Autor: Adrian Johnston – Introdução ao livro A temporalidade da pulsão [1]
Um dos insights mais básicos da psicanálise é que os seres humanos dizem mais do que sabem. As suas declarações e os seus comportamentos são significativamente moldados por uma dimensão inconsciente, tecida sob a textura de sua consciência. Assim, a arte da análise não envolve desconsiderar dogmaticamente as características manifestas da existência cotidiana em favor de tatear em busca de alguma fraqueza psíquica, obscura e oculta.
Não vem a ser, em adição, uma psicologia profunda – mas vulgar – em que a fachada da cognição, superficialmente estruturada, mediada simbolicamente de modo social, opõe-se grosseiramente ao pântano obscuro e opaco de uma natureza carnal em sua essência selvagem e indomável.
O inconsciente está “lá fora”, inscrito no campo da consciência e da correlata realidade como um conjunto de configurações internamente excluídas. E essas configurações, em vez de serem suplementos ou marginalidades parasitárias relativamente supérfluas, emprestam a essa realidade a sua própria textura e determinam os contornos reais da própria consciência.
Consequentemente, sim, é possível que o senso comum, por assim dizer, saiba mais do que sabe! Na esteira de Freud (especialmente em termos de sua “psicopatologia da vida cotidiana”), deveria ser forjado por isso um programa de pesquisa que implicasse, entre outras atividades, absorver as banalidades da sabedoria popular. Dever-se-ia fazê-lo, ademais, de um modo muito mais sério e mesmo mais literal do que quando se toma essa “sabedoria” com indiferença mecânica, impensada, conforme rola casualmente dos lábios de alguém? Da mesma forma, as conclusões alcançadas por um empreendimento teórico complexo não precisam ser de um tipo intangível, abstrato e contraintuitivo.
Embora os sistemas de pensamento filosófico e psicanalítico obviamente se afastem de padrões familiares de compreensão, elevando-se assim acima das limitações impostas por hábitos e pressupostos epistemológicos não sofisticados, os resultados alcançados por esses aparatos teóricos devem se encaixar (em vez de automaticamente contradizer e condenar condescendentemente) o banal, o mundo cotidiano do qual surgem e que deveriam procurar elucidar.
Além disso, conclusões intuitivas muitas vezes, ao serem explicadas e justificadas teoricamente, requerem premissas as mais contraintuitivas, acrobacias conceituais as mais distorcidas – eis que os meios são frequentemente mais informativos do que os fins. De fato, como acontece com o próprio desejo humano, a jornada pode ser mais importante do que o destino.
Uma maneira de entender o presente projeto é vê-lo como um desdobramento rigorosamente sistemático das implicações excessivas, quase insuportáveis, contidas na observação clichê que diz que “a grama é sempre mais verde do outro lado”. Aqui – e como provavelmente acontece com muitas outras observações interminavelmente repetidas – o falante fala mais verdade do que imagina, permanecendo inconsciente de que esse clichê descreve o que equivale, em termos kantianos, a uma necessária “ilusão transcendental” que molda a vida psíquica como um todo.
Em vez de formas realmente alcançáveis de satisfação duradoura, contentamento imperturbável e felicidade duradoura, a psicanálise oferece – a despeito de sua intenção e dos objetivos de sua missão clínica –, soluções fundamentalmente anti-utópicas. Eis que os seres humanos se apegam obstinadamente às fantasias por meio das quais esse prazer é deslocado para um “outro lado”, pateticamente romantizado como um paraíso perdido, em vão esperado como um futuro perpetuamente adiado e/ou atribuído ciosamente a outros.
A mensagem hegeliana transmitida do analista para o analisando no curso do processo da cura deveria, portanto, proclamar que “você não tem nada a perder senão essa perda em si mesma”!). Essas fantasias de um gozo fantasmagórico podem ser nostálgicas, messiânicas ou simplesmente paranoicas. Essa característica universal da condição psíquica humana, como acontece com todos os sintomas psicanalíticos, é uma formação de compromisso.
