O artigo apresentado em sequência, de Frank Grohmann, apesar de difícil compreensão, mostra como o personalismo insuportável de Jacques Lacan cria uma enorme confusão ao tentar de se apropriar de frases de Marx para sustentar tanto a sua teoria do significante quando a sua hipótese do “estágio do espelho”.
Título original: Entre um casaco e 10 varas de linho: o problema do equivalente
Autor: Frank Grohmann – Artigo publicado no Blog Palim-Psao em 3 de março de 2022
A menção que se segue à obra de Karl Marx feita por Jacques Lacan em um de seus seminários, que então se realizava há cinco anos, apresenta boas razões para merecer nossa atenção.
É disso que se trata; eis o que quero apresentar no final da lição de hoje; é assim que a introduzo: a metonímia é propriamente o lugar onde devemos situar esse algo primordial, mas também essencial da linguagem humana na medida em que é possível apreendê-la. Ao contrário, a dimensão do sentido, ou seja, a diversidade desses objetos já constituídos pela linguagem em que se introduz o campo magnético do desejo de cada um, com as suas contradições. Eis a resposta que apresentei anteriormente, essa coisa outra que talvez pareça paradoxal, que é a dimensão do valor.
E essa dimensão de valor é propriamente algo que tem sua dimensão de sentido numa relação. Eis que esta repousa e se impõe como ser em contraste, como sendo outro lado, como sendo outro registro. Se alguns de vocês estão familiarizados o suficiente, não estou dizendo sobre O Capital como um todo — quem leu todo O Capital! — mas com o primeiro livro de O capital que todos em geral leram. Veja-se a página onde Marx, ao nível da formulação do que se chama a teoria da forma particular do valor da mercadoria. Aí, em uma nota de rodapé, Marx se mostra como um precursor da [minha teoria do] “estágio do espelho”.
Nesta página, neste primeiro livro prodigioso que mostra – coisa rara – alguém que detém um discurso filosófico articulado, Marx faz uma observação superabundante. Bem aí, faz esta proposição: antes de qualquer tipo de estudo das relações quantitativas de valor, é preciso afirmar que nada pode ser estabelecido exceto primeiro a forma geral desse tipo de equivalência fundamental.
Não se diz simplesmente que tantas varas de linho são iguais à certo número de casacos; para tal, é preciso que algo já esteja estruturado por meio da equivalência linho-casaco, a saber, que o casaco pode representar o valor das varas de linho. Não é, portanto, que o casaco seja algo que se possa vestir, mas sim que há algo necessário no início da análise: o fato de que o casaco pode se tornar o significante do valor das varas de linho. Que, em outras palavras, a equivalência que é chamada valor se deve propriamente ao abandono por parte de um ou outro desses dois termos — 1 casaco, 10 varas de linho — de uma parte igualmente importante de seu significado”.
É nessa dimensão que se situa o efeito de sentido da linha metonímica. E é isso o que nos permitirá, a seguir, descobrir por que se deve considerar os efeitos de sentido nos registros da metáfora e da metonímia. E eles se relacionam, nessa consideração, a uma dimensão, a uma perspectiva que é aquela essencial que nos permite reencontrar o plano do inconsciente. É isso que nos obriga a apelar precisamente, e de certa forma centrados nisso, à dimensão do Outro enquanto lugar, o receptor, o pivô necessário deste exercício.
Jacques Lacan – As formações do inconsciente, 27 de novembro de 1957.
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(…) apresenta boas razões para merecer nossa atenção.
Não porque Lacan insinue aí que alguns de seus ouvintes estão “bastante familiarizados” com o primeiro livro de O capital, “o qual todos em geral leram” – o que, entretanto, é contrariado no seu discurso por uma insinuação na forma de um piscar de olhos: quem já leu os três livros?
Não também por causa do elogio exuberante de Lacan ao “discurso filosófico articulado” encontrado no primeiro livro de O capital (“raro”, “prodigioso”, “superabundante”). Tem-se aqui uma trindade de admiração que o próprio Marx provavelmente não gostaria de vê-las juntas! Por que, afinal, a sua análise da lei do movimento econômico da sociedade moderna toca primeiro, da maneira mais sensível, no fundamento de todo discurso filosófico?
Se, portanto, é preciso seguir atentamente a referência do psicanalista ao teórico da crítica da economia política, vem a ser por causa da menção que ele faz à “dimensão do valor”. Essa referência pode ser assim decomposta: 1. a dimensão do valor é primordial e essencial à linguagem humana; 2. a dimensão do valor situa-se no lugar da metonímia (diferente da metáfora); 3. a dimensão do valor se opõe ou está em oposição à metáfora. 5. na formulação da teoria da forma do valor relativo da mercadoria, Marx revela-se numa nota de rodapé como precursor do “estágio do espelho” de Lacan.
