especulativas na esteira do segundo. Lacan, por sua vez, optou pelo segundo caminho em exclusivo, afirmando que se encontra aí o ápice da trajetória profissional e intelectual de Freud.

Sob a expressão abusiva do “retorno a Freud”, ele conduz, então, os seus discípulos a um retorno ao velho idealismo do sujeito transcendental. Um retorno ao qual o fundador da psicanálise nunca deu seu aval e, muito menos, apresentou a sua adesão, mesmo em seus exercícios mais especulativos.

Não há nada particularmente censurável que Lacan tenha sido fiel ao espiritualismo de sua juventude, passando depois a flertar com o surrealismo após se encontrar com o freudismo. O que queremos denunciar, por outro lado – vigorosamente, aliás –, é sua exorbitante pretensão de culpar um suposto Freud incompreendido, desconhecido e quase esotérico, pela problemática inteiramente especulativa do sujeito transcendental, tal como ele se desenvolveu de Descartes a Kant e de Kant a Husserl e, a partir dele, aos pântanos heideggerianos.

Jean Hyppolite, que ocasionalmente participava do famoso seminário, certa vez declarou: “Há uma certa grandeza no materialismo de Freud“. Ao que Lacan retrucou peremptoriamente: “As platitudes também têm sua grandeza. Não acho que Freud esteja nesse nível.”

Dito isso, acrescentou, dirigindo-se a Hyppolite que lhe pedia que reconhecesse um certo racionalismo característico do pensamento freudiano:

“A sua antítese – vamos chamá-la assim – é precisamente a pulsão de morte. Trata-se de um passo decisivo na apreensão da realidade, uma realidade que está muito além do que chamamos de princípio da realidade.”

Assim, o materialismo inicial, com o qual Freud nunca rompeu completamente, é descartado como uma “platitude”. E em vez da atitude racionalista do fundador da psicanálise, ele prefere a especulação sobre a pulsão de morte que Freud apresentara com muitas reservas e precauções, e que Lacan, com entusiasmo, tornou o seu pão com manteiga. Para além da questão da fidelidade ou infidelidade de Lacan ao pensamento freudiano, mais reveladora do que essencial, há o problema crucial do futuro da psicanálise.

As descobertas de Freud foram feitas sem romper com as pesquisas biológicas e sociológicas do século XX. Em suas cartas a Fliess, ele indicou que a psicanálise buscava curar indivíduos que não pareciam ser capazes de se tratarem no momento, efetivamente, com outros meios; deixou, assim, a porta aberta para novos avanços na neurofisiologia e na quimioterapia.

Em Totem e tabu e em Moisés e o monoteísmo, tentou, com sucesso variável, articular os resultados teóricos da psicanálise com o que supunha serem as conquistas da antropologia, sociologia e história. Em suma, o problema que investigava permanecia em aberto. Continuando seu trabalho nesse sentido, a psicanálise ainda podia afirmar ser capaz de conduzir uma terapêutica, desenvolvendo, ao mesmo tempo, a teoria da formação e do desenvolvimento da personalidade.

Por outro lado, o freudianismo, revisto e corrigido por Lacan, privilegia a visão de mundo (Weltanschauung) tardia à qual Freud havia dado apenas um valor hipotético. Esse “revisionismo” se desenvolveu então, necessariamente, contra a pesquisa estritamente psicológica. E isso Lacan não deixou de dizer, com bastante frequência:

A psicanálise tem nesse sentido o valor de uma revolução copernicana. Toda a relação do homem consigo mesmo muda de perspectiva com a descoberta freudiana; ora, é isso que está em jogo na prática, tal como fazemos todos os dias.”

“É por isso que, no passado, me ouviram rejeitar nos termos mais categóricos a tentativa de refundir a psicanálise com a psicologia geral. A ideia de um desenvolvimento individual unilinear, pré-estabelecido, compreendendo etapas que aparecem cada vez de acordo com uma dada tipicidade, é pura e simplesmente o abandono, a evasão, a camuflagem, a rigor a negação, ou mesmo a repressão, do que é essencial na análise”.

O acúmulo de termos de recusa confirma aqui o caráter dogmático da posição de Lacan. A sua locução mostra o lugar central em que se desenvolveu o anti-psicologismo característico de sua sistematização ideológica.

