O problema da sexualidade: de Freud à Lacan

Autor: Pierre Fougeyrollas[1]

Antes de tratar de forma mais precisa e mais aprofundada a questão do sujeito, peça central do que Lacan chama de seu sistema, é necessário examinar com certa atenção sua teoria da sexualidade. Ora, essa teoria é resultado direto da interpretação linguística do inconsciente freudiano, algo que já discutimos e que serve de base para a sua doutrina do sujeito.

Aparentemente, esse autor é fiel à descoberta freudiana do conteúdo sexual do inconsciente. Porém, ele não diz que “a verdade do inconsciente é – uma verdade insustentável – a realidade sexual?” Mas, por que, então, essa verdade seria insustentável?

Se partimos, tal como Freud, da realidade biológica do animal humano, o conteúdo sexual do inconsciente provém simplesmente do que se revela na experiência psicanalítica. Nesse caso, essa observação expressa uma verdade obviamente sustentável. Mas se partirmos, como propõe Lacan, de uma função simbólica anterior a qualquer processo psicossocial, então, de fato, o conteúdo sexual do inconsciente toma uma forma misteriosa. Trata-se, então, de uma contingência que nenhuma razão se afigurará suficiente para compreendê-la; eis que não pode mais ser pensada como desdobramento de uma necessidade.

Freud ensinava que, embora a sexualidade estivesse, de fato, ligada à procriação, a ela não poderia ser reduzida. Em suma, a procriação é de fato um efeito da atividade sexual, mas não vem a ser o seu fim. Assim, é bom lembrar aqui, considerar “a geração de filhos com finalidade exclusiva do sexo” consiste, na verdade, apenas no produto fantasmático da ideologia religiosa, em todas as suas formas. Dessa maneira, Freud anuncia e prepara uma transformação na percepção, uma mutação psicossocial que se tornou corrente, sobre como pensar e representar a experiência da atividade sexual.

Lacan, nesse campo, se encontra ainda atrás e nos convida a voltar ao passado. Eis o que afirma:

A existência [do ser humano], graças à divisão sexual, baseia-se na copulação, ocorrente entre dois polos, os quais a tradição secular tenta caracterizar como o polo masculino e o polo feminino. É aqui que reside a mola da reprodução. Desde tempos imemoriais, certas outras características foram agrupadas e harmonizadas em torno dessa realidade fundamental, mais ou menos ligada à finalidade da reprodução. Um pouco a frente, ele se refere, como se fosse evidente, à finalidade biológica da sexualidade, ou seja, àquela ligada à reprodução.

Curiosamente, esse autor não deixa se referir com sarcasmo à noção de causa: “sempre que falamos de causa, há sempre algo não conceitual, indefinido… Em suma, não há causa a não ser do que se aponta”.[2] Por outro lado, adere sem relutância epistemológica à noção arcaica de finalidade contra a qual se levantou toda a ciência moderna. O resultado, para Lacan, dessa indulgência com a finalidade é que a atividade sexual, especialmente em seu ápice no coito, afigura-se como bastante opaca, enigmática, misteriosa. Ora, ele não chega ao ponto de repetir para quem quiser ouvir “que não há relação sexual?!”

Que o ato sexual ocorra e seja retomado entre dois indivíduos, mesmo se essa relação é exclusiva e dure por muito tempo, isso não é suficiente para fazer desses dois seres um ser, e muito menos um ser único; ora, essa é uma banalidade reconhecida desde tempos imemoriais. Há, apesar disso, uma certa ideologia fusional que apenas expressa normas psicossociais, as quais são historicamente situáveis e datáveis – sem refletirem, aliás, a experiência do coito. Afirmar, então, que esse experimento não cria relações específicas entre os parceiros é um passo difícil de entender; vê-se mal, então, porque seria do interesse da pesquisa científica retomá-lo.

