Formação e desenvolvimento da personalidade

Autor: Pierre Fougeyrollas[1]

Não existe, segundo Lacan, unidade verdadeira entre os seres humanos

As assim chamadas doenças mentais são, na verdade, doenças da personalidade. Quer se trate de deficiências psíquicas cujas condições orgânicas são conhecidas, de transtornos psicóticos para os quais a medicina revelou certas bases fisiológicas, ou ainda de síndromes neuróticas cuja origem biológica é desconhecida ou presumidamente inexistente, é sempre a personalidade que é afetada, posta em questão e ameaçada em suas funções relacionais – ou até mesmo em sua sobrevivência.

À época da publicação de sua tese de doutorado (1932), Lacan havia reconhecido esse caráter fundamental das doenças mentais. Nesse estudo, ele apresentou um caso de paranoia e de autodestruição. É verdade que acalentava uma certa ideia personalista e espiritualista de “síntese psíquica”, a qual modificou – ou, pelo menos, remodelou – após o seu encontro com o freudismo.

Freud, por outro lado, via o tratamento psicanalítico como uma tentativa de restaurar a integridade da personalidade a partir do seu estado neurótico. Na verdade, para ele, neurótico é aquele indivíduo que, em razão de seu próprio condicionamento biográfico infantil, não conseguiu liquidar o seu complexo de Édipo. A sua libido, por causa disso, refluíra para um estágio arcaico ou, mais fundamentalmente, para o que denominara de narcisismo infantil.

O tratamento psicanalítico tende, assim, à elucidação dos conteúdos do inconsciente, permitindo ao neurótico dar a si mesmo a personalidade que a experiência sexual de sua infância não lhe permitiu adquirir. Psiquicamente falando, oferece-lhe a possibilidade de nascer de novo. Usamos, portanto, o termo “palingenesia” para designar esse significado de experiência analítica.

Todos concordam hoje que o analista não cura seu paciente. É este último quem, em caso de sucesso, se cura de sua neurose ao se apropriar dos conteúdos de seu inconsciente por meio da presença do analista e, a partir de certo momento, por meio do processo de transferência. O sucesso do esforço analítico é a transformação daquele a quem o vocabulário médico comum chama de paciente, em um agente, isto é, em um ator consciente em sua própria vida mental.

Numa linguagem que Freud não utilizou, mas que Sartre ajudou a banalizar, cabe notar que o indivíduo, tendo conseguido libertar-se de sua neurose por meio da cura analítica, transforma-se de objeto em sujeito. Assim, podemos admitir que a questão do sujeito, num sentido limitado e, para dizer a verdade, modesto, coloca-se como tal nesse campo do conhecimento a partir da terapêutica freudiana. O fato é que a noção de sujeito, da qual o próprio Sartre fez vários usos, precisa ser rigorosamente examinada.

Se, como acabamos de fazer, entendermos o indivíduo humano que sente, age e pensa como sujeito, devemos reconhecer também, imediatamente, que não se trata de uma realidade primária.  Trata-se, isso sim, de um produto complexo da dialética real entre a sociedade e natureza; ou seja, da dialética entre um organismo vivo em formação e a sociedade que engloba esse organismo vivo e se impõe a ele. Ao escrever, em 1844, que “o indivíduo, é social”, Marx denunciou, em princípio, as robinsonadas que, tentam em vão reconstruir a sociedade com base no indivíduo como se este fosse uma realidade primária como tal.

O indivíduo humano não nasce sujeito. Ele se torna, tende a se tornar, o sujeito de sua consciência e de seu inconsciente por meio do processo educativo que acontece por meio e no processo de socialização. Por outro lado, as várias sociedades que existiram ao longo do desenvolvimento histórico tiveram concepções muito diferentes sobre o grau de realidade do indivíduo como tal. Foi somente com o advento do modo de produção capitalista que a realidade da individuação foi considerada essencial.

