A metapsicanálise de Jacques Lacan

Autor: Pierre Fougeyrrolas[1]

Ao republicar, mais uma vez, sua tese de doutorado de 1932 sobre a psicose paranoide em sua relação com a personalidade, Lacan nos permite compreender melhor sua trajetória intelectual.

A tese, na verdade, mostra que seu autor ainda não tinha, naquele momento, o sistema que mais tarde seria o seu próprio. A dissertação revela um certo ecletismo em que conceitos e temas conceituais de várias tradições psiquiátricas, de várias correntes psicológicas e, finalmente, da psicanálise são justapostos – não organicamente articulados. Em suma, apresenta uma imagem de Lacan antes do lacanismo e levanta a questão do que sobreviveu desse velho universo mental no sistema atual oferecido como a verdadeira interpretação da obra freudiana, mas também como sua retificação.

No que diz respeito ao tratamento e à elucidação da psicose paranoide, esse autor considera que o problema surge na formação da síntese psíquica; eis o que ele nos diz sobre isso:

A essa síntese chamamos de personalidade. Tentamos aqui definir objetivamente os fenômenos que lhe são próprios, baseando-nos em seu significado humano”. Sobre os chamados “fenômenos da personalidade”, é preciso “levar em conta uma coerência que lhes é peculiar e que se define por essas relações de entendimento, nas quais se expressa a medida comum do comportamento humano”

Na verdade, Lacan procurava, na época, conciliar as visões humanista, personalista e espiritualista, comuns no meio psiquiátrico francês. Busca, assim, as condições orgânicas das quais derivavam os fenômenos por ele estudados. A sua autodefinição de desejo é uma boa ilustração da difícil tarefa que enfrenta no terreno mutável da psiquiatria.

“O desejo caracteriza-se por certas oscilações orgânicas chamadas afetivas, por uma agitação motora, mais ou menos dirigida de acordo com o caso, e, finalmente, por certas fantasias, cuja intencionalidade objetiva será, de acordo com o caso, mais ou menos adequada. Quando uma dada experiência vital, ativa ou sofrida, determina um equilíbrio afetivo, o repouso motor e o esmaecimento das fantasias representativas, dizemos por definição que o desejo foi satisfeito e que essa experiência foi o fim e o objeto do desejo. Quão longe estamos, não é, da concepção segundo a qual o desejo é presentificado pela libido!”

De fato, no estudo do caso “Aimée”, Lacan descobre, por sua vez, a importância da história vivida do indivíduo em formação e chega à ideia de que a personalidade, com seus transtornos, é o produto desta história. Isto anuncia o que o conduziria irresistivelmente a Freud e que o faria abandonar os elementos ecléticos, veiculados ao seu redor e dentro dele, pelas tradições psiquiátricas.

A conjunção entre Lacan e o freudismo só pode ser corretamente compreendida se levarmos em conta a situação da psicanálise naquele momento em que ele embarcou nesse movimento, assim como a herança ideológica, a qual passou a transmitir, no momento e a partir desse encontro.

Deve-se lembrar que o nazismo causou a destruição dos círculos freudianos na Europa Central, assim como uma imigração forçada de muitos analistas para os Estados Unidos. A morte de Freud ocorreu em um momento em que “era meia-noite no século”. Então, a maioria dos seus discípulos teve que enfrentar problemas de sobrevivência para os quais não estavam preparados.

No rescaldo da Segunda Guerra Mundial, a psicanálise sobreviveu, mas a que custo! O movimento ficou então centrado nos Estados Unidos. Aí, ele se adaptou, buscou mesmo se “adaptar” àqueles que faziam uso dessa terapêutica. Do poder antissistema do pensamento freudiano, de sua preocupação com o destino da sociedade ocidental, pouco restou. Lacan, ao aderir a esse movimento, passou a sentir uma insatisfação com o uso geral que se fazia do legado freudiano. Manifestou, então, um desejo de voltar às fontes e retificar uma teoria cada vez mais achatada e que achatava àqueles que dela se aproximavam.