Os pontos 1., 2. e 3. dizem respeito à própria teoria de Lacan neste contexto: a linguagem humana, a distinção entre metáfora e metonímia, o lugar da questão do sentido. O ponto 5. diz respeito não menos à teoria lacaniana, mas Lacan aqui toma Marx como fiador; ora, quem pode acreditar que Marx já falava do “estágio do espelho” (lacaniano)! Todos esses aspectos têm como condição preliminar o ponto 4, a saber: Lacan se refere aí às suas leituras das passagens do primeiro livro de O capital (livro que trata, como se sabe, do processo de produção do capital).
Nosso comentário, portanto, começa aqui e se concentrará principalmente neste ponto 1. Após isso, falaremos então sobre os outros pontos mencionados 2. e 3.
Ponto 1. Interessa-nos aqui apontar trechos da primeira seção do primeiro capítulo – mercadoria e dinheiro –, em que Marx trata da “mercadoria” distinguindo, sob quatro títulos principais, os dois fatores da mercadoria, o valor de uso e o valor (substância do valor e grandeza do valor), enfatizando o duplo caráter do trabalho representado nas mercadorias, nomeando a forma do valor ou valor de troca e, finalmente, trazendo à tona o caráter fetichista da mercadoria e seu segredo. Marx parte da forma simples, individual ou acidental do valor, depois passa para a forma total ou desdobrada do valor, depois para a forma geral do valor, antes de chegar à forma dinheiro.
Nesse contexto, o comentário de Lacan gira em torno da oposição entre “casaco” e “varas de linho”. Marx introduz essa oposição para destacar o “ponto de partida” em torno do qual gira a compreensão da economia política, a saber, a “natureza bífida do trabalho contido na mercadoria”. “Consideremos duas mercadorias” – começa Marx –, “por exemplo, um casaco e 10 varas de linho. Vamos supor que o primeiro tenha o dobro do valor das varas do linho, nesse caso, se 10 varas de linho = V, então 1 casaco = 2 V.” Bastam, assim, cinco páginas para Marx desmascarar, a partir daí, esse “duplo caráter do trabalho representado nas mercadorias”: o trabalho “produz valores de uso” e, assim, “constitui o valor mercantil”. Voltaremos a isso.
É a esse tratamento da forma simples do valor que Lacan se refere em particular em seu comentário: “o segredo de toda forma-valor” – continua Marx – “está nessa forma simples de valor”: a saber, que “x mercadoria A = y mercadoria B” ou “x mercadoria A é igual a y de mercadoria B. A partir daí, Marx define os dois polos da expressão do valor, a “forma-valor relativa” e a “forma-equivalente”. Eis o que diz: “duas mercadorias de tipos diferentes A e B, o linho e o casaco em nosso exemplo, obviamente desempenham aí dois papéis diferentes. O linho expressa seu valor no casaco, o casaco serve de material para essa expressão de valor. A primeira mercadoria desempenha um papel ativo, a segunda, um papel passivo”.
O valor da primeira mercadoria é apresentado como valor relativo, ou ainda, essa mercadoria está na forma de valor relativo. A segunda mercadoria funciona como equivalente, ou ainda, encontra-se na forma equivalente. Não há forma-equivalente, portanto, sem forma-valor relativo: “Forma-valor relativa e forma-equivalente são dois momentos inseparáveis, que fazem parte um do outro e se condicionam mutuamente; mas, ao mesmo tempo, são extremos opostos que se excluem: polos da mesma expressão de valor”.
Do que se deve concluir, segundo Marx, que “o valor do linho só pode, portanto, ser expresso de maneira relativa, ou seja, em outra mercadoria. A forma-valor relativa do linho implica, portanto, que haja alguma outra mercadoria na forma equivalente, oposta a ela. E, além disso, essa outra mercadoria que aparece como equivalente não pode ser encontrada ao mesmo tempo no valor-forma relativo. Ela não expressa o seu próprio valor, mas apenas fornece o material para a expressão de valor de outra mercadoria”.