Por um lado, tais fantasias de gozo impossível permitem que os indivíduos carreguem o ônus das insatisfações decorrentes de um descontentamento constitutivo. Fazem assim com que esse estado de coisas aquém do ideal pareça contingente e não necessário. Por outro lado, essa mesma estratégia corre o risco de amplificar ainda mais a dor de uma economia libidinal inerentemente disfuncional, pois pode cultivar nos indivíduos a convicção de que seu sofrimento é terrivelmente excepcional e gratuito.
As pessoas, sem saber, esfregam sal em suas próprias feridas. A psicanálise não pode curar terapeuticamente essas feridas, mas no melhor dos casos pode fazer com que seus pacientes parem de esfregar tanto sal e parem de cutucar, em mórbido fascínio, as crostas e cicatrizes permanentes deixadas por uma história de expectativas invariavelmente frustradas.
Em suma, o que se segue é uma crítica do puro gozo. A autodenominada revolução “copernicana” da filosofia de Kant, a virada crítico-transcendental, realizou nada menos que a redefinição do próprio campo da filosofia; ao tornar certos problemas e questões irremediavelmente obsoletos, apresentou uma nova agenda ao pensamento filosófico, baseada agora em uma consideração cuidadosa das ambições teóricas que podem ser nutridas por futuros pesquisadores. Ao liquidar falsos problemas e perguntas sem resposta, Kant libertou a investigação filosófica, permitindo que ela possa se comprometer com a busca de enigmas genuínos e valiosos.
Da mesma forma, desmascarar as fascinantes e fantasmáticas ilusões de um “puro prazer” – de várias visões utópicas de avanços em níveis até então impensáveis de felicidade alcançável – promete levar tanto a filosofia quanto a psicanálise a reconsiderarem as suas avaliações da natureza humana, assim como a possibilidade de que venham a ser transformada. Ademais, pode ajudar a libertar as pessoas que sofrem de escravização inconsciente, autoimposta por padrões impossíveis de bem-estar imaginado, os quais realmente ninguém alcança. O caminho para um delineamento filosófico e psicanalítico revitalizado da subjetividade abre-se exclusivamente por meio da aceitação libertadora e da fidelidade à declaração absolutamente escandalosa da metapsicologia psicanalítica freudiano-lacaniana.
Ei-la em resumo: não existe gozo pleno e puro – ou, em outras palavras, la jouissance n’existe pas. [2]
As Sete Teses Centrais de A temporalidade da pulsão
1. A psicanálise é, fundamentalmente, uma visão filosófica das relações do sujeito com a temporalidade.
Como qualquer sistema de ideias relativamente matizado, a psicanálise significa coisas diferentes para pessoas diferentes. Para muitos, Freud rompeu com ousadia com os tabus da sociedade vitoriana do início do século XX; permitiu, assim, reconhecer que os fundamentos da existência subjetiva residem na sexualidade repudiada e reprimida. Para outros, a teoria analítica é uma ferramenta útil para dissecar objetos culturais que vão da literatura ao cinema e à política. E, aos olhos de algumas pessoas, a psicanálise é uma monstruosidade desordenada e pseudocientífica produzida por mentes perturbadas.
Ora, os fundamentos genuínos da psicanálise estão em outro lugar.
Em essência, o que Freud descobre – mas falha ao não apreender plenamente o significado de sua descoberta – é que a relação do sujeito humano com a temporalidade é absolutamente central no processo de moldagem de seu próprio ser. Freud desconhece as implicações de seu próprio pensamento em relação a esse tópico. Ele interpreta o estabelecimento contínuo de vínculos do inconsciente entre o passado e o presente como meramente indicativo de sua “intemporalidade”.
A única alternativa que ele percebe para uma forma de consciência organizada em torno do tempo linear e cronológico é a completa negação ou ausência de tempo. A ideia de uma diferença ou conflito entre modos distintos de temporalidade lhe escapa. As consequências desse falso dilema freudiano entre o tempo linear consciente e a atemporalidade inconsciente são de grande alcance.
