Crítica à filosofia de Heidegger

Niilismo do sujeito moderno [1]

Autor: Matthew McManus

Heidegger ocupa uma posição curiosa como pensador de extrema-direita. Como Nietzsche, ele é inegavelmente um filósofo brilhante. O trabalho de Heidegger teve uma influência verdadeiramente surpreendente na cultura intelectual mais ampla, inclusive em todo o espectro político. Autores tão diversos como Jacques Derrida, Jordan Peterson, Richard Rorty e Alexander Dugin o descreveram como uma influência formativa. Por outro lado, porém, ao contrário de Nietzsche. Heidegger aderiu o seu nome e prestígio ao partido político mais sinistro de todos os tempos.

Não só isso, o envolvimento de Heidegger com o nazismo não foi casual nem puramente oportunista. Fluiu de profundas convicções formadas durante a década de 1920, muitas vezes em diálogo ou influenciadas por outras figuras da “Revolução Alemã”, que foram animadas pela hostilidade à República de Weimar. Essas disposições reacionárias evoluíram para fornecer credibilidade intelectual ao partido nazista quando chegou ao poder em 1933 e lhe dar apoio institucional durante o breve mandato de Heidegger como reitor de Freiburg.

Tudo isso parece fazer de Heidegger um autor reconhecidamente político. Porém, os escritos filosóficos de Heidegger podem parecer resolutamente apolíticos. Os apologistas convencionais do trabalho de Heidegger às vezes apontam para essa falta de uma linguagem abertamente política como um sinal de que o núcleo profundo de sua filosofia não foi tocado pelos seus erros pessoais de apoio ao nazismo. Contudo, Heidegger nunca se desculpou por seu envolvimento com esse extremismo, ainda que o tenha minimizado post factum sempre que possível.

Assim, a escrita de Heidegger pode parecer – além de sua densidade bem conhecida – amoral e apolítica. Contudo, de fato, não soe ser assim. Pois, Heidegger está convencido da natureza caída e niilista da modernidade. Eis que, para ele, a política e a moralidade, herdadas da história da metafísica ocidental, mostra-se cúmplice em potência desse problema.

Em consequência, ele julga necessário criar um vocabulário inteiramente novo para tratar das normas que cercam o bem e o mal, a liberdade e a igualdade. A esse respeito, Heidegger segue Nietzsche na totalidade de sua crítica à modernidade ocidental, embora o seu discurso seja quase sempre ontológico e não psicológico e estético. Até hoje, os descendentes neofascistas de Heidegger, impressionados com essa crítica, acolhem a tese de que é necessário buscar outro começo, o qual supostamente escapará das limitações da metafísica ocidental e seu colapso imanente no niilismo devido à ocultação do Ser.

Apresentar a história desse esquecimento ao longo do curso da metafísica ocidental foi a tarefa a que se dedicou Heidegger. E ela é vital para entender sua rejeição ao liberalismo, ao socialismo e à democracia. Contudo, o pensamento de Heidegger não é “coextensivo” com o nazismo. Uma complicação adicional é que a obra mais famosa de Heidegger, Ser e Tempo, vem a ser uma fenomenologia existencial que parece ter pouco a dizer sobre política até as seções finais sobre autenticidade e os perigos da massa – que ele via como “eles”.

Heidegger considera que o pensamento moderno gira em torno da filosofia do sujeito que, de Descartes a Kant, assume características universalistas. Ao assumir esse universalismo, esse pensamento põe um igualitarismo que mina as suposições sobre a superioridade intrínseca de uns poucos sobre muitos. Ao reagir a essa dimensão humanista e democrática que lhe é inerente, Heidegger torna-se crítico da filosofia do sujeito. Ele a acusa de humanista.

Ora, ele não teria alguma razão? As variantes individualistas possessivas da filosofia do sujeito apresentadas, especialmente pelos primeiros pensadores modernos, não eram antropológica e politicamente equivocadas? Eles merecem a condenação generalizada que receberam em Ser e Tempo? O livro principal de Heidegger, assim como Kant e o Problema da Metafísica, seguem Husserl na crítica ao idealismo transcendental na redução que fez do mundo ôntico da experiência do sujeito a meros fenômenos constituídos pela razão.

Na base de Ser e Tempo está a preocupação de Heidegger com o esquecimento do Ser. Eis que não fica claro até o final porque isso é politicamente significativo. A sua crítica à filosofia do sujeito assume a forma de uma rejeição da insistência cartesiana-kantiana de que na base da vida humana está a razão e sua apreensão dos objetos do pensamento e da experiência. Em vez disso, Heidegger põe um sujeito negado. E o faz afirmando a primordialidade estrutural do Dasein – aquela entidade que “em seu ser, esse ser se preocupa com seu próprio ser” – central, então, não seria mais a razão, mas o cuidado.