De fato, é o caráter competitivo desse modo de produção que deu origem à ideologia individualista segundo a qual, de Descartes a Sartre, o indivíduo ou, mais precisamente, a sua consciência é tida como uma realidade irredutível à realidade objetiva da natureza e da sociedade. A especulação filosófica sobre o tema, a que Lacan constantemente se refere, é uma expressão ideológica do papel da individualidade no modo de produção capitalista. Fora essa observação, banalizada pelo marxismo, nada se pode entender da questão do sujeito.

Freud propôs, na segunda tópica, a hipótese das três instâncias da personalidade (Es, Ich, Über-lch), não, entretanto, com preocupações propriamente filosóficas – pelo menos neste ponto preciso.[2] Procura resolver a questão da formação e do desenvolvimento da personalidade com base a) nos impulsos que constituem a herança animal do indivíduo e b) nas pressões sociais que esse indivíduo internaliza à medida que é socializado por meio e em sua educação, ou seja, em seu processo de formação.

O Es (ou seja, o id) é dado pela natureza; consiste na animalidade que cada um de nós carrega dentro si mesmo e que constitui o nosso ser. Sobre o Ich (ego, eu), vejamos o que Freud nos diz sobre ele:

É fácil perceber que o ego é uma parte do id que sofreu modificações internas por influência direta do mundo externo, as quais lhe advieram por meio da percepção e da consciência. Ele representa, em certa medida, um prolongamento da diferenciação superficial. Ele também se esforça para estender a influência do mundo externo sobre o id, assim como sobre as suas implicações, substituindo o princípio do prazer pelo princípio da realidade. Eis que o princípio do prazer, por si só, afirma seu poder no id. A percepção é para o “ego” o que o instinto ou impulso instintivo é para o “eu“.

Quanto ao Über-lch (supereu, superego), ele é produto de uma diferenciação que se dá no interior do ego e que fixa internamente a presença, no psiquismo individual, das normas socioculturais.

No id, tal como na natureza animal em geral, a psicanálise não pode atuar.  No superego, como ela poderia agir por si mesma? Ora, somente uma revolução que substituísse uma sociedade por outra poderia criar outras formas e outros conteúdos para essa instância da personalidade. Freud, portanto, foi obrigado a concentrar os seus esforços terapêuticos no Ichpara que ele não sucumbisse nem aos impulsos do id nem às pressões inibidoras ou mesmo repressivas do superego.

Freud tinha consciência da precariedade do Ich, do sujeito individual; por isso mesmo, eis o que disse do superego:

Mas do fato de que o ego surge das primeiras fixações do Id, ou seja, do complexo de Édipo, isso tem um significado ainda maior para o supereu. É, como já mostramos, graças a esse fato que ele entra em contato com as aquisições filogenéticas do id e constitui a reencarnação de todos os antigos “eus” que deixaram seu rastro e seu depósito no id. Por causa dessa circunstância, o supereu permanece sempre em contato próximo com o Id e, portanto, está muito mais longe da consciência do que o Ego.

É assim que a interação entre a sociedade e a natureza põe e constitui o desenvolvimento dos indivíduos. A obtenção de uma autonomia mínima por parte desses indivíduos implica o reconhecimento objetivo das relações estabelecidas entre o superego e o id; ademais, deve saber que o ego não é capaz de desempenhar um papel decisivo ou mesmo simplesmente efetivo sobre essas duas instâncias.

Com base nessa problemática, os sucessores de Freud só puderam conceber e praticar o tratamento analítico na esperança de fortalecer o ego para que ele pudesse escapar do conflito neurótico. Mas, ao fazê-lo, subestimaram o papel do superego, assim com a sua evolução num período como o atual que está marcado pela aceleração dos processos de decomposição da sociedade capitalista. Ignorando a riqueza da teoria e da experiência freudiana, sob o pretexto de fortalecer o ego, eles passaram a promover a adaptação à sociedade circundante e, consequentemente, ao superego tal como ele está hoje constituído. Trata-se, portanto, de uma forma de adaptação ao declínio, à decadência e à morte – eis aí o que eles põem em prática por meio da clínica.