A análise dialética, em seu sentido geral e fundamental ou, se preferirmos, em seu sentido marxista, permite compreender que contrários formem um, permanecendo contrários. E é daí que surgem e se desdobram as diversas relações humanas. Dentre elas, as relações de produção são, de fato, aquelas que geram toda a vida social.  As relações que permitem a experiência sexual estão, também, no centro dos sistemas sociais de relações interindividuais. Ora, tendo por referência a realidade das relações sexuais, a visão romântica de Lacan da unidade fusional e da reação antifusional fazem parte da ideologia e até, mais precisamente, da intervenção da ideologia moral no campo da experiência humana.

Segundo Lacan, “não há relação sexual” porque o ser humano estaria, em virtude de uma misteriosa fatalidade, condenado a um narcisismo intransponível. Desse modo, o indivíduo estaria condenado a visar de modo libidinal algo diferente do outro no outro – ou seja, o objeto a –, de tal modo que a sua libido apenas pode se enrolar em si mesma. Aqui, o terapeuta permitiu-se extrapolar, para a escala de toda a humanidade, aquilo que supostamente descobrira sobre o narcisismo infantil em seus pacientes, que se trata de um afeto patologicamente insuperável. Ao que retrucamos que não é a experiência analítica, por si só, que legitima essa constituição da síndrome narcísica vista como a essência da realidade humana. Afirmamos que se trata de uma ideologia (paleocristã ou neocristã?) que vem aqui parasitar e distorcer a prática clínica e a teoria psicossexual freudiana.

Entre a fusão imaginária, impossível de alcançar, e as duas masturbações, as quais Lacan nos convida a considerar ao invés da relação sexual contraditória[3] – eis que, segundo ele, devemos reconhecer aí, em ambos os lados, apenas figuras de uma determinada degeneração regressiva – há o campo sexual descoberto por Freud, o qual fora já abandonado por este senhor que se põe como um metapsicanalista. Sentindo a dificuldade que assim surge em seu caminho, este mestre recorre então ao testemunho do amor.

O que compensa a relação sexual – ele diz – é justamente o amor. O Outro, o Outro como lugar da verdade, é o único lugar, verdadeiramente irredutível, em que podemos encontrar o ser divino, ou seja, Deus, para chamá-lo aqui pelo seu nome. Deus é propriamente o lugar onde – se me for permitido brincar com o nome de deus – o amor se deus. Assim, por um quase nada, diz-se que Deus acontece. Assim, sempre que algo for dito, a hipótese de Deus se apresentará.

Mas não é preciso se deixar enganar pelo fascínio neo-espinosista desse modo lacaniano de se expressar. Basta compreender que a impotência da libido para alcançar efetivamente o objeto – objeto este, aliás, que ela imagina visar – vem acompanhada de outra impotência, aquela que afeta a finalidade do Outro, como “lugar de verdade”, como “ser divino”. Aliás, esse autor já havia nos alertado sobre isso:

A análise mostra que o amor em sua essência é narcísico… O amor é impotente, ainda que recíproco; eis que o não saber que é apenas o desejo de ser Um é aquilo que nos leva à impossibilidade de estabelecer a relação deles entre si. A relação deles – quais sejam mesmo? – ou seja, de tais dois sexos.

Tendo deliberadamente se afastado da sexualidade inerente ao animal humano em sua origem, tendo colocado a função simbólica na base do inconsciente, Lacan só pode retomar, sem novidade e de modo menor, as aporias da especulação considerada em si mesma, da qual a tradição filosófica outrora nos fornecera a expressão maior.

Certamente, esse mestre psicanalista é suficientemente filosófico para saber que o amor “está no centro do discurso filosófico” e que, como provam as especulações filosóficas de Platão a Hegel: “o amor visa o “ser”, ou seja, aquilo que na linguagem se apresenta como o mais esquivo”.

Mas Lacan não repete e não pode repetir Espinosa. Enquanto o holandês proclamou a filosofia como uma meditação sobre a vida – não sobre a morte –, o francês tem, ao fim e ao cabo, a morte como o seu principal objeto de pensamento:

O sujeito nasce na medida em que, no campo do Outro, surge o significante. Mas, por isso mesmo, o sujeito – que antes não era nada além de estar por vir – se transforma em significação.