Em outras palavras: “A mesma mercadoria não pode, portanto, apresentar-se simultaneamente em ambas as formas na mesma expressão de valor. Estas, pelo contrário, são mutuamente exclusivas”. Daí finalmente chega ele à seguinte conclusão: “Quanto a saber agora se uma mercadoria se encontra na forma de valor relativo ou na forma oposta de equivalente, isso depende exclusivamente do lugar que ela ocupa cada vez na expressão de valor, dependendo se é a mercadoria que expressa o valor ou, ao contrário, aquela em que se expressa o valor”. Assim se estrutura, portanto, a relação de troca entre as duas mercadorias.
Marx então examina mais de perto a “forma-valor relativa” e a “forma-equivalente”. O estudo da primeira começa com a questão de descobrir “como a expressão do valor simples de uma mercadoria se encontra na relação de valor de duas mercadorias”. De acordo com Marx, esta relação de valor deve primeiro ser considerada “independentemente de seu aspecto quantitativo”; se procedermos “de maneira exatamente oposta”, como é o caso na maioria das vezes, “vendo na relação de valor apenas a proporção em que determinados quanta de dois tipos de mercadorias são equivalentes”, não vemos, continua Marx, “que as grandezas de coisas diferentes só se tornam quantitativamente comparáveis quando reduzidas à mesma unidade. É apenas como expressões da mesma unidade que são grandezas do mesmo nome, portanto comensuráveis”.
Chegamos assim à passagem do texto de Marx sobre a qual Lacan se apoia em seu comentário, o qual ele reproduz da seguinte forma: Marx mostra aqui, diz ele, que “antes de qualquer tipo de estudo das relações quantitativas de valor, é preciso afirmar que nada pode ser estabelecido exceto primeiro a forma geral desse tipo de equivalência fundamental “. Lacan está aqui inteiramente de acordo com Marx? Sobretudo porque este último acrescenta no mesmo lugar: “que 20 varas de linho = 1 casaco, ou seja, que uma determinada quantidade de linho valha um grande ou um pequeno número de casacos, tudo o que essas proporções implicam é que o linho e o casaco são, como grandezas de valor, expressões da mesma unidade, coisas da mesma natureza. A base da equação é: linho = casaco”.
É preciso olhar isso mais de perto. Lacan certamente tem razão quando diz que Marx “não se diz simplesmente que tantas varas de linho são iguais à certo número de casacos”. Tem razão também quando conclui que “já há algo estruturado na equivalência linho-casaco, a saber, que a roupa pode representar o valor do linho“. Mas, segundo Marx, essa estruturação, como acabamos de ver, longe de levar a uma simples “equivalência entre o linho e o casaco” (conforme Lacan), acaba por ser mais complexa; porque, no que diz respeito à sua relação de troca, ou o linho ou a roupa podem ocupar o lugar de equivalente; ou melhor: uma mercadoria tomou a forma de equivalente em relação à outra mercadoria, a qual, portanto, está na forma de valor relativo.
O equivalente (Marx não fala de “equivalência”) está sempre apenas de um lado e ao mesmo tempo depende do outro lado dos dois polos da expressão do valor. Assim, em Marx, o “casaco” representa apenas “o valor do linho” (Lacan), na medida em que duas formas são ao mesmo tempo os dois momentos (associados, interdependentes, inseparáveis) e os extremos ou polos (mutuamente exclusivos, opostos) da mesma expressão de valor. Se, segundo Marx, o valor só pode ser expresso de maneira relativa, é no sentido de que a forma relativa do valor de uma mercadoria (o linho) supõe que outra mercadoria está em relação a ela (o linho) na forma de equivalente.
É claro que é a expressão formal de Marx “linho = casaco” que pode enganar facilmente o leitor; ela permite a Lacan cometer uma imprecisão não negligenciável. Pois, se “linho = casaco”, como escreve Marx, é a “base da equação”, tem-se uma equação como base de uma equação? Bem, isso só é válido na condição de que essa base, segundo ele, nunca possa ser apreendida por meio de um único golpe de olhos, ou seja, abarcando ambos os lados ao mesmo tempo. Em outras palavras, são necessários dois olhares distintos e sucessivos, cada um das quais lidando apenas com um dos aspectos da mesma equação (a qual se encontra aparentemente duplicada). É só assim que se consegue apreender não duas equações, mas apenas uma duplicidade de equações.