Rejeitando, ou pelo menos tentando recusar, esse caminho de declínio, Lacan fez do “ego”, assim como da degeneração da psicanálise norte-americana atual numa psicologia do ego, o alvo de seus ataques. Para ele, as três instâncias da personalidade, conforme estabelecidas por Freud, seria agora, talvez, quatro. Em outras palavras, além do id e do superego, seria preciso saber reconhecer o ego e o eu. De um lado, ter-se-ia Ich freudiano, ou seja, o ego, que, para nós, é essencial, mas com o qual Lacan não se preocupa. Este ego, como vimos, é produto da interação histórica entre a natureza e a cultura. Por outro, ter-se-ia o sujeito da “síntese psíquica”, ou seja, o eu como irredutível ao ego.

Se Lacan multiplica as referências ao cogito cartesiano como etapa do caminho que conduz ao sujeito freudiano, é porque introduziu na psicanálise um conjunto de considerações que era estranha a Freud. Foi esse idealismo do sujeito (como pensante e desejante) que levou Lacan a reduzir o inconsciente à função simbólica. Foi essa redução, realizada sob a influência da ideologia estruturalista parasitária da linguística contemporânea, aquele movimento que o trouxe de volta aos caminhos batidos do idealismo filosófico? É difícil discernir. Mas o importante é ver o que resulta em termos de psicanálise quando esta última se adapta a esse molho ideológico.

O “eu” não se distingue claramente do “ego”, isto é, o sujeito vivente e pensante não está separado radicalmente do “ego”. É assim, ao mesmo tempo, experimentado e experimentando, pensado e pensando, apenas porque Lacan define primeiramente três sistemas específicos de funcionamento psíquico: o real, o imaginário e o simbólico. Essa, afinal, é sua principal hipótese de trabalho, da qual a concepção de sujeito é apenas uma consequência lógica.

Essa tripartição, em última análise, provém de uma teoria filosófica do conhecimento, aquela que culminou na fenomenologia transcendental de Husserl. Para tais autores, há, por um lado, o real – ou seja, aquilo que é o que é –, mas, por outro, há os símbolos que se referem a algo diferente do que são eles próprios. Entre esses símbolos, há as imagens que aderem ao que simbolizam por meio de alguma semelhança; há, ademais, os signos e estes não aderem de forma alguma à realidade a que se referem. Assim, a função simbólica de Husserl engloba imagens e signos, entre os quais se encontram as palavras e os símbolos matemáticos.

É interessante saber que Brentano está na origem dessa concepção do   simbolismo adotada por Husserl e que está próxima da ideia freudiana da função simbólica. Nessa perspectiva, o imaginário e o conceitual resultam do mesmo processo em virtude do qual a consciência extrai certos elementos do real para transformá-los em meios (ou seja, em mídias) referentes a outros elementos desse mesmo real.

No entanto, o simbolismo da imagem e do signo permanece sem explicação no interior da fenomenologia transcendental. São produtos da visada da consciência original, mas não está claro por que ou como ela usa a analogia ou sua falta para simbolizar uma coisa por outra coisa. Todo esse mistério é dissipado se partirmos da atividade fundamental dos ser vivos. O animal, de fato, reage a um estímulo segundo, associado a um estímulo primeiro, de uma maneira próxima à sua reação original.[3]  Foi daí, aliás, que Pavlov derivou sua teoria do sinal, enquanto estímulo associado, assim como a teoria do reflexo condicionado.  

A esse materialismo mecanicista é preciso acrescentar o conjunto de fatos que dizem respeito à prática humana como prática social: a produção de bens de consumo como novos objetos e, mais ainda, a produção de meios de produção para produzir os bens de consumo se manifesta, na experiência humana, por meio de símbolos. Manifesta-se, portanto, por meio do aparecimento de equivalentes aos elementos do real; ademais, por meio de um processo de abstração indefinida, aparecem equivalentes de equivalentes etc.