A relação com o Outro é justamente o que, para nós, faz surgir o que a lamela representa – não a polaridade sexual, isto é, as relações entre o masculino e o feminino, mas a relação do sujeito vivo com o que perde por ter que passar por sua reprodução, pelo ciclo sexual.

Dessa forma, eu explico a afinidade essencial de toda pulsão com a figura da morte; ela concilia os dois lados da pulsão que, ao mesmo tempo, presentifica a sexualidade no inconsciente e representa, em sua essência, a morte.

Sem dúvida, para Espinosa, o apego ao parcial (seja ele, a volúpia, a riqueza, a honra) é um apego mortal e mortífero. Mas há o amor intelectual a Deus, que é uma forma de designar a identificação do filósofo com a única substância, com a totalidade do ser – ora, à essa substância ele chega por meio do conhecimento de uma terceira espécie de ser. Em seus primórdios vitoriosos, a burguesia europeia ainda era capaz de tais otimismos! Com Lacan, só resta a impotência do amor e a ideia fúnebre de que todo impulso representa a morte. É verdade que a mesma burguesia está agora irremediavelmente em declínio. Ora, Heidegger também passou por aí.  

Das reflexões bastante ideológicas que Freud desenvolveu sobre Eros e Tânatos, temos agora apenas um culto a Tânatos, no qual podemos ver claramente o que ele expressa da época atual. Contudo, é difícil entender como isso pode servir de trampolim para uma terapêutica analítica eficaz. É nesse contexto de abandono que Lacan é obrigado a constatar o fato do gozo sexual. Mas, em torno dele, faz uma pirueta, nega que seja sinal do amor, recusa que seja uma resposta suficiente à demanda de amor, para finalmente esvaziá-lo de qualquer significado ligado à eudemonia e à gratificação.

No entanto, ao considerar o gozo, ele chega ao exame da divisão da humanidade em uma parte feminina e uma masculina. Essa bipartição parece-lhe, assim como se afigurou a Freud, estar ligada ao processo de reprodução da espécie; parece-lhe que ela está ligada a uma bissexualidade sobre a qual deve falar o menos possível. De fato, o que prende a atenção de Lacan é a contradição entre a imortalidade relativa da espécie e a mortalidade absoluta do indivíduo.

Ademais, sobre a questão do falo, ele vai dar um desenvolvimento particular. A esse respeito, eis o que ele nos diz:

Há uma antinomia interna à assunção pelo homem de seu sexo: por que ele deveria assumir seus atributos apenas por meio de uma ameaça ou mesmo sob o aspecto de uma privação? É sabido que Freud, em O mal-estar da civilização, chegou a sugerir uma distinção da sexualidade humana que não é contingente, mas essencial. Em um de seus últimos artigos, ele trata da irredutibilidade a qualquer análise finita das sequelas resultantes do complexo de castração no inconsciente masculino, e da inveja do pênis no inconsciente feminino.

 Em primeiro lugar, deve-se notar que as sugestões feitas por Freud no final de sua vida são inteligíveis apenas em relação à ascensão e ao triunfo do nazismo, o que então se observava no tempo sócio-histórico. A inclinação extremamente pessimista, assessora do inevitável, que ele passou a dar ao seu próprio modo de pensar é bem conhecida. Para ele, o “mal-estar na civilização” estava lá no início de tudo como está, agora, presente na decomposição e putrefação da sociedade capitalista circundante. Não há razão para atribuir às antinomias internas, supostamente consubstanciais ao ser humano, aquilo que nos parece ser o atual equilíbrio de forças entre o capitalismo moribundo e a revolução proletária.

Note-se também que as sugestões obscurantistas de Freud servem de legitimação para as concepções ainda mais obscurantistas e deliberadamente dogmáticas de Lacan. É certo que o “complexo de castração” e a “inveja do pênis”, enquanto características do psiquismo inconsciente, designações fundamentais da masculinidade e da feminilidade, já são encontrados em Freud. Mas coube a Lacan complementar essa percepção, ou seja, hipostasiar tais determinantes de forma metafísica.