Essa posição obviamente se baseia muito na tradição existencial que precedeu Heidegger, originada principalmente em Soren Kierkegaard. Heidegger sistematiza as percepções de pensadores existenciais anteriores e amplia massivamente o seu escopo para pensar outras áreas da filosofia, desde a epistemologia até a práxis.

Um exemplo é como Heidegger repensa a apreensão fenomenológica do Dasein. O seu “mundo” não é apreendido em termos do sujeito racionalista que avalia imparcialmente os dados dos sentidos, mas em termos dos projetos que ele propõe para si mesmo dentro do tempo. Heidegger, assim, apresenta uma ontologia/epistemologia pluralista, uma vez que cada Dasein pode apreender seu mundo de maneira diferente, dependendo tanto da natureza de seus projetos quanto dos contextos históricos que os circunscrevem.

Para um camponês alemão tradicionalista na Floresta Negra, um rio pode aparecer como parte da ecologia natural do ambiente vital para a irrigação das plantações; para um tecnocrata racionalista, ele aparece como uma coleção móvel de moléculas de hidrocarbonetos que podem ser tecnicamente manipuladas para gerar energia elétrica. Embora ambos os enquadramentos do rio tenham um grau de validade, nenhum deles é totalmente ontológico e Heidegger deixa muito claro o que ele prefere mesmo no nível ôntico.

Ademais, Heidegger acrescenta outra contribuição original através da teorização de uma fenomenologia extática do tempo. Ele demonstra como a ideia racionalista de que a experiência do tempo do Dasein é puramente presentista não pode explicar como seus humores e projetos são determinados por uma relação extática com o passado e o futuro. Seja uma “sujeito” situado no tempo. Qualquer hermenêutica de sua atividade seria vazia se não se compreende a relação extática entre passado, presente e futuro e como cada um se dobra um sobre o outro enquanto atua.

Heidegger prossegue argumentando que os filósofos convencionais cometeram um erro grave por meio de sua compreensão inadequada da fenomenologia do tempo e sua relação com o cuidado. Kant é visado em especial por sua homologação dos tempos newtonianos e da intuição transcendental do tempo dos seres humanos, caracterizando ambos como uma progressão linear que vai de pontos fixos para pontos fixos.

Até esse ponto, parece que projeto filosófico de Heidegger nada tem de censurável. Parece que ele teria contribuído de maneiras importantes para uma reconceituação do sujeito racionalista. Ele estaria chamando a atenção de volta para a inserção contextual do sujeito em um mundo ricamente temporal de projetos. Ora, uma crítica central que se pode fazer é que Heidegger não vai longe o suficiente; devido à influência persistente de Husserl, Heidegger mantém uma fixação na filosofia idealista da consciência, mesmo quando tenta sair dela.

Uma crítica marxista da filosofia de Heidegger [2]

György Lukács

Em sua Carta sobre o humanismo, escrita no período posterior à derrota do nazismo, Heidegger – diz Lukács – faz “essencialmente uma autodefesa contra conclusões que – tidas como erradas – foram tiradas de sua produção pré-fascista, ou seja, em Ser e Tempo. A questão central é o humanismo. Heidegger reconhece que seu trabalho principal se dirige contra o humanismo. Mas ele acrescenta:

Esta oposição não significa que um tal pensar se bandeie para o lado oposto do humano, defendendo o inumano e a desumanidade e degradando a dignidade do homem. Pensa-se contra o humanismo porque ele não instaura a humanitas do homem numa posição suficientemente alta”.

Ademais, “em outro lugar ele se defende vigorosamente contra as acusações de que essa posição tenha algo a ver com irracionalismo, com o ateísmo e com o niilismo” próprio dele mesmo. Ora, “seria superficial ver a posição atual de Heidegger sobre o humanismo como um mero argumento verbal.”, ou seja, sem compromisso com a prática.

Eis que ele julga que o poeta alemão Höderlin teria apresentado uma visão do humanismo mais profunda, essencialmente primordial. E essa visão, por exemplo, propiciaria ir além da compreensão ordinária, supostamente superficial – é ele que aponta para esse caso –, das ações violentas e das barbáries cometidas dos partidários de Hitler”.