A concepção de Lacan da expressão “linho = casaco” de Marx como “equivalência fundamental” permanece (demasiado) imprecisa:
Por um lado, porque não problematiza a lógica da redução, a partir da qual, em Marx, as grandezas de coisas diferentes tornam-se quantitativamente comparáveis. Quando Marx formula “linho = casaco é a base da equação”, esse sinal de igualdade só se encontra a partir de uma redução das grandezas de coisas diferentes à mesma unidade, a saber: “valor”. A impressão dessa duplicação (quase louca) da equação se deve a esse duplo sinal de igualdade (por assim dizer racional). De fato, esses sinais de igualdade não dizem respeito à mesma equação: o primeiro iguala a mercadoria na forma de valor relativo à mercadoria na forma de equivalente, o segundo apresenta a igualação que pressupõe uma redução das grandezas de coisas diferentes e mesma unidade, a magnitude do valor.
Por outro lado, Lacan não leva em conta o fato de que as duas mercadorias “qualitativamente equalizadas não desempenham o mesmo papel nessa relação. Porque, como explica Marx: “só o valor do linho é expresso”. Como? Pela sua relação com o casaco, considerado como seu “equivalente” ou como “trocável por ele”. Nessa relação, a vestimenta é tomada como forma de existência do valor, coisa-valor, porque só como tal vem a ser a mesma coisa que o linho. Por outro lado, o próprio “ser valor” do linho ganha destaque ou adquire uma expressão autônoma, pois é somente como valor que ela pode ser referida ao casaco como algo de mesmo valor ou trocável por ele.
A teoria do valor de Marx pressupõe assim as distinções necessárias entre coisa- valor, ser valor e magnitude do valor. Mas, ao longo das paráfrases de Lacan, esses contornos da “dimensão do valor” (segundo Lacan) assim estruturados tornam-se indistintos. E, ademais, é nossa tese agora que Lacan esquece completamente esse ponto em torno do qual, segundo Marx, “gira toda a compreensão da economia política”.
Porque é finalmente só em torno deste “ponto” que Marx aborda a relação de troca entre dois bens e coloca a questão de saber o que significa a equação “10 varas de linho = 1 casaco”. A resposta é “que há algo comum e da mesma dimensão em duas coisas diferentes”! Dito de forma um pouco diferente: “as duas coisas”, 1 casaco e 10 varas de linho, “são, portanto, iguais a uma terceira, que em si não é nem uma nem outra”. Ou seja: “cada uma dessas duas coisas”, 1 casaco e 10 varas de linho, “na medida em que se põe como um valor de troca, deve, portanto, ser redutível a este terceiro”: “deve-se reduzir os valores de troca de mercadorias por algo que lhes é comum e que representam maior ou menor quantidade”.
Esta coisa em comum ou essa coisa terceira não pode, portanto, ser uma “propriedade natural… geométrica, física, química ou qualquer outra” das duas mercadorias. Pois, a redução a esta coisa em comum ou a essa coisa terceira – também chamada “abstração do valor de ‘uso’ — apaga qualquer qualidade sensível do produto de trabalho. Em outras palavras, consiste na redução de diferentes formas concretas de trabalho ao “trabalho humano idêntico, ao trabalho humano abstrato”.
Assim é claramente designado o “ponto” essencial de Marx para a compreensão da economia política em geral, ponto este que Lacan parece ter esquecido na noite de 27 de novembro de 1957: certamente, todo trabalho é “gasto da força de trabalho humana”, mas “como trabalho contido na mercadoria”, ele é de “natureza dual”. Ou seja, “como trabalho representado na mercadoria”, ele assumiu um “caráter dual”: como trabalho útil concreto, produz valores de uso, como trabalho humano idêntico ou trabalho humano abstrato, constitui o valor da mercadoria.
Mas isso não se faz sem que os corpos das mercadorias sejam revestidos de uma “objetividade fantasmagórica “. E essa aparência, a partir de agora, se ligará a eles como uma segunda pele, tanto como “mera geleia de trabalho humano indiferenciado” quanto como “cristalização de essa substância social, que lhes é comum”.
A equação “1 casaco = 10 varas de linho” contém em si, portanto, o elemento comum que se apresenta na relação de troca da mercadoria: o valor. “1 casaco” e “10 varas de linho” são “valores – valores mercantis”, mas apenas na objetividade fantasmagórica de uma substância social que lhes é comum: o trabalho abstrato.
Essa resposta à pergunta sobre o que essa equação diz leva inevitavelmente à seguinte pergunta: “como então medir a magnitude de seu valor?” Qualquer abordagem da teoria marxista do valor que se esqueça da elaboração que Marx dá a essa segunda questão só pode distorcer indevidamente a “dimensão do valor” (conforme Lacan) na modernidade produtora de mercadorias. Uma vez que um valor de uso ou um bem, portanto, só tem valor porque o trabalho humano abstrato é nele objetivado ou materializado, a resposta à questão de como medir a magnitude do valor deve ser: “pelo quantum de ‘substância constitutiva do valor’ que contém, pelo quantum de trabalho”.