Já manifestamos reservas em relação à teoria do Édipo, que, segundo pensamos, não vem a ser mais do que uma primeira e insuficiente abordagem das figuras assumidas pelo desenvolvimento psicossexual da criança, dentro do qual se trata de descobrir a diferença entre os sexos. Em relação ao “complexo de castração” e à “inveja do pênis”, adicionamos ainda maiores reservas.

Pois, se são fatos bem sabido que, desde as primeiras sociedades, as mulheres foram submetidas à dominação, exploração e repressão dos homens, não se segue que devamos buscar no abismo da sexualidade inconsciente um fundamento, uma condição necessária e suficiente, para fenômenos que, em última análise, são econômicos, sociais, culturais e políticos. Acreditamos, isso sim, no seguinte: mesmo se a sexualidade feminina é, na maioria das vezes, vivida por meio das fantasias da passividade, e a sexualidade masculina é vivida por meio das fantasias da atividade, vem a ser no campo do sócio-histórico que devemos encontrar a explicação científica para tais fatos.

Dito isso, pode-se entender por que, em sociedades em que os homens podem tudo e em que as mulheres podem pouco, as meninas sentem, de modo inconsciente, um desejo de ter pênis, assim como, por seu turno, os meninos experimentem, também de modo inconsciente, a terrível ameaça de perder o que os tornam poderosos. E que síndromes não se desenvolvem a partir daí! Disso tudo, quem poderia duvidar?

Mas Lacan, devido aos pontos de partida que sabemos ter escolhido, desenvolve uma opinião completamente oposta:

O falo na doutrina freudiana não é um fantasma, não deve ser entendido como um efeito imaginário. Também não é um objeto como tal (parcial, interno, bom, mau…) […]. Menos ainda vem a ser o órgão, pênis ou clitóris, que simboliza. E não é sem razão que Freud tenha se referido simulacro tal como ele se afigurara para os antigos.

Pois o falo é um significante […] é o significante destinado a designar os efeitos do significante como um todo, na medida em que o significante os condiciona por sua presença como significante.

Aqui é preciso desmascarar o caráter obscurantista e intelectualmente vicioso da abordagem lacaniana. Este psicanalista, de fato, se recusa a descer à arena política onde os movimentos de libertação das mulheres questionam a dominação masculina, assim como a sua ideologia justificativa: o machismo. Ora, estas questões são ninharias quando comparadas com a mensagem incomparável que nos é supostamente transmitida pelo mestre seminarista! O fato de que os homens sejam vítimas das fantasias de virilidade que chegam a se configurar como neuroses; que as mulheres sejam condicionadas psicossocialmente de tal forma que suas fantasias as levam a outras formas de neurose, tudo isso não é fundamental para ele.

Além disso, ele lembra que o falo não é nem o pênis nem o clitóris. Logo, não é do machismo e do antimachismo, assim como dos confrontos suscitados por eles, que se está falando aqui! Mas de quem e do que se trata, então?

O falo, diz-nos, não é uma fantasia. É um significante. E se trata mesmo do significante que condiciona o conjunto dos significados, os quais a sua presença designa e os faz serem como tais. Estamos, portanto, advertidos: essa famosa função simbólica, que estaria na fonte, no princípio de todas as coisas, na ordem do criado, organiza-se em torno do significante, por excelência: o falo.

Mas esse falo, por mais enigmático que seja quando tratado dessa forma, não é tão enigmático. Para os antigos, era um simulacro. Vem a ser um simulacro de quê, por favor? Obviamente, do pênis e apenas do pênis. Para fazer desse simulacro, desse fantasma coletivo do poder viril, entre os antigos, o significante ordenador do simbolismo, seria essa a verdade científica do freudismo? Seria essa a palavra-chave, a palavra do mestre lacaniano? Que miséria!