“Ele fala em ultrapassar o humanismo, em ir além do “mero cosmopolitismo” analisando esse caso; por isso, Lukács diz que “essas frases de Heidegger soam, no mínimo, um tanto suspeitas. Pois, ele diz “algo assim: vocês, por serem incapazes de compreender, condenam, por exemplo, a barbárie do hitlerismo. Ora, vocês ignoram o ‘essencialmente primordial’ já que nunca puderam olhar além de cada ente partidário de Hitler, para a vida interior deles. São incapazes de apreender o ser dos entes por meio da vivência e do pensamento”.

“O ‘primordialmente’ aqui é um incógnito moral e filosófico, atrás do qual tudo pode ser escondido. Assim, é erguida uma barreira entre os atos perceptíveis do homem e sua existência autêntica e única. Tal barreira põe o irreconhecível e é, por princípio, intransponível.

Como Dostoiévski já tinha visto: quanto mais geral um princípio de moral (aqui o princípio de ‘existência’), menos ele pode ser capaz de determinar as ações concretas dos homens, o seu comportamento concreto em relação à vida real”. Quanto mais alto esse princípio se eleva acima da esfera dos entes, mais surge uma atmosfera de indeterminidade geral, de irracionalismo – pouco importa se esse princípio significa algo irracionalista em si mesmo ou não. A autodefesa de Heidegger contra o irracionalismo, portanto, se sustenta em pés de barro”.

“Acreditamos que a atual filosofia de Heidegger, assim como a anterior, é um sentimento de vida – surgindo de uma vivência do presente, de uma posição do homem atual diante da vida com seus semelhantes, em sua própria vida –, cujo conteúdo é determinado pelos fatos sociais da vida contemporânea, tal como Marx analisou cientificamente em suas obras.”

“À primeira vista, pode parecer paradoxal lembrar a teoria da sociedade de Marx ao lidar com a filosofia de Heidegger. Não esqueçamos, contudo, que (…) houve pesquisadores anteriores que apontaram que Ser e tempo, em certo sentido, constitui uma discussão importante do fenômeno do fetichismo, que foi cientificamente descoberto em sua legalidade por Marx.

E que o ex-aluno de Heidegger, Karl Löwith, também buscou estabelecer paralelos entre ele, Kierkegaard e Marx. Em terceiro lugar, que Heidegger, em seu novo escrito, faz pela primeira vez referência direta a Marx. Escreve ele:

O que Marx, a partir de Hegel, reconheceu, num sentido essencial e significativo, como o estranhamento do homem, alcança, com suas raízes, até a apatridade do homem moderno. Pelo fato de Marx, enquanto experimenta o estranhamento, atingir uma dimensão essencial da história, a visão marxista da História é superior a qualquer outro tipo de historiografia.

Mas, antes de prosseguir, é preciso ver o que ele entende pelo termo “apatricidade”? O próprio Heidegger explica que “essa palavra é pensada num sentido essencial, não com acento patriótico, nem nacionalista, mas de acordo com a história do ser”. Portanto, a apatricidade, ou seja, a falta de pertencimento, não se mostra por meio da compreensão da história real, mas é apreendida de um modo idealista na história da metafísica, ancorada que está no mundo da vida social e cultural dos povos. “A apatricidade” – diz em complemento – “torna-se um destino no mundo. É por isso que se torna necessário pensar este destino sob o ponto de vista ontológico- historial”.

Heidegger, no trecho acima citado, estabelece um contato com a crítica de Marx das formas reificadas mercadoria, dinheiro e capital. Ora, se Marx atribui esse estranhamento às relações de produção do modo de produção capitalista, as quais se escondem sob a forma mercadoria, Heidegger vai encontrá-lo na metafísica. Eis o que ele próprio diz: “este estranhamento é provocado e isto, a partir do destino do ser, na forma da Metafisica, é por ela consolidada e ao mesmo tempo por ela mesma encoberta, como apatridade”.

Assim, Heidegger – explica Lukács –, em Ser e tempo, “enfraquece energicamente as relações latentes, existentes na realidade social, enfatizando que a concepção do “impessoal” não tem relação com nenhuma sociologia”. Assim, também, o filósofo da floresta negra “rejeita expressamente que o ser intencionado tenha qualquer conexão com a realidade histórico-social”.

Lukács observa, então, que Heidegger faz um deslocamento ao enfrentar o problema do estranhamento. E é precisamente esse deslocamento que precisa ser – julga ele – devidamente criticado:

“O problema da ‘primodialidade’ está, portanto, ligado ao da apatridade do homem. É compreensível. Eis que essa é uma vivência basilar do homem (burguês) do capitalismo, especialmente do capitalismo monopolista”. Dito de outro modo, o burguês se sente como um apátrida; contudo, o filósofo não observa essa afeição aí, ou seja, no mundo da vida do burguês na sociedade moderna; diferentemente, ela é apreendida por meio de um deslocamento: o estranhamento do burguês aparece então, supostamente, na compreensão da história da metafísica.

Lukács, então, contrapõe a exposição dialética feita por Marx em O capital com teoria filosófica de Heidegger do seguinte modo:

“A objetividade histórica universal generosa de Marx consiste precisamente no fato de ter analisado cientificamente as legalidades sociais e econômicas objetivas do ser dos homens no capitalismo, as tendências históricas que o fizeram surgir, a estrutura que a vida real mantém nessa formação social.”

“Para Marx, as categorias econômicas são: “determinações da existência, formas do ser” (talvez seja supérfluo dizer que essas palavras não devem ser interpretadas de forma existencialista). Tudo o que essas “vivências basilares” das pessoas da sociedade capitalista “intencionam” é assim revelado em sua objetividade real e objetiva.”

“Evidentemente, o caminho aqui não vai da intenção ao objeto, mas o conhecimento real, objetivo do objeto historicamente caracterizado, quando necessário, fornece uma explicação da intenção. E, naturalmente, apenas essa ordem e hierarquia metodológica pode nos proteger da arbitrariedade e do misticismo na análise.”

“Pois as vivências “intencionais” apreendida pelos fenomenólogos, como todas as vivências subjetivas, presas no horizonte da burguesia na era imperialista, ocorrem necessariamente com uma falsa consciência (Marx também descobriu essa necessidade da falsa consciência e suas leis).”

“Ou seja, são sintomas vivenciais. Como tais, necessariamente “intencionam” um objeto que só é determinado pela vivência ou tornado consciente ao pensamento com base na vivência. O que está oculto na fetichização capitalista, a saber, é que todos os objetos “mortos” no ambiente social de cada homem na realidade são relações entre homens (classes).”

No discurso do filósofo, no entanto, “a objetividade social resultante é assim colocada na cabeça”. Ora, elas são “consequência necessária da estrutura específica das relações capitalistas entre os homens”. Como tais, portanto, “essas vivências somente podem ser elucidadas por uma análise econômica objetiva, mas nunca com o auxílio do método reverso, aquele que parte do sujeito.”

“Entretanto, todo idealismo – também o de Heidegger, é claro – segue o caminho oposto. Diz Heidegger: “a apatridade que assim deve ser pensada reside no abandono do ser do ente. Ela é o sinal do esquecimento do ser. Em consequência dele a verdade do ser permanece impensada. Aqui, como em Ser e tempo, Heidegger faz malabarismos entre um subjetivismo extremo e uma pseudo-objetividade. Sim, pseudo-objetividade porque, objetivamente, o abandono do ser do ente é um absurdo do pensamento.”

Em Heidegger, tal como foi exposto, há uma negação absoluta do sujeito e do humanismo modernos. Nessa perspectiva, o desenvolvimento histórico ocorrido antes e após o advento da modernidade parece, então, como um evolver indesejável, como um erro, como mero decaimento, como uma má história. A história boa, nobre, aventurosa e heroica, apenas pode voltar por meio de um novo começo, que restauraria o que supostamente existira antes da derrocada, antes do início da decadência.  

Assim, a história vindoura desejável é então pensada no modelo da recuperação de um modo mítico de ser humano e de uma vida humana, os quais supostamente foram perdidos e estão esquecido. O advento do fascismo lhe pareceu na década dos anos 1930 como uma retomada, como um novo começo possível.

Agora é preciso dizer que, em Marx, diferentemente, há uma negação determinada do sujeito e do humanismo modernos. De já postos historicamente, como em Descartes e Kant, eles se tornam pressupostos históricos, possibilidades reais que aguardam serem eventualmente postos concretamente. A história vindoura é, então, pensada no modelo da realização por meio da revolução. O socialismo e o comunismo, para Marx, é a realização histórica do sujeito e do humanismo, ou seja, da liberdade, da igualdade e da democracia.


[1] Com a finalidade de fazer uma apresentação breve da filosofia de Heidegger, escolheram-se alguns trechos do capítulo 5 do livro The Political right and equality – Turning back the tide of egalitarian modernity. Routledge, 2024.

[2] Trechos escolhidos do escrito Heidegger Redivivus de György Lukács. Verinotio, vol. 27 (1), jan./jun. 2021.