Muitas vezes, se o tempo é discutido no contexto da teoria psicanalítica, o que recebe ênfase é meramente a influência determinista do passado reprimido no comportamento presente. Afirma-se, basicamente, a ideia de que o passado sobredetermina o presente. Mas, além desse vetor de sobredeterminação, a teoria analítica também revela duas outras dinâmicas temporais relacionadas:
- a natureza genética (ou, como também se pode adjetivar, diacrônico-histórica) da subjetividade per se – isto é, as características do sujeito cognoscente tomam forma historicamente por meio de uma série de processos passíveis de serem delineados como dinâmicas gerais ordenadas vis-à-vis aos conceitos fundacionais da metapsicologia.
- A influência recíproca do presente sobre o passado – Freud descobre a rearticulação reorganizadora dos conteúdos ideativos passados por meio de fenômenos como a “memória de tela”, os resíduos diurnos do trabalho onírico e os traumas formados por dois eventos. Tanto Lacan quanto Jean Laplanche, como é bem sabido, exploraram essa dimensão retroativa da vida psíquica no tema que denominaram “après-coup”.
2. As pulsões são mecanismos internamente diferenciados
O conceito freudiano de Trieb (“pulsão”) designa uma estrutura complexa e multifacetada – uma conjunção heterogênea de elementos e funções distintas – em vez de uma força energética homogênea, de uma cota de impulso natural bruto ou de um simples impulso somático (é assim que as caracterizações mais comuns o apresentam).
Em seu ensaio crucial de 1915, As pulsões e suas vicissitudes, Freud estipula que qualquer impulso pulsional é, por definição, um composto de elementos que ele denomina de “fonte” (Quelle), “pressão” (Drang), “objetivo” (Ziel), e “objeto” (Objekt). Nesse mesmo ensaio, é claro, ele observa que a pulsão (Trieb)reside em algum lugar “entre o soma e a psique”. Infelizmente, em seus escritos posteriores, Freud, embora mantendo essa definição metapsicológica, não atenta para as suas implicações significativas no que concerne aos problemas em resposta aos quais forja a segunda topografia. É aí que ele, como bem se sabe, apresenta a oposição entre Eros e Tânatos (Todestrieb). Os seus textos pós-1920 frequentemente falham em retratar os impulsos como inclinações corporais que brotam do caldeirão fervente do id.
Assim como em seu tratamento superficial da temporalidade, o fracasso de Freud em investigar mais a fundo a estrutura internamente diferenciada da pulsão (Trieb) como um conceito metapsicológico fundamental lhe custa caro. Ele perde o poder de explicar muitos dos fenômenos intrigantes que o atormentam até seus últimos escritos do final da década de 1930 – ou seja, a evidência de um “além” do princípio do prazer. Freud nunca consegue colher os benefícios de sua chocante revelação sem precedentes de que as forças e os impulsos básicos da natureza humana são entidades híbridas que consistem em componentes múltiplos (e, em muitos aspectos, opostos). Essa dimensão de suas descobertas permanece, para ele, parcialmente inconsciente.
3. Todas as pulsões, em sua própria estrutura, são unidades divididas
A tese decisiva deste projeto emerge das duas teses precedentes:
Um conflito intratável entre duas ordens temporais incompatíveis é intrínseco à anatomia da pulsão (Trieb). Em outras palavras, todas as pulsões são internamente dilaceradas por um antagonismo constitutivo que garante seu repetido fracasso em alcançar o que Freud chama de “satisfação” e o que Lacan chama de gozo (“gozo”). Cada impulso é um mecanismo de autossabotagem, ou, pode-se dizer, uma máquina de frustração perpétua. A percepção da tensão entre essas duas ordens temporais requer o gesto de encarar a pulsão como “dividida”.