De fato, como sabemos, uma divisão sexual do trabalho ocorreu na pré-história de nossa espécie, assim como, mais tarde, surgiria uma divisão social do trabalho. Mas esses dois processos, que em última instância estão ligados, não são suficientes para explicar os fenômenos de exploração e da opressão dos seres humanos pelos seres humanos. A explicação, tal como foi dada por Marx, está na produção de um excedente, a partir do qual ocorreu uma cisão (Spaltung) na sociedade entre uma minoria que controla o uso do excedente e uma massa que o produz sem doravante controlá-lo.

As relações entre mulheres e homens, desde a antiguidade até os dias atuais, só são inteligíveis a partir daí. Engels disse apropriadamente que “no sistema capitalista a mulher é a proletária do homem”. Isso significa que, no sistema escravagista, ela era sua escrava; que, no sistema feudal, ela era sua serva. De modo mais geral, isso significa que as relações entre os sexos masculino e feminino reproduzem, em seu nível, as relações de produção entre exploradores e explorados, que sabidamente constituem uma sociedade em sua especificidade.

Com base nessa realidade, a imaginação se desdobrou e moldou suas fantasias. O falo é o emblema do poder, pois, na verdade, esse poder pertence socialmente ao sexo masculino. O falo refere-se à dominação dos homens sobre as mulheres baseada na dominação seja dos senhores sobre os escravos, seja dos barões sobre os servos, seja enfim dos burgueses sobre os proletários. O ato sexual, como observa Freud, é vivido e representado como um aparato, pois a socialização por meio da qual o indivíduo humano se constitui submete a vida sexual a fantasias que surgem da realidade das relações existentes entre as classes na sociedade.

O machismo, assim como o racismo, como já mostramos, é um processo ideológico que consiste em atribuir diferenças psicossociais oriundas da história a uma suposta natureza. A referência lacaniana ao falo como significante é bastante distinta de uma redução vulgar da masculinidade e da feminilidade a uma natureza dita biológica. É, no entanto, o resultado de um machismo que, acreditando que está se acomodando no simbólico, é, afinal, apenas a reprodução em termos complicados do mais anti-feminino.

Virando as costas aos problemas das relações entre os sexos que o nosso século debate e que o movimento revolucionário da luta de classes está a apreender, Lacan deleita-se com fórmulas que considera provocativas e que parecerá, cada vez mais, terem juntado, a partir do momento em que aparecem, à insignificância comum. Divulgador heideggeriano de um bazar de miudezas, ele proclama na televisão: “A mulher não ex-siste”.

De qualquer modo, com uma postura mais séria, ele havia ensinado em um seu seminário: “não há mulher, pois em sua essência ela não é toda”. Com dessa afirmação, ele chegou então à seguinte conclusão definitiva: “não há mulher senão excluída pela natureza das coisas, que é a natureza das palavras”.

Em busca de uma ontologia impossível, Heidegger substituiu a existência (Existenz) que a especulação tradicional tentou apreender no ser, por uma emergência enigmática da existência, a qual, então, precisa ser chamada de ex-sistente (Ek-sistenz). E este não é o lugar para mostrar aqui que essa emergência, a qual vem diretamente de Nietzsche, não é separável da ideologia da individualidade, pois que esta última é exacerbada na fase declinante do capitalismo. Lacan transpõe o “Ek-sistenz” do alemão para um “ek-sistentiel” afrancesado, que pela graça (simbólica, claro) do falo, descobre que o homem surge de si mesmo e, portanto, que ele é ex-sistente, enquanto a mulher não pode surgir sozinha e se vê condenada a ser o Outro desse homem que surge de si mesmo.   

É aqui que aparece – e com extrema força – que a psicanálise, desarticulada do materialismo histórico, está condenada a degenerar cada vez mais num obscurantismo do qual o lacanismo é hoje a expressão mais típica.[4] Com efeito, fora dessa articulação, a psicanálise fica isolada dos processos sócio-históricos que geram a condição feminina e masculina. Ela reflui, assim, ao ideológico, que Lacan disfarça sob o nome de simbólico, para nos oferecer uma versão pretensiosa e grotesca dos preconceitos mais arcaicos. Desse ponto de vista e em seu nível específico, o lacanismo é o ressurgimento da barbárie dentro do pensamento burguês decadente. E seus métodos de expressão neo- heideggerianos, os quais são semelhantes ao Grand Guignol cinematográfico que já nos serviu com O exorcista e O demônio das tripas.