A rejeição do desenvolvimento da personalidade segundo estágios tipificáveis está ligada à posição da imobilidade estruturalista; na verdade, mais profundamente, esta última está vinculada a uma metafísica do sujeito transcendental, originário, impessoal, que é apenas o resíduo da teologia cristã medieval dentro do idealismo da filosofia ocidental moderna. Nessas circunstâncias, pode-se perguntar que significado terapêutico tal doutrina ainda pode ter ou tem de fato.

A atração por Lacan, partilhada por um certo número de intelectuais parisienses, mas também de outros lugares, vem da transfiguração verbal de sua ansiedade, algo mórbida, em uma angústia justificada de forma metapsicológica.

Permitiu-lhes que renunciassem as duras preocupações terapêuticas e as dolorosas dificuldades da investigação psicológica, transportando tudo, desde o início, para o reino da especulação. Ofereceu-lhes, assim, a possibilidade de superar as suas fantasias por meio da consideração estimulante de uma “ordem simbólica”, a qual seria capaz de explicar todas as coisas em virtude da “lei do significante”.

Em seus escritos e em seus discursos, Lacan dá um espaço muito considerável aos fenômenos linguísticos. Ora, isso nos leva a ficar bem surpreendidos, se já não soubéssemos que a ideologia estruturalista reside justamente na redução de toda realidade às estruturas da linguagem ou, até mesmo, às palavras constituintes.

Note-se simplesmente que, na obra de Lévi-Strauss, o objetivo declarado da pesquisa continua sendo o conhecimento do social, mesmo se as tendências ao formalismo façam-no perdê-lo de vista, em muitos momentos. Por outro lado, em Lacan, o objeto de investigação psicanalítica – a saber, os processos psíquicos e o devir da personalidade – é radicalmente negado, em nome de uma suposta “descoberta freudiana”, de uma “suposta reversão psicanalítica copernicana”. Ora, o mestre do seminário teria sido o primeiro a detectar essa “suposta reversão”!

Precisamos ouvi-lo sobre isso:

“Toda a psicanálise se baseia justamente no fato de que não é uma questão de lógica extrair algo válido do imediato do discurso humano. É por trás desse discurso, que tem seu sentido, que buscamos, em outro sentido, o seu significado. Ora, trata-se justamente da função simbólica que se manifesta por meio dele.

Dito isso, logo acrescenta:  

“O que isso significa é que o ser humano não é senhor dessa linguagem primordial e primitiva. Ele foi expulso, está noivo, está preso em sua engrenagem.”

Que os seres humanos não sejam senhores da natureza circundante e de sua própria condição, que é de origem animal, é o que ensinava o materialismo histórico, meio século antes da descoberta da psicanálise. Ao mesmo tempo, porém, ele mostrou que, por meio do trabalho social, esse ser foi gradualmente se engendrando como um ser especificamente humano, e que, por meio da luta de classes, tentou pôr fim à exploração do trabalho e ao antagonismo alienante entre produção e propriedade privada.

Em conexão com o tratamento das neuroses, Freud descobriu que sob o significado aparente ou a falta de significado aparente de nossos comportamentos, especialmente nossos atos fracassados, nossos sonhos, nossos espiritismos, mas também, nossos sintomas neuróticos, havia um significado oculto, dependente do funcionamento de nosso inconsciente.

 Mas esse significado oculto não é inerentemente misterioso. Eis que provém da interação dialética entre os impulsos primários de nossa animalidade e as pressões sociais, que vão se internalizando ao longo do tempo vivido. Há, portanto, um campo de experiência, revelado, em particular, pelo tratamento analítico sobre o qual devemos buscar a realidade constitutiva dos processos de nossa formação e de nosso devir.

Assim, a única questão pendente entre a psicanálise e o marxismo – ainda que seja uma questão importante – é a relação entre a história individual e a história coletiva e social dos humanos. O fato é que o método freudiano de investigação dos fenômenos psíquicos, apesar de suas limitações e inadequações, não apresenta um obstáculo absoluto ao que se poderia chamar de “diálogo epistemológico” com o marxismo.

Com Lacan não estamos mais dentro dessa perspectiva.[1] Na verdade, somos postos no polo oposto. Pois, essa referência a uma “linguagem primordial e primitiva” coloca tudo fora de qualquer campo de experiência, exceto, obviamente, em um modo místico de experiência.