Mas esse Lacan, marcado por tal impaciência, tem tanto um passado quanto um legado, os quais lhe são muito próprios. Ao ler a sua obra, desde a tese de 1932 até o último seminário, publicado em 1975, vislumbra-se um universo mental definido. Este fora formado por um passado em que as letras greco-latinas, os autores filosóficos mais clássicos, os escritores religiosos, especialmente os místicos, desempenharam um papel constituinte.

A isso se somou, mais tarde, à leitura de Heidegger, que parecia subversiva apenas a quem não sabia lê-lo. Contudo, Lacan entendeu que esse filósofo reduzia a especulação moribunda de nosso tempo à “philosophia perennis” cara aos velhos escolásticos. Foi esse Lacan que tentou desenvolver uma interpretação/retificação da obra freudiana e que apareceria, especialmente após o discurso de Roma em 1953, como líder da oposição na internacional psicanalítica, a ponto de ser expulso dela mais tarde.

Em suma, situando-se no extremo oposto de Reich e Marcuse, que haviam tentado uma certa crítica de esquerda à psicanálise, Lacan inclinava-se, pela convergência de múltiplos fatores, a empreender uma crítica de direita, diga-se mesmo de extrema-direita. Deliberadamente ou não (não sabemos, e não importa), Lacan trabalhou por mais de vinte anos para construir uma versão do freudismo baseada na erradicação de tudo o que essa doutrina poderia ter contido originalmente em termos de materialismo. É justamente por isso que o lacanismo representa a extrema-direita da psicanálise em sua situação atual.

Os seus ataques convergentes ao conceito de relação de objeto, à teoria dos estágios da sexualidade infantil, à teoria das pulsões, à teoria do recalque como resultado de pressões sociais introjetadas e à noção de afeto tendem a separar a doutrina freudiana das bases e das condições biológicas, orgânicas e fisiológicas cuja realidade fundamental o seu fundador, Freud, afirmara constantemente.

Assim separado da vida animal que está na base do ser humano como tal, o freudismo (mas ainda é isso?), revisto e retificado por Lacan, tornou-se uma espécie de canto no qual esse super-revisionista colocou, como num bricabraque, o novo-velho saussuriano e pós-heideggeriano. É aí que reside todo o seu pensamento.

 Temos, então, um sistema que chamaremos de metapsicanálise. Nesse sistema, os temas da repressão originária, da função simbólica como única realidade verdadeira, do desejo enigmático, do amor impotente e da repetição como epifania da morte etc. referem-se uns aos outros sob a égide do falo, o mistério dos mistérios, o significante dos significantes.

Aparentemente vigilante em relação à ideologia psicanalítica que vigora do outro lado do Atlântico, ele se refere desdenhosamente ao “american way of life”, mas também às “relações humanas” e mesmo à “human engeeniring“. Contudo, Lacan não revela desconfiança de si mesmo como portador de outra ideologia. Profere, então, platitudes sobre a família, o capitalismo, o racismo ou as mulheres, vinculando-os pretensiosamente à sua visão global.  Não se pergunta, entretanto, se tudo o que apresenta não é um sinal de que essa visão é ideológica e, mais do que isso, é ideologicamente parasitária.

Como poderia um homem que dedicou tantas horas ao olho e ao olhar, ao aparelho óptico e ao que chama de “pulsão escópica”, não prestar alguma atenção à teoria marxista da ideologia? A não ver a comparação feita por Marx entre o processo ideológico e a inversão da imagem retiniana? Pelo menos, não vemos nenhum vestígio disso em suas publicações.

A metapsicanálise de Lacan não escapa às garras gerais da ideologia dominante de nossa sociedade. Escapa-lhe ainda menos porque é ela própria uma ideologia invasiva. E se insistimos repetidamente sobre a necessidade de uma articulação da psicanálise com o materialismo histórico, é justamente porque este último, por meio de sua teoria crítica da ideologia, oferece ao “campo freudiano” a possibilidade de libertar-se, em condições que estão determinadas fora dele, das inversões e distorções ideológicas que sofre com Lacan e com as demais correntes idealistas.