Ponto 2. Resta saber explicar por que Lacan se deixou distrair ao contemplar o “ponto” de Marx. Há boas razões para pensar que a resposta está simplesmente no fato de que o “ponto de partida” de Lacan, na noite de 27 de novembro de 1957, foi algo bem distinto.
Com efeito, quando Lacan formula que a estruturação da equivalência linho-casaco, necessária para que a roupa represente o valor do linho, ele parte do ponto segundo o qual o casaco “pode tornar-se o significante do valor do linho”. Não se trata apenas que aqui o seu ponto saliente se revele como uma teoria do significante – elemento essencial do projeto de renovação, a partir de dentro, dos fundamentos da psicanálise, na medida mesmo em que estes se encontram na linguagem. Eis que para essa reelaboração, Lacan se baseou então na linguística estrutural; mas o “valor” em questão aqui acaba sendo um conceito linguístico que não deve ser confundido com o conceito de valor de Marx. [1]
É, portanto, contra esse pano de fundo próprio dele mesmo e, portanto, não contra aquele da análise da forma simples do valor próprio de Marx, que devemos entender o que Lacan quer dizer quando se refere a “dimensão do valor”. E é neste mesmo pano de fundo que devemos ler a afirmação de Lacan segundo a qual, por um lado, a dimensão do valor é “o oposto” da “dimensão do sentido” e, por outro, “a equivalência que é chamada valor se deve propriamente ao abandono por parte de um ou outro desses dois termos — 1 casaco, 10 varas de linho — de uma parte igualmente importante de seu significado”.
A confusão resulta deste ponto de partida de Lacan, qual seja ele, o abandono de uma parte muito importante do significado dos termos em jogo (Lacan); ora, isso é confundido com a redução das grandezas de coisas diferentes à mesma unidade (Marx). Para não correr o risco de cair desde o primeiro passo em uma ou outra armadilha homológica, é preciso evitar novas tentativas de querer relacionar as categorias da crítica marxista da economia e da crítica psicanalítica da consciência (R. Kurz).
Ponto 3. A partir daí, é preciso admitir que Lacan deu mais que uma piscadela quando quis usar Marx como “precursor” de seu estágio de espelho.
Vejamos de perto: a sua análise põe Marx na seguinte frase: “graças à relação de valor, a forma natural da mercadoria B torna-se, portanto, a forma valor da mercadoria A, ou então o corpo da mercadoria B torna-se o espelho do valor da mercadoria A”. Segue-se em O capital a seguinte nota de rodapé, à qual se refere Lacan: “em certos aspectos, ocorre com o homem o que ocorre com a mercadoria. Como não vem ao mundo provido de espelho, nem da fórmula do ego fichtiano, o homem se olha primeiro no espelho de outro homem. É somente por meio de seu relacionamento com o homem Paulo, seu semelhante, que o homem Pedro se refere a si mesmo como um homem. Mas ao fazê-lo, o Paulo em questão, com toda a sua corporeidade paulina em carne e osso, é também reconhecido por ele como uma forma fenomenal da raça humana.
Na melhor das hipóteses, Lacan responde aqui com uma observação divertida a uma piada do próprio Marx. Pois, como sempre, o espelho sedutor consegue enganar também aqui; o valor aparentemente torna-se aqui o “fundamento da equação” de Pedro e Paulo, mas na realidade isso esconde uma relação de equivalência demasiado mal apreendida na reflexão. Porque, mais uma vez com Marx, o espelho não está entre os dois, mas apenas de um lado da equação! Mas, e se a piada de Marx não puder ser transposta na teoria de Lacan? Então também não poderemos apreender seriamente o que há entre o homem e a mercadoria, a saber: a hipótese psicanalítica do inconsciente.
Esta é uma versão escrita do seminário “Psicanálise e Capitalismo” realizado em 12 de março de 2022 no Café Plume, em Berlim.
[1] Nota em francês do autor: F. Rastier (2002), « Valeur saussurienne et valeur monétaire », L’information grammaticale, 95, 2002, S. 46-49; L. Depecker (2012), « L’élaboration du concept de « valeur» dans les manuscrits saussuriens », Langages, 2012/1 (n° 185), S. 109-124; A. d’Urso (2015), «Théories économiques et sémiotiques de la valeur. Une approche homologique et une proposition inédite », SynergiesItalie, n° 11, 2015, S. 37-49.
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