Por que os pensadores anteriores não descobriram essa divisão (Spaltung) interna dentro da organização multifacetada da pulsão (Trieb)? Provavelmente, isso ocorreu porque muita atenção intelectual foi da dada ao “sujeito dividido” da psicanálise. Com força maior, o impacto da teoria do inconsciente de Freud no pensamento filosófico foi em termos de subjetividade; o consenso recebido sobre esse tema não se cansa de reiterar como a psicanálise desafia a primazia da autoconsciência ostensivamente afirmada pela tradição iluminista.
Por causa desse foco na cisão da subjetividade, foi negligenciada uma cuidadosa reavaliação filosófica de outras características importantes da metapsicologia – características estas que estão em relação direta com quaisquer teorias filosófico-psicanalíticas da subjetividade. Na verdade, em conjunto com a ênfase no sujeito dividido, a complexidade conceitual da pulsão é geralmente sacrificada em um movimento apressado que trata os impulsos como nada mais do que entidades inconscientes vagamente definidas – energias libidinais fluidas que perturbam o ego consciente. Ora, essa visão é muito imprecisa.
4. O antagonismo constitutivo das pulsões é de natureza temporal
A deiscência interna da unidade pulsional envolve dois eixos [3] – um “eixo de iteração” e um “eixo de alteração”. O eixo da iteração consiste na fonte pulsional (a demanda regularmente repetida por satisfação emitida pela pulsão) e na pressão pulsional (o desprazer ou ansiedade que acompanha uma demanda não atendida provinda da fonte pulsional, ou seja, o avatar afetivo negativo do unidade-fonte).
Em contraste, o eixo de alteração consiste na meta pulsional (a obtenção da satisfação exigida pela fonte pulsional, ou, dito de outra forma, a redução das tensões experimentadas como resultado da pressão pulsional); e no objeto pulsional (o “representante ideacional” da pulsão, os traços mnêmicos de escolhas objetais privilegiadas influenciando as várias vicissitudes da pulsão).
Freud retrata o ponto de encontro desses quatro constituintes da pulsão (Trieb) como um reino entre soma e psique. No entanto, o que o tempo e a temporalidade têm a ver com tudo isso?
No nível mais amplo, a psicanálise contém em si uma tensão não resolvida. Por um lado, avança um esquema determinista em que o passado molda o presente e, devido à natureza essencialmente repetitiva da economia libidinal, nada muda de fato para o sujeito, uma vez que um certo número de fatores ontogenéticos esteja instalado. As noções usuais de “compulsão à repetição” e de “retorno do recalcado” revelam claramente essa suposição.
Por outro lado, em termos de seu significado filosófico mais amplo, a psicanálise acrescenta mais peso à afirmação de que a subjetividade é um fenômeno geneticamente emergente, que a própria relação subjetiva com a realidade objetiva sofre uma série diacronicamente desdobrada de metamorfoses decisivas. Por exemplo, o objeto pequeno a (objet petit a) de Lacan como objeto já-sempre perdido das pulsões é, no fundo, testemunho da importância das perdas para a análise, as quais são explicadas estritamente por meio de tais metamorfoses da estruturação da subjetividade.
Vista a partir de uma perspectiva psicanalítica devidamente formulada, a existência humana inscreve-se simultaneamente em vários registros temporais: a história de vida ontogenética do indivíduo registra-se em diferentes trilhas temporais; e essas faixas correm em velocidades variadas, sempre permanecendo em desarmonia e fora de sincronia umas com as outras.
Nas “Antinomias da Razão Pura” (sessão da Crítica da Razão Pura), Kant pretendeu demonstrar que uma lacuna separa para sempre o conhecimento da coisa, afasta o sujeito pensante da coisa em si (Ding an sich). Se a metafísica contém em si intermináveis conflitos e contradições, então o pensamento deve ser distinto de seu objeto, pois os objetos, naturalmente, não podem conter contradições.