A ideia propriamente lacaniana consiste numa ideologia da morte. Nesta prevalece o abandono, a privação de toda segurança, que tem origem no cristianismo integrista. Este é então por ele reposto por meio da tragicidade, de uma fantasia de impotência, de origem heideggeriana. Essa ideologia obscurece os processos psicossexuais descobertos e estudados por Freud; conduz a psicanálise, na medida mesmo em que ela se deixa levar, “pelos desfiles dos significantes”, em direção ao impasse da logomaquia. De fato, se a psicanálise se tornar uma ciência um dia, ela terá de virar as costas para o avatar ideológico do lacanismo.

Nos últimos dez anos, três termos foram popularizados pelos exercícios verbais lacanianos: desejo, discurso e leitura. É hora de denunciá-los enquanto elementos do discurso do mestre Lacan.

O desejo, em sentido correto e suficiente, consiste na necessidade de obter um objeto concreto. Assim, o desejo sexual é a necessidade sexual de alcançar a um objeto determinado, do qual o indivíduo espera obter satisfação. O desejo, no sentido lacaniano, afigura-se como um enigma, como uma lógica de desenvolvimento infinito. Eis que é um movimento que leva o indivíduo para algo mais além, não para o que ele acredita ser um objeto próprio desse impulso originário.

Tratado dessa forma, o desejo se torna ideológico. Passa a ser uma referência à chamada insaciabilidade permanente dos seres humanos que, no final, torna irrisórios os esforços das massas para obter a satisfação de suas necessidades vitais. A tentativa de separar o desejo da necessidade aflora, portanto, como algo bem reacionário.

O discurso, em um sentido válido, geralmente só pode ser a expressão verbal do pensamento, ou, na terminologia dos linguistas, o conjunto de enunciados, das mensagens. E isso basta! Já no sentido lacaniano, o discurso é pensado como algo reduzido à lei dos significantes, como forma estrutural do enlace social em sua constituição como tal. Lacan fala, assim, de “discurso analítico”, de “discurso filosófico”. Outros falam do “discurso ideológico”, do “discurso desta ou daquela instituição” ou mesmo do “discurso de um indivíduo”.

Por meio dessa operação, a práxis deixa de ser práxis porque perde o seu conteúdo materialista; o agir humano fica reduzida a um discurso formador de laço, de um modo idealista.

Tal uso pseudolinguístico e, na verdade, ideológico do termo discurso tende a escamotear os conteúdos reais da psicanálise, da filosofia, das ideologias ou mesmo das instituições. Eis que estes devem ser buscados nas relações sociais de produção, sem se reduzir os conteúdos em questão a meras oposições gramatológicas. Na esteira de Lacan, nossos esquerdistas inconscientes falam, ocasionalmente, do “discurso da ciência” como uma fonte específica de opressão. Desse modo, ele se apresenta, então, como um obscurantismo sem limites.

Por fim, o termo “leitura” se refere, simples e exclusivamente, ao processo de ler o que está escrito, de registrar e decifrar, se se quer pensar assim, a mensagem escrita. No sentido dado por Lacan, mas também por outros estruturalistas, o termo leitura tem o seu escopo ampliado, pois passa a significar quase tudo, ou seja, apreender, compreender, interpretar etc. Passa a existir, a leitura de uma paisagem, de um filme, de uma pintura, de um monumento, de uma notícia, da situação de um país etc.

O vício desse uso do termo “leitura” reside na assimilação de todas as formas de experiência humana à apreensão do texto escrito. Aqui, novamente, a linguística (estrutural) se configura como um modelo universal. E o faz em detrimento, além disso, de sua própria especificidade científica. Assim, por exemplo, as visões mais “impressionistas” de qualquer individualidade são tidas como uma “leitura” que se apresenta como elaboração científica. Como se vê, assim, o termo “leitura” se volta para um horizonte determinado, ou seja, para o lado do obscurantismo.

Precisamos, portanto, nos libertar do jargão, do uso parasitário e ideológico das palavras desejo, discurso e leitura. Entendamos, outrossim, que as manifestações do pensamento só podem ser estudadas cientificamente se renunciarmos, de uma vez por todas, a considerá-las como se fossem autônomas. Pois é essa ilusão de autonomia que sustenta todas as formas do obscurantismo atual.

Ora, por meio desse obscurantismo, a análise metapsicanalítica do senhor, mestre e universitário, Jacques Lacan expressa algo e serve a um determinado propósito. Para finalizar, tentaremos discernir isso.