Misticismo, mistificação ou automistificação, esses são os termos que vêm à mente para caracterizar o lacanismo, mesmo que se deseje evitar qualquer desejo de denegrir essa corrente de pensamento psicanalítico. Pois, o principal truque desse autor consiste em afirmar que aquilo que outros chamam de fenômenos psíquicos são, na verdade, fantasias, reduções fantasmáticas que formam nossa imaginação. Eis que existem em outro lugar, ou melhor, por meio de outro lugar, ou seja, por meio de uma “ordem simbólica” anterior ao surgimento do ser humano e regulador do verdadeiro pensamento

Se o ego, no sentido freudiano, não é o verdadeiro centro da personalidade, aquilo que está entre o id e o superego, se a dialética da natureza e da cultura não é o que nos atravessa e nos molda, através de etapas da vida, então como podemos entender o futuro dos indivíduos?

Lacan responde que é preciso chegar à descoberta do “eu” que está enigmaticamente em ação no ego, como também no id e no superego, e que constituem como três instâncias em sua realidade, para além das aparências psicológicas do imaginário. Seria, portanto, um jogo do eu, um jogo do poder impessoal da função simbólica que nos tornaria senhores ou escravos, dependendo de chegamos ou não a compreendê-lo.  

Ora! Se ao invés de evocar, como acabamos de fazer, o platonismo e o espinosismo, evocássemos aqui a tradição cristã medieval do Deus oculto, cujo reconhecimento seria a fonte de todos os bens espirituais?

Curiosamente, no final do Seminário de 1954-1955, Lacan discutiu com alguns de seus interlocutores os respectivos significados dos termos como fala, língua, assim como das palavras latinas, gregas, hebraicas e aramaicas como verbum, logos, dabar e memmra.

Os ouvintes, por sua vez, acreditavam que a fala designa um poder constituinte, que se trata de uma forma de evocar Deus, enquanto a linguagem é um conjunto de manifestações circunstanciais dessa palavra primordial. E, de acordo com suas convicções religiosas, eles atribuem mais importância à palavra antiga do que a outra que a sucede. Afinal, esses interlocutores são, em grande parte, discípulos; e eles se lembram bem do Discurso de Roma, no qual o Mestre parecia colocar a fala acima da linguagem.

Aqui está ele, desenvolvendo a posição oposta:

“Detive-me neste verbum para compará-lo nesta ocasião com o uso latino, algo que nos foi suficientemente indicado pelo uso que fez dele Santo Agostinho em De significatione, que comentamos no ano passado. Os senhores devem sentir melhor todas as implicações disso depois da minha última palestra. Sugeri que o verbum pode ter precedido todo o discurso e até mesmo o fiat do Gênesis, como uma espécie de axiomática prévia.

Haveria, portanto, subindo o caminho hierárquico, a linguagem ordinária dos seres humanos, depois a fala e, finalmente, o verbum, isto é, a função simbólica original, em sua onipotência. Essas variações especulativas, que nenhum resultado experimental pode justificar, mostram o caráter metafísico e arcaico do pensamento lacaniano. Embora seu autor se esforce para acobertá-la com a autoridade de Freud, é a Heidegger que ele deve sua interpretação, extremamente irracionalista, da pulsão de morte.

Os problemas da psicopedagogia giram em torno da relação entre o indivíduo e a sociedade, levam aos problemas sociais e políticos maiores de transformação ou destruição da ordem estabelecida. Lacan se recusa a responder a essas questões concretas. Proclama:

“O sujeito descobre através da análise a sua verdade, isto é, o significado que esses dados que lhe são peculiares e que podem ser chamados de sua sorte assumem em seu destino particular.”

“O ser humano nasce com todo tipo de disposição, as quais são extremamente heterogêneas. Mas qualquer que seja o lote fundamental, o lote biológico, o que a análise revela ao sujeito é o seu significado.”

Se esse texto parasse por aí, poderíamos admitir que Lacan vê na psicanálise uma forma de o indivíduo chegar a um acordo com seu “lote biológico” ou, na melhor das hipóteses, conseguir dominá-lo. Por que não? Mas o texto prossegue fazendo a seguinte afirmação:

Esse significado é função de uma determinada palavra, que é e não é a palavra do sujeito – essa palavra ele recebe já pronta, ele é o ponto de passagem’

Tal como se pode entender essa afirmação, ela não se refere ao fato de que o patrimônio cultural molda a formação da personalidade. Não! Aquilo que molda vem a ser um significante primitivo e enigmático cuja influência e existência nenhuma abordagem intelectual pode provar. Ora, é justamente característica do obscurantismo ter mil truques na manga para fugir das exigências, vulgares demais para ele, de apresentar as provas.


[1] Na verdade, os lacanianos vão em geral distorcer o marxismo e, em especial, Marx, para torná-lo compatível com os “ensinamentos” do mestre estruturalista.