A resposta bem conhecida de Hegel, na Lógica, é que Kant se aproxima da verdade, mas erra o alvo ao se recusar a reconhecer em sua descoberta dessas antinomias os próprios conflitos e contradições que formam a realidade objetiva per se – e não apenas as inadequações de um sujeito fechado em si mesmo, solipsista, preso na prisão de sua própria cognição.
O ponto de justaposição da aparente inconsistência teórica freudiana da repetição-versus-devir com a dinâmica internamente antagônica da pulsão cindida é semelhante à estratégia argumentativa de Hegel em relação a Kant.
A (a)temporalidade cíclica e repetitiva do eixo de iteração exige o “eterno retorno da mesma forma de satisfação” – a recuperação do objeto pulsional representativo inicial em sua forma passada não modificada; e essa demanda é em si absolutamente impossível de ser atendida pelo eixo de alteração, uma vez que o objeto constituído na experiência está em constante mudança correlativa às transformações do quadro subjetivo mediando o campo experiencial.
A torção hegeliana consiste em afirmar que a deiscência entre repetição quase-somática e o devir representacional, ideacional, não é uma contradição indicativa da inadequação do pensamento psicanalítico em relação ao seu objeto externo de investigação. Pelo contrário, a oposição entre essas ordens temporais nada mais vem a ser do que a realidade da própria pulsão (Trieb).
5. Os impulsos são inerentemente incapazes de atingir seus próprios objetivos.
A inibição do objetivo não é, como geralmente se observa, apenas o resultado da superposição de uma matriz estranha de condições governantes sobre os impulsos. Em vez disso, a inibição da meta é, antes de tudo, um subproduto do descompasso incorrigível entre a busca advinda da fonte pulsional e a essência do objeto pulsional, tal como apreendido por essa mesma busca. Seguindo as teses 3 e 4 acima, a plena satisfação dos impulsos em geral é inerentemente impossível.
As repetidas demandas do eixo de iteração por uma recuperação inalterada dos objetos passados das pulsões são necessariamente encaminhadas pela esfera volátil e efêmera dos elementos representacionais do eixo de alteração. O objeto perpetuamente obtido por esse desvio mediador, a mando da insistência no retorno do mesmo gozo, é, em virtude de suas próprias características determinadas estrutural e fenomenalmente, nunca a mesma coisa, nunca a coisa libidinal (Das Ding, como Lacan a chama) é buscada para sempre nos desfiladeiros da trajetória ontogenética do sujeito.
Em sua teoria da cultura – como encontrada principalmente nos textos posteriores – Freud subscreve implicitamente uma romantização fantasmática do passado. Em Civilização e os seus Descontentes, em particular, embora ele argumente claramente que o descontentamento é intrínseco à condição humana, parte da natureza humana, ele também afirma que a necessidade da imposição sociocultural da “renúncia instintiva” (como a causa primária do descontentamento) é algo resultante da história do desenvolvimento da humanidade.
Em outras palavras, apesar do tratamento do descontentamento como constitutivo, Freud ainda assim sustenta tacitamente que, se não fosse a interferência externa de fatores históricos contingentes, o indivíduo humano seria capaz de conviver pacificamente com seus impulsos, de se entregar livremente aos seus impulsos primitivos. Baseado em uma pseudo-história errônea do surgimento de organizações grupais na vida humana, Freud se apega a uma fantasia talvez inconsciente de um paraíso perdido – um “jardim de Éden” libidinal do qual a humanidade foi acidentalmente expulsa pela descoberta do estado de direito da civilização como um meio de organizar a existência coletiva.
Com base em certas linhas de raciocínio centrais para a teoria da cultura elaborada após 1920 pelo próprio Freud, o freudo-marxismo desdobrou uma interpretação do sujeito socio-psíquico – manteve, assim, uma interpretação que fica agarrada à crença na possibilidade de um gozo irrestrito dos impulsos semelhante àquela mantida pelo próprio de Freud, numa perspectiva regressiva. Para autores como Herbert Marcuse, a “libertação libidinal” será alcançada quando os mecanismos repressivos artificialmente sustentados do capitalismo forem abolidos.