De acordo com tais visões, o que resta fazer aos homens caídos nas garras do complexo de castração e às mulheres abatidas nas garras da inveja peniana, se, para ambos, a experiência sexual é um beco sem saída? Resta para eles, como seria de esperar, os recursos da sublimação, algo que a análise do estilo lacaniano visa tornar possível. E isso é dito muito claramente.

O que se tentava no final do século passado, no tempo de Freud, o que levava todo tipo de gente boa a circular em torno de Charcot e de outros, era o propósito de reduzir o misticismo a um negócio da escória. Entretanto, se se olha de perto, não se trata bem disso. Esse gozo que experimentamos e do qual nada sabemos não é o que nos coloca no caminho da ex-sistência? E por que não interpretar um lado do Outro, o rosto de Deus, como sustentado pelo gozo feminino?

Supondo que o misticismo não possa ser reduzido a “negócio da escória“, isso é razão suficiente para reduzir tais questões ao misticismo? Ou, se preferirmos, do fato de que o materialismo médico que outrora vigorou em torno de Charcot e Freud era fisiológico e mecanicista – e não dialético e histórico –, devemos concluir hoje que o caminho do idealismo é o correto?

Além disso, a sublimação é um dos conceitos menos elucidados do freudismo. Pois, se é verdade que os impulsos libidinais que não se satisfazem nas diversas formas de atividade sexual determinam comportamentos substitutos, estes últimos abrangem o campo das práticas criativas, mas também aquele das síndromes psicopatológicas. A sublimação dificilmente pode ser definida como tal, a não ser com a ajuda de critérios culturais historicamente relativos e fora do controle do freudismo. Além disso, Marcuse não errou ao mostrar a vantagem que as classes dominantes haviam constantemente tirado dos mecanismos de sublimação para preservar a existência da exploração e da dominação.

As mulheres de hoje e de amanhã têm coisas melhores a fazer do que consolar-se por sua servidão, do que sublimar o seu gozo sexual em considerações sobre a “face do Outro”, como se essa fosse uma Santa Face. Fazendo como Lacan, pode-se falar aqui em Santa Farsa. Na verdade, toda a concepção de sexualidade de Lacan não passa de uma esquiva. Procura distrair-nos dos problemas referentes ao engendramento psicossexual próprio do indivíduo humano, tal como Freud começara a fazer, com base num certo materialismo. E o objetivo dessa evasão é apenas completar a redução do inconsciente à função simbólica por uma doutrina do sujeito de que trataremos em sequência, sob o título de Formação e desenvolvimento da personalidade.


[1] Professor emérito de sociologia da Universidade de Paris VII. Autor de L’obscurantisme contemporain – Lacan, Lévy-Strauss, Althusser. Spag-Papírus, 1980.

[2] N. T.: Ou seja, a noção de causa é transcendental tal como postulara Kant.  

[3] N.T.: Como Lacan tinha horror a parecer marxista, ele não empregava o termo contradição; mas para indicá-la não francamente, ou seja, como expressão do entendimento, ele inventou o termo “não-relação” (non-rapport, em francês).

[4] N. T.: A psicanálise, não se pode ter ilusão sobre isso, sustenta uma profissão; ora, como toda profissão intelectual, seja ela de economista, advogado etc., baseia-se e tem de se basear num uso ideológico da linguagem para expressar certos conhecimentos de um modo distorcido, jamais francamente. Assim como os economistas, por exemplo, são neoclássicos – e não marxistas –, os psicanalistas são lacanianos – e não marxistas também –, ainda que alguns deles queriam se apropriar do marxismo. Esse ramo deveria ser chamado, talvez, de lacano-marxismo? Pergunta-se: o freudo-marxismo não tendeu a degenerar quando se tornou profissão?