O simbolismo é expressão do trabalho social humano como um processo conjunto de produção, por um lado, de bens materiais, de meios de produção, enfim, de coisas, de objetos propriamente humanos, e, por outro lado, de equivalentes representativos dessas coisas, desses objetos na forma de imagens e signos. Aquilo que a fenomenologia de Husserl apresentou como opaco para a consciência que visa o real, o marxismo tinha, antes dela, apreendido no contexto da autogeração do ser humano como tal.

Ora, a intervenção de Lacan nesse campo fica longe e fora do marxismo e até mesmo da fenomenologia transcendental. Constitui-se numa esquematização extraída da linguística estrutural, na medida em que esta, preocupada exclusivamente com os sistemas fonológicos, afasta-se do conteúdo afetivo das imagens para reter apenas as combinações áudio-intelectuais entre fonemas tidos como elementos constitutivos dos significantes, ou seja, os átomos linguísticos. Assim, Lacan chega à tripla formada pelo real, pelo imaginário e pelo simbólico.

Para ele, o real não é nem o biológico, nem o social, nem o psíquico, nem o psicossocial; eis que é aquilo que é apreendido pela interação entre os outros dois outros termos dessa tripla, ou seja, o imaginário e o simbólico. O imaginário vem a ser o falso real, isto é, aquilo que a pulsão pensa visar, quando na verdade está mirando outra coisa: trata-se do fantasma cuja queda engendra as psiconeuroses como efeitos. Por fim, o simbólico vem a ser o real do real [ou seja, a realidade como tal]; assim, ele aparece como a verdade do imaginário. O simbólico é o jogo de significantes; consiste, pois, no jogo de palavras que comandam as figuras do imaginário, permitindo que a realidade seja detectada.

Para entender essa sistemática, devemos assumir que a atividade combinatória da mente, tal como se observa em Lévi-Strauss, vem a ser a fonte de todas as coisas. O que torna essa combinatória opaca para si mesma é o imaginário, o fantasmático. O que a torna translúcida é o simbólico; assim, a função simbólica é o que se apreende na experiência analítica. Desse ponto de vista, a ideologia é imaginária, fantástica, enquanto a ciência é simbólica, pois o simbólico é autoconsciente.

Por que então, para o Dr. Lacan, existe o real, o simbólico e o imaginário? Por que surge tal separação, assim como um esforço para superá-la [num todo indicado pelo nó borromeano]? É precisamente isso que ele e os seus seguidores são incapazes de explicar, já que colocaram a combinatória intelectual, da qual a linguagem é a manifestação imediata, na origem de todas as coisas, especialmente das coisas humanas. O velho idealismo, a velha ideologia metafísica ocidental está aí tal como um verme que corrói inexoravelmente, por dentro, toda essa construção intelectual.  Assim, as suas próprias pretensões simbólicas ficam realmente reduzidas a uma fantasmagoria obscurantista, da qual é a sua verdade, uma verdade sócio-histórica contra a qual nada pode fazer.

Eis aí as fantasias sócio-históricas, que consideramos estarem baseadas na experiência coletiva e individual de toda a humanidade: o falo, que uns correm o risco de perder e que outros têm um desejo irresistível de possuir. Trata-se este, segundo Lacan, de um símbolo fundamental, de um significante dos significantes; assim, os transtornos de personalidade, isto é, os distúrbios bio-sócio-psíquicos, ficam reduzidos às ocultações inerentes à linguagem. Na verdade, essa teorização metafísica da função simbólica é uma regressão cultural e isso, note-se, o marxismo nos permite compreender. Fica aquém do que já elucidou a fenomenologia de Husserl, assim como, também, fica atrás da psicologia genética de Wallon e Piaget. Trata-se, sobretudo, de uma ruptura completa com as tentativas freudianas de apreender as produções substitutas da sexualidade inconsciente.