Em Freud, a fantasia de uma economia libidinal desimpedida e (re)naturalizada é projetada em um passado histórico distante, um período mítico anterior ao surgimento da renúncia instintual socialmente imposta. Em algumas versões do freudo-marxismo, a única diferença em relação à Freud é que essa fantasia de uma satisfação final e exaustiva das pulsões é projetada em um futuro cada vez mais distante. A perspectiva excitante de uma “revolução” paira, em consequência, provocativamente, no horizonte.
A nostálgica romantização freudiana de um passado perdido e a antecipação messiânica freudiano-marxista da liberação libidinal são apenas dois exemplos, moldados por meio de esforços teóricos abstratos, dos recursos gerais pelos quais o inconsciente lida com a disfuncionalidade inerente da pulsão (Trieb): um fracasso metapsicológico que se mantém interno à dinâmica da economia libidinal – a invariância a-histórica da insatisfação decorrente da divisão conflituosa de toda e qualquer pulsão resultando, por assim dizer, em um “descontentamento anterior à civilização” – é projetada defensivamente como uma série de obstáculos externos contingentes.
O conceito freudiano de realidade — em suas diferentes formas da figura paterna, regras restritivas da sociedade etc. — torna-se o bode expiatório para o impasse insolúvel da pulsão. Embora a satisfação total e/ou o alívio final do sofrimento sejam impossíveis por várias razões, o inconsciente se apega aos impedimentos historicamente variantes de seu mundo exterior (Umwelt)como álibis – como meio de sustentar fantasias de um gozo que deve, necessariamente, permanecer sempre à devir.
6. O inconsciente funciona, em parte, para ocultar fantasticamente
do sujeito os impasses internos da economia libidinal
O inconsciente – que não deve ser equiparado à dualidade corpo/id das pulsões – é compelido a proteger o sujeito de um confronto esmagador com a natureza autodestrutiva da economia libidinal. Ele realiza essa tarefa por meio de duas estratégias coordenadas. Seu primeiro movimento é fabricar fantasias de gozo pleno, fantasias que tendem a expressar a mesma noção básica: se não fossem os obstáculos x, y ou z, o sujeito poderia gozar a vida sem problemas.
Essa noção básica é elaborada e embelezada por meio de uma infinidade de cenários e permutações em constante mudança. Por exemplo: “eu costumava ser capaz de me divertir, até que o evento traumático x veio a ocorrer”; “uma vez que eu supere as dificuldades x, y e z então serei finalmente feliz”; ou ainda, “todo mundo é capaz de ter prazer em uma existência felizmente simples sem ser perturbada por ansiedade, culpa e frustração” – a ideia essencial é a crença de que o gozo existe. Então, para sustentar essas fantasias – para evitar que sejam falsificadas pela atualização sem dúvida traumática das condições “libertadoras” fantasiadas – o inconsciente passa a contar com a presença constante desses vários obstáculos externos às pulsões.
Para colocar essa ideia no jargão freudiano tradicional, o recalque primário que funda a subjetividade é o gesto de fugir das exigências impossíveis do eixo da iteração da pulsão (Trieb). O sujeito então aceita as formas subsequentes de repressão secundária – desde a intervenção da figura paterna edipiana até as leis da civilização – como caminhos prontos para essa fuga. A engenhosidade dessa estratégia de repressão secundária é que ela permite uma fuga ilusória da ditadura interna das pulsões, ao mesmo tempo em que preserva convenientemente uma convicção psíquica sobre a possibilidade de reprimir as pulsões por meio de uma forma hipoteticamente obtida de satisfação/gozo.
No entanto, não se trata de argumentar que as formas históricas de repressão são simplesmente geradas pelo próprio inconsciente do sujeito. Nenhuma afirmação ridícula é feita aqui no sentido de que os indivíduos são subjugados por circunstâncias externas apenas porque desejam sê-lo ou que não se pode avaliar diferentes graus de sofrimento socialmente determinado.