O que esse sistema ideológico, enxertado na psicanálise, expressa é a regressão a que o pensamento burguês é condenado pelo fato de que o modo de produção capitalista encontra limites intransponíveis na época do imperialismo e da revolução proletária. Ele está fadado a enfrentar sua própria morte historicamente inevitável.

Com Hegel, a filosofia atingiu seu ápice e a sua morte, em conjunto. Desde então, sobreviveu através de formas degradadas de repetição: Husserl repetiu Descartes e Kant, fechando-se em consequência numa propedêutica interminável, voltada supostamente para uma filosofia impossível; Heidegger repete Nietzsche e Husserl combinando-os, mas sem conseguir restaurar a ontologia que ambicionava em seus mais recônditos  desejos.

Durante a fase imperialista dos últimos cem anos, esse automatismo de repetição ideológica se agravou; não há mais filosofias; há, na melhor das hipóteses, histórias do que fora a filosofia num passado já passado.

Retomando o jogo da especulação filosófica no campo da psicanálise, sem levar em conta que esse jogo não passa de uma sombra de si mesmo, Lacan pouco poderia fazer melhor do que mastigar Nietzsche, Heidegger, juntando-os com o que resta de pensamento no campo do chamado catolicismo fundamentalista. O fascínio exercido sobre ele pelos temas da repetição e da morte nos dá o conteúdo histórico de sua construção intelectual.

Não havia necessidade, porém, de recorrer a Freud para realizar uma espécie de sinfonia fúnebre do mundo capitalista moribundo. Certo! Mas a singularidade do lacanismo reside em sua instalação nas fronteiras da especulação filosófica, expressão do passado, assim como da experiência analítica, prenúncio do futuro. É essa posição na ideologia contemporânea que nos permite compreender a finalidade desse sistema intelectual. É assim que acabamos de ver o que ele expressa.

Obra para atenuar o ponto contestatório, antissistema, do freudismo; para extrair, enfim, as razões do desespero que mora na psicanálise, algo que a classe dominante tem interesse em cultivar entre os intelectuais. Serve para impedir que o movimento psicanalítico encontre, para além de Reich e Marcuse, os meios de sua articulação com o marxismo.

Não importa as intenções aparentemente obscuras do próprio Lacan, de julgar o alcance de uma obra que, apesar de suas invocações socráticas, já é uma obra escrita. Este trabalho não é uma elucidação de Freud, nem uma inovação em relação a ele. É um retrocesso em toda a sua linha de desenvolvimento. Trata-se, sem dúvida, da forma mais completa de obscurantismo contemporâneo. Ela está destinada a agradar aqueles intelectuais pequeno-burgueses que acreditam ter um temperamento aristocrático e que, mais do que qualquer outra coisa, têm um medo insuperável da revolução proletária.

O estilo de Lacan confirma plenamente o que acabamos de dizer sobre o conteúdo e a função de seu pensamento. Esse estilo cada vez mais alusivo, precioso, abstruso e contorcido, como um exercício de pantomima, tem o objetivo declarado de desencorajar a compreensão e proteger os círculos das várias etapas da iniciação ao pensamento do Mestre.

Na televisão, nosso personagem exclama: “Bastam dez anos para que o que escrevo fique claro para todos. Na verdade, isso não é um problema. Pois, daqui a dez anos, o próprio curso da história terá feito justiça ao lacanismo, que não interessará mais a ninguém.[2]


[1] Professor emérito de sociologia da Universidade de Paris VII. Autor de L’obscurantisme contemporain – Lacan, Lévy-Strauss, Althusser. Spag-Papírus, 1980. É também autor de La revolution freudianne, Denoet, 1970.

[2] N. T.: Esse otimismo de Pierre Fougeyrollas está ancorado no seu desejo concreto. Entretanto, como previsão história, ele falha de modo completo… Bem, ele pode ter errado apenas na data. Mas também, pode ter errado porque entre o socialismo e a barbárie, está última aparece agora, tragicamente, como a grande vencedora, mesmo se isso contraria todo desejo revolucionário; pois, como se sabe, ela está amparada nos fascismos que não param se emergir no ocaso do capitalismo.