A psicanálise, tal como Lacan gosta de repetir, não é psicologia. O que ele quer dizer com isso? Qual o significado dessa expressão?

Se, como pensamos, a psicanálise é, primeiro, uma tentativa de apreender objetivamente o devir psicossexual gerador da personalidade humana; e, depois, um propósito de intervir nesse devir por meio da passagem do conteúdo do inconsciente para a consciência. E nisso, ela vai além da psicologia gestaltista, comportamentalista, fenomenológica, genética etc. Desse modo, a psicanálise, e somente a psicanálise, é aquele saber que tem conseguido estabelecer a especificidade dos processos psíquicos na relação do inconsciente com a consciência. É por isso que acreditamos que a reorganização e reorganização das ciências da vida mental e da personalidade será baseada na problemática descoberta por Freud.

Mas Lacan, ao vituperar não só contra o psicologismo, mas também contra a psicologia e o psicológico, afirma algo bem diferente. Ele pretende orientar a psicanálise na direção de uma ciência do sujeito. Por meio dessa psicanálise, ele busca realizar o projeto de apreender e elucidar o sujeito que a filosofia ocidental concebeu sem que pudesse realizá-lo. Ora, ele não disse o que segue?

A relação do sujeito com o significante é o ponto de referência posto por nós em primeiro plano junto com o propósito de fazer uma retificação geral da teoria analítica. Essa relação é primeira e constitutiva no estabelecimento da experiência analítica quanto é primeira e constitutiva na função radical do inconsciente.

Para nós, essa afirmação tem um mérito: Lacan não se esconde atrás de Freud. Ele ousa falar de uma “retificação geral da teoria analítica”. Por meio dela, os lacanianos ficam imediatamente advertidos: longe de serem fiéis continuadores do freudismo, eles são revisionistas. E o significado dessa constatação não pode ser exagerado.

Lacan faz muito uso da famosa fórmula de Freud: Wo Es war, soll Ich werden (devo me tornar Eu, onde estava o Isso). Mas a sua interpretação desse adágio está muito longe do que ensinara Freud.

Para o fundador da psicanálise, trata-se de uma questão de domínio que o indivíduo humano deve adquirir em relação à natureza animal presente em seu interior. Nesse ponto, ele é bastante otimista, pois acredita que, por meio da análise, uma organização consciente da personalidade será capaz de se estabelecer, por assim dizer, em um lugar originalmente ocupado pelo poder cego e incontrolável dos instintos.

Para nós, o propósito contido no adágio freudiano não é alcançável no âmbito da sociedade capitalista. Pois, enquanto persistirem as relações sociais baseadas na exploração do ser humano pelo ser humano, o supereu – que, aliás, não é mencionado na fórmula desse aforismo – difundirá na personalidade uma opacidade que o ego não será capaz de superar em seu empreendimento de domesticação do id. A libertação do indivíduo é inseparável, acreditamos, do movimento prático de libertação da sociedade por meio da revolução proletária. Os limites da psicanálise, portanto, parecem-nos estar inscritos justamente onde se articulam o devir psicossexual e sócio-histórico.

Para Lacan, o sujeito, o eu, emerge como enigmático porque ele decorre da função simbólica em relação ao vivo, ao corpo desse ser humano vivo. A experiência analítica é, portanto, o processo privilegiado pelo qual o “eu” se descobre no centro de um simbolismo cujo jogo acontece no inconsciente. Assim, as conquistas freudianas são substituídas por uma concepção meta-psicanalítica que estende os exercícios de Kant sobre o “eu” transcendental. E o faz por meio de um renascimento da emergência do que ex-sistente de Heidegger.

Por meio da filosofia, segundo Heidegger, algo (sempre a mesmo, diga-se de passagem) é dito por meio do que foi dito. Segundo Lacan, por meio da vida mental, algo é dito (inconscientemente) por meio do que é dito (conscientemente). Nessa perspectiva, Lacan nos convida a nos afastarmos do sentido para descobrir o signo, para, enfim, reconhecermos o sujeito como lugar de significantes.