Mas, de fato, o que merece ser enfatizado vem a ser (para usar novamente uma expressão hegeliana) a astúcia da razão libidinal – os múltiplos modos pelos quais as formações do inconsciente transformam necessidades impostas externamente em virtudes psíquicas internalizadas. Os seres humanos aprendem rapidamente os benefícios de abraçar suas correntes e de cantar dentro de suas próprias gaiolas. Em outras palavras, a economia libidinal adquire interesse em sua própria inibição.
O princípio do prazer não apenas consegue acomodar-se habilmente ao princípio de realidade – conforme o modelo ortodoxo de sublimação; em grande medida, o princípio do prazer torna-se completamente dependente do princípio de realidade que põe obstáculos às pulsões. Arriscando uma formulação metafórica, que adquire aqui uma expressão mais simples, tem-se: para o inconsciente, a grama é necessariamente mais verde do outro lado; a própria cerca é o dispositivo material prontamente disponível para sustentar essa crença. A remoção efetiva da cerca – a completa eliminação das barreiras da realidade à economia libidinal, ou, como diria Lacan, a transubstanciação do “gozo esperado” em “gozo obtido” – seria um dos piores traumas possíveis para o sujeito psíquico.
7. O superego proibitivo freudiano serve, em última análise, para proteger as fantasias defensivas do inconsciente e, portanto, também para resguardar o sujeito do ataque das fontes pulsionais como um superego corpóreo
Nas versões padrão da teoria freudiana, o superego é a voz psíquica da consciência. Essa função proibitiva interna é criada por meio da internalização do indivíduo de figuras de autoridade inicialmente externas (normalmente, advinda dos pais na situação edipiana).
O superego diz “não!” aos impulsos e inclinações das pulsões.
Freud tem o cuidado de destacar duas características importantes do superego:
- Primeiro, o superego, diferentemente das figuras de autoridade externas sobre as quais encontra-se modelado, é algo do qual o sujeito não pode escapar. Embora o indivíduo possa potencialmente evitar as punições de outros evitando ser pego no pulo ou fugindo fisicamente, o tribunal persecutório interno do superego sabe tudo, vê tudo e é invariavelmente bem-sucedido em executar seus veredictos de culpado. O olhar da consciência não pode ser evitado.
- Em segundo lugar, a “energia” do superego é emprestada do id – isto é, o superego canaliza a agressão no nível do id. Essa agência psíquica é o compromisso subliminar final entre os impulsos e a civilização: o superego traz a intencionalidade e a conduta do indivíduo em conformidade com os requisitos da existência humana coletiva, ao mesmo tempo em que oferece um caminho de descarga um tanto aliviadora para tendências agressivas e socialmente desestabilizadoras.
Esse projeto, tal como foi resumido nas seis teses anteriores, tem várias implicações para esse conceito freudiano. Para começar, Freud se esforça para responder à questão de como ou por que os indivíduos realizam uma internalização da autoridade externa, uma aceitação e automanutenção de restrições aparentemente indesejáveis sobre suas economias libidinais.
A versão metapsicológica tradicional da dicotomia entre princípio de prazer versus princípio de realidade é insuficiente; tudo o que ela seria capaz de afirmar é que os sujeitos se conscientizam da presença não eliminável de um mundo exterior (Umwelt) restritivo, enquanto continuam a buscar o “prazer” por meios alternativos expeditos (os desvios da sublimação, em que a realidade é simplesmente algo que desvia, mas não perturba, a regra do princípio do prazer).
Essa versão falha totalmente em explicar por que um ser inicialmente governado pelo id – o filho “polimorficamente perverso” da psicanálise – não apenas faz um balanço da realidade externa, mas introjeta/internaliza espontaneamente essas restrições na forma de uma agência psíquica especial. Se os indivíduos nascem no mundo como meros feixes de impulsos, como organismos puramente em busca de prazer, então como é que as sementes germinais do superego criam raízes?
A psique não rejeitaria essa entidade estranha como o corpo rejeita um transplante de órgão malsucedido? A teoria da unidade dividida fornece uma resposta a essas perguntas preocupantes, uma resposta que consiste em três afirmações:
Primeiro, Freud está incorreto quando descreve o superego como a primeira autoridade interna da qual o sujeito não pode fugir. Os tiranos originalmente inescapáveis da vida psíquica são, na verdade, fontes pulsionais que emitem suas injunções incessantes para a busca intransigente da gratificação – pode-se chamar o conjunto dessas injunções de “superego corpóreo”.
Em segundo lugar, as demandas das fontes de acionamento são impossíveis de serem atendidas. Assim, como explicado nas teses 5 e 6 acima, os impedimentos da realidade são pressionados a serviço de sustentar uma economia libidinal fracassada e implodida – essa segunda afirmação já sugere uma solução para os problemas de Freud ao explicar por que as pulsões acabam capitulando à realidade.
Terceiro, para garantir uma barreira protetora às pulsões mais confiável do que as variáveis condições empíricas apresentadas pelo imprevisível mundo exterior (Umwelt), uma agência proibitiva (a saber, o superego freudiano) é estabelecida no mundo interior (Innenwelt) da psique como garantia contra o trauma de vivenciar as pulsões – trauma resultante da descoberta de que o gozo esperado do outro lado dos obstáculos que o cercam se transforma imediatamente em algo decepcionante, ou mesmo repugnante, uma vez obtido.
Em outras palavras, a intrínseca incapacidade do sujeito de responder “ao chamado do dever libidinal” – de acordo com a insistência dos impulsos sobre o gozo – é velada por um superego que impede o sujeito de tentar em primeiro lugar.
Evidência disso inclui o “paradoxo econômico” freudiano do masoquismo: quando o contexto do ambiente vivido do sujeito se torna mais permissivo em relação às suas inclinações reprimidas, o superego se torna, curiosamente, ainda mais severo em seus comandos categóricos e punições afetivas.
Uma vez que o superego é, em última análise, uma espécie de apólice de seguro contra as oportunidades secretamente indesejadas de atualizar os impulsos e seus correlatos fantasmáticos inconscientes, a economia masoquista em ação entre as restrições externas da realidade e a proibição interna do superego é essencialmente um sistema de soma zero. Simplificando, quanto mais permissiva a realidade se torna, mais proibitivo se torna o superego; inversamente, quanto mais proibitiva se torna a realidade, menos restritivo se torna o superego — um sempre assume o lugar do outro.
O comando original e arcaico do superego lacaniano – como superego corpóreo, como “corpo-Real” – que manda “gozar!” ocupa o lugar do imperativo do superego freudiano que envida a “renunciar!” E, no entanto, isso também é um ardil por parte da pulsão (Trieb). Se os objetos arcaicos das pulsões não podem ser, como diz Freud, refundados, então a proibição supérflua desses objetos impossíveis (uma proibição sustentada tanto pelo princípio de realidade quanto pelo superego) funciona para ocultar essa impossibilidade por trás da fachada de barreiras aparentemente elimináveis. Ora, essas barreiras se manifestam como regras impostas, leis e condições circunstanciais adversas, bem como “intervenções pessoais”.
Como Lacan pode ter expressado, os sujeitos humanos são confrontados com uma escolha forçada entre “mau ou pior”: ou com uma aceitação do descontentamento de baixo nível da renúncia instintual, ou, pior, com uma perda da confortável distância cotidiana das pulsões que à desumanização e escravização, resultando em uma redução a meros fantoches da natureza lutando de modo psicótico com as forças vorazes desses mestres corporais irracionais e caprichosos.
[1] Johnston, Adrian – Time driven – metapsychology and the splitting of the drive. New York: Northwestern University Press, 2005.
[2] N. T.: Ou seja, seria puramente ilusória.
[3] N. T. O autor usa a palavra “eixo” provavelmente para se referir àquilo em torno do qual as coisas giram.
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