Tal concepção só é inteligível quando percebemos que implica na rejeição da dialética materialista da sociedade e da natureza como processo gerador da personalidade. Havendo assumido essa recusa, Lacan não consegue mais entender a historicidade do processo repressivo; não consegue enxergar os conteúdos do inconsciente que foram introjetados pelas pressões sociais, as quais advieram das normas da cultura como sistema repressivo. Ele então se volta para uma repressão primordial (Urverdrangung) a partir da qual as outras repressões, ou seja, aquelas a que acabamos de nos referir, seriam possíveis.

Num programa de televisão, esse autor brinca com as ideias de Freud para expor o seu irracionalismo exacerbado: “Freud não disse que a coerção (refoulement[4]) provém da repressão (répression)… Digamos que, à medida que avançava, ele se inclinava mais e mais para a ideia de que a repressão é primária. Mas se a repressão é primária, como ela seria inteligível? Por que o simbolismo sente a necessidade de se esconder em tal processo? Ora, isso nos leva de volta aos velhos debates teológicos sobre porque Deus criou o mundo e porque o pecado, o mal, o sofrimento e o erro foram introduzidos no mundo.

Os frutos dessa fantasmagoria clerical podem ser melhor julgados por aquilo que Lacan diz sobre a família e a sociedade:

Há razões para voltar à provação, a começar pelo fato de que a coerção (refoulement) provém da repressão (répression). Por que a família, a própria sociedade, enquanto criações, não seriam construídas a partir da repressão? Nada menos do que o seguinte: talvez seja porque o inconsciente ex-siste; eis que ele é motivado pela estrutura ou pela linguagem.

Aqui chegamos: policiais de todas as categorias, agentes repressivos de todos os tipos, prosperem e durmam em paz! O bom doutor Lacan fez como entendêssemos isso muito bem: se você bate, se tortura e se mata o outro, isso ocorre porque decorre de uma repressão originária, nascida ela própria da lei do simbólico. Tudo isso é inevitável! Que pena, meus senhores!

Uma das principais ideias de Freud era a de que aquilo que não podia ser lembrado estava fadado a ser repetido por meio de comportamentos substitutos. A repetição, como retorno do reprimido, era, portanto, o que precisava ser quebrado para libertar as potencialidades criativas do ser humano. O advento do Ich, como organização psicossocial relativamente autônoma da personalidade, implicava, assim, numa ruptura com o automatismo da repetição, ou seja, com essa presença pesada e escravizante do inorgânico no orgânico, da morte no coração da vida.

Em Lacan, nada resta dessa esperança socialmente contestatória da psicanálise original. O advento do sujeito está no reconhecimento de um discurso cujo simbolismo fálico assegura seu funcionamento na repetição e por meio da repetição. O sujeito só se torna tal descobrindo-se como “ser-para-morte” e repetindo isso para si mesmo. Depois de Heidegger e, em sequência, depois de Lacan, “irmãos, devemos morrer!”. E esse é o grito das comunidades monásticas.

Não basta dizer, agora, para tomar emprestada outra referência, que se está fazendo “muito barulho sobre nada!”


[1] Professor emérito de sociologia da Universidade de Paris VII. Autor de L’obscurantisme contemporain – Lacan, Lévy-Strauss, Althusser. Spag-Papírus, 1980. É também autor de La revolution freudianne, Denoet, 1970.

[2] Freud, Sigmund – Essais de psychoanalyse. As preocupações filosóficas presentes no livro dizem respeito essencialmente aos instintos de vida e aos instintos de morte, algo que aqui discutiremos mais adiante.

[3] N. T.: Um cachorro, por exemplo, reage à presença da carne ou do barulho da vasilha que sempre contém a carne exatamente do mesmo modo, pela salivação.

[4] N. T.: Mecanismo inconsciente pelo qual recusamos o acesso à consciência de um desejo inconciliável com outras demandas (em particular